Horas antes da tragédia, Fernando Villavicencio tinha lançado o repto: “Que venham os sicários, aqui estou”. O candidato presidencial equatoriano, morto com três tiros na cabeça ao final da tarde de quarta-feira, tinha na mira os cartéis de droga, a corrupção e a violência entre gangues, temas sobre os quais baseou a sua campanha. As manchetes dos jornais concentraram-se na frase acima mencionada; no entanto, é uma outra declaração sua no mesmo comício que se veio revelar premonitória: “O tempo das ameaças acabou”.
Villavicencio estava habituado a ser ameaçado. O político de 59 anos começou por ser jornalista, período durante o qual se fez inimigo de boa parte da elite política do país, que acusou de ser corrupta e de estar ligada aos cartéis. Foi preso, exilado, chegou a esconder-se na selva amazónica, mas nunca parou, movido pelo que dizia ser uma vontade de acabar com o “narco-Estado” equatoriano.
O assassinato chocou o Equador, manchou as Presidenciais e chamou à atenção para o crescimento da violência armada no país. O atual Presidente, Guillermo Lasso, garantiu que “o crime não vai passar impune”, enquanto outros questionam a falha de segurança que tornou possível o assassinato de um candidato que, desde os tempos no jornalismo à sua passagem como deputado na Assembleia Nacional, fez carreira a incomodar os poderes estabelecidos.
O início no jornalismo e a ligação com Assange
Depois de concluir a faculdade, o futuro candidato presidencial teve uma breve incursão pela política, ajudando a fundar o Novo País, um partido indígena e de esquerda, onde permaneceu até 2017. Trabalhou para a petrolífera estatal e foi sindicalista, mas acabou por ser no jornalismo que construiu carreira.
Como jornalista de investigação no El Universo, um dos maiores jornais do Equador, a sua reputação cresceu ao ritmo do seu trabalho, que não caiu bem junto do poder governamental: “Fui perseguido por Gustavo Noboa [Presidente do Equador entre 2000 e 2003] por denunciar que entregou a Palo Azul [campo petrolífero] aos ex-banqueiros (num negócio que também envolveu a brasileira Petrobras)” contou em 2012, numa entrevista ao jornal El Telégrafo.
Em 2015, o seu percurso cruzou-se com o de uma figura improvável: Julian Assange, ativista, denunciante, e fundador do WikiLeaks, site dedicado à publicação de informações sensíveis e confidenciais. Em 2012, Assange, lutando contra a extradição para os EUA depois de divulgar uma série de documentos confidenciais, exilou-se no Equador sob proteção do governo.
Foi durante este período, em 2015, que Villavicencio e a política equatoriana Cynthia Viteri descobriram uma rede de vigilância secreta, mantida pelo governo para expiar opositores políticos, jornalistas e até o próprio Assange, que se encontrava a residir na embaixada do país no Reino Unido.
“Havia lá informação muito valiosa, sobre milhões e milhões de dólares em despesas, dezenas de milhões em contratos a empresas estrangeiras para fazer hacking ilegal”, contou o então jornalista ao New York Times, em 2019. “Fiquei surpreendido que não tivesse vindo cá para fora. (…) Era informação de interesse nacional e internacional”.
A razão pela qual o WikiLeaks nunca divulgou os documentos veio a saber-se depois: Assange já sabia da sua existência. A relação entre o denunciante e o governo que o acolhera fora sempre precária — terminou em 2019, quando o site difundiu imagens que ligavam o Presidente à época, Lenín Moreno, a um esquema de corrupção — razão que levou Assange a estabelecer uma espécie de “seguro de vida”, sob a forma de uma caixa de documentos comprometedores sobre o governo, onde se incluía o tal esquema de vigilância. Villavicencio viria a publicar ele mesmo a história, enraivecendo ainda mais o governo equatoriano e pintando um alvo ainda maior sobre si mesmo.
Da política à prisão e à fuga para a Amazónia
A transição para a política começou enquanto assessor. Esteve na Assembleia Nacional equatoriana, ao serviço do “seu” Novo País durante duas legislaturas (2009 a 2013 e 2013 a 2017). A sua passagem no parlamento viria a ter um final antecipado: em 2014, o próprio e o deputado para quem trabalhava, Cléver Jiménez, foram condenados a um ano e meio de prisão por injúrias contra o ex-Presidente, Rafael Correa.
