Assim que o chão começou a tremer, Hamza, de 18 anos, terá saltado para cima de Yusra, de 13, para a proteger dos destroços que se abateram sobre os dois. Pelo menos, é isso que Said Afouzar gosta de pensar. E só isso explicaria a forma como os seus dois filhos foram encontrados, com os braços enrolados um no outro.

Até domingo à tarde, o sismo de 6.9 na escala de Richter, cujo epicentro foi na Cordilheira do Atlas, a cerca de 70 quilómetros de Marraquexe, consistia apenas numa nuvem de pó para o marroquino. Não por essa ser a sua única memória, mas porque demorou dois dias a processar tudo o que tinha visto e perdido. Inclusivamente, a sua família.

O homem estava em casa da irmã, na mesma rua da sua, quando se deu o tremor de terra, que já causou 2.862 mortes e 2.562 feridos, segundo o balanço desta segunda-feira.

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Assim que sentiu as paredes a abanar e os objetos a cair, saiu porta fora e correu até chegar a casa, na esperança de que a mulher e os filhos estivessem bem. No entanto, assim que alcançou a maçaneta, o edifício de dois andares desabou.

Said Afouzar conseguia ouvir os gritos da sua família no meio dos destroços. Por isso, usou as mãos como pás e escavou sem parar, mesmo quando sentiu um objeto a esmagar-lhe o joelho.

Por volta das duas da manhã — cerca de três horas depois do terramoto — e com a ajuda dos vizinhos, alcançou a mulher e puxou-a dos escombros. Já os seus filhos foram encontrados oito horas depois, no meio do pó. Mas já era tarde demais.

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Já foram registadas 2.681 mortes e 2.501 feridos.

A posição em que foram encontrados, com os braços de Hamza a envolverem a mais nova, Yusra, ajudou a aliviar a dor de Said Afouzar. Mas a perda foi demasiado forte. “Sinto que o mundo acabou para mim”, confessou ao The Washington Post, com os olhos em lágrimas. “Perdi a minha casa e a minha família”.

Com a mulher, Elgoufi Nezha, no hospital, o marroquino perdeu-se a inspecionar os destroços da casa, relatam os repórteres do jornal norte-americano que estão no local. Uma garrafa de Fanta caída na mesa da sala, almofadas azul brilhante, que agora mal tinham brilho, devido a ter sido apagado pelo pó, e uma planta, que se mantinha de pé, no parapeito da janela.

O marroquino esperou pela mulher no parque de estacionamento a que passou a chamar de casa, assim como tantas outras famílias cujos lares foram destruídos. Apesar de a fila de tendas improvisadas, com centenas de cobertores pendurados em fios elétricos, não ser a habitação ideal, o homem confessou que podia viver apenas de chá e pão, mas que “precisava de um sítio para dormir”.

Elgoufi Nezha chegou numa carrinha, com a testa coberta de ligaduras e o abdómen e os braços cheios de nódoas negras. A mulher relembrou a sua tentativa de alcançar o quarto das crianças. Apesar dos objetos de barro continuarem a cair-lhe sobre os ombros e costas, não parou, ouvia os gritos dos filhos, que chamavam por ela.

A tragédia que se abateu sobre esta família é apenas uma das muitas que marcam os relatos dos sobreviventes que começam a emergir nos meios de comunicação social três dias depois do sismo.

“Tive de escolher entre salvar os meus pais e o meu filho”

De um lado, os pais parcialmente esmagados pela parede que se tinha abatido sobre eles. Do outro, a mão do filho de 11 anos a espreitar por entre os destroços do quarto. Tayeb ait Ighenbaz não sabia para onde devia agir, mas o seu instinto levou-o a fazê-lo rapidamente.

O marroquino estava com a mulher, os dois filhos e os pais em casa, localizada na Cordilheira de Atlas, quando o chão começou a tremer. “Tudo aconteceu muito depressa. Quando se deu o sismo, corremos todos para a porta. O meu pai estava a dormir e eu gritei pela minha mãe. Mas ela ficou para trás, à espera do meu pai”, contou à BBC.

Tayeb concentrou-se em levar a mulher o filho para fora do edifício. Depois, regressou ao apartamento, onde viu os pais e o filho, Adam, presos nos escombros. Sabendo que não tinha tempo para salvar os dois, debateu-se sobre o dilema de qual escolhia primeiro.

A solução chegou em poucos segundos. Tayeb acabou por correr em direção ao seu filho, escavando o máximo que conseguia até abrir espaço suficiente para que ele saísse. Assim que o viu são e salvo, olhou para os pais. Mas já não havia nada a fazer.

“Tive de escolher entre os meus pais e o meu filho”, disse, visivelmente emocionado, segundo relatam os jornalistas do canal britânico, presentes no local. “Não pude ajudar os meus pais, porque a parede cobria metade dos seus corpos. É tão triste. Vi os meus pais morrer”.

Para Tayeb, esta tragédia foi como “nascer de novo”: “Sem pais, sem casa, sem comida, sem roupa”, descreve, apontando para a camisola marcada pelas nódoas de sangue dos pais, que terá de usar até arranjar outra.

“Tenho 50 anos e agora tenho de começar tudo outra vez”, lamenta. Ainda que já tenha ouvido diversas vezes os conselhos para “ser paciente, trabalhar muito e nunca desistir”, o marroquino não consegue segui-los neste momento. Só a criança que corria à sua volta, enquanto conversava com os repórteres, que usa uma camisola da Juventus, com o número 7 e o nome Ronaldo escrito na parte trás, é que o faz olhar para cada dia.

“O meu pai salvou-me da morte”, disse o miúdo, abraçando o pai.

O corte de uma chamada e o fim de uma população

Omar Ait Mbarek não teve tempo de desligar. De se despedir. De dizer o que sentia pela sua noiva, Mina