Em vez de se entregarem e cumprirem a sentença, os dois optaram por um caminho diferente — um que os levaria para a selva. Durante três anos, Villavicencio e Jiménez refugiraram-se na Amazónia, fugidos da justiça até que a sentença prescrevesse ou caísse. Mas, mesmo no exílio, o jornalista continuou a trabalhar: a 20 de setembro de 2017, poucos dias antes de regressar da selva, colocou uma denúncia na justiça acerca de má gestão das contas públicas, bem como vários casos de suborno e de corrupção na comercialização de petróleo entre o Estado e uma empresa privada, a Petrochina.
A ação acabou por servir como prelúdio ao regresso, e à entrada na política a tempo inteiro. Em 2017, candidatou-se pela primeira vez à Assembleia Nacional. Inicialmente, o seu nome foi rejeitado atendendo aos processos que tinha pendentes. A justiça viria, porém, a arquivar o caso de Rafael Correa, permitindo-lhe candidatar-se.
Nas eleições gerais, Fernando Villavicencio acabou por não ser eleito deputado. A derrota nas urnas acabou por servir de oportunidade para que os rivais políticos do governo de Correa voltassem a atacar. Agora acusado de espionagem e insultos ao ex-Chefe de Estado, mais uma vez não se deu por vencido, acabando por conseguir fugir do país rumo ao Perú, onde pediu asilo político. “A vida é assim, Rafael. Tu, com todos os teus poderes. Eu, desde a sombra e perseguido, derrotei-te”, afirmou na altura a partir da capital peruana, Lima.
Ameaças, atentados e uma candidatura fatal
“Sicário” quer dizer “assassino contratado”. Na América Latina, o termo é utilizado para referir aos assassinos dos cartéis de droga que nela operam, formando algumas das mais temíveis e violentas organizações criminais do mundo.
Antes de morrer, Fernando Villavicencio já se tinha antes deparado antes com eles. Em setembro de 2022, o então deputado e a família foram vítimas de um atentado, quando um grupo de homens desconhecidos disparou sobre a casa onde viviam na capital, Quito, durante a noite. Villavicencio descreveu o ataque como “uma resposta bárbara às suas revelações sobre os vínculos do crime organizado com o Correísmo” e prometeu que não o calariam.
Um ano antes, tinha sido eleito para a Assembleia Nacional, como parte da coligação de independentes Aliança da Honestidade. No parlamento, continuou a divulgar as ligações entre o crime organizado e o poder político equatoriano, ao mesmo tempo que prometia combater o aparelho político por dentro.
Pelo meio, não ficou imune a críticas. Alguns deputados na assembleia acusaram-no de obstruir um processo de impeachment contra o Presidente Guillerme Lasso e houve quem questionasse o seu aproveitamento político. Na imprensa, começaram ainda a circular notícias de que estaria envolvido em “negociatas” com as grandes empresas farmacêuticas, havendo até quem dissesse que Villavicencio era um agente da CIA com a missão de desestabilizar o Equador.
O deputado negou categoricamente as acusações, que descreveu como uma campanha orquestrada dos apoiantes de Rafael Correa e dos cartéis para denegrir a sua imagem. Pelo meio, continuou a fazer denúncias acerca de vários políticos nacionais, e prometeu continuar a trabalhar no sentido de “limpar” a política.
Onda de violência associada ao narcotráfico no Equador, mais dois reclusos mortos
Em maio deste ano, o seu mandato na Assembleia Nacional terminou quando Guillermo Lasso decretou a dissolução do Parlamento. Pressentido a oportunidade, Villavicencio lançou a sua candidatura presidencial, focando-se nos temas que lhe eram caros: a corrupção e o combate ao narcotráfico e aos gangues, assim como as questões ambientais. Ao lado da sua candidata a vice-Presidente, Andrea González, estabeleceu o “Movimento Construír”. No final de junho, a sua candidatura foi oficializada junto da comissão eleitoral equatoriana.
Nunca tendo sido favorito nas sondagens, chegou a aparecer em segundo lugar, com 13,2% das intenções de voto, apontando à possibilidade de disputar uma segunda volta. Em vez disso, foi assassinado pelo segundo maior gangue do Equador, numa morte que ensombra as eleições — bem como um país.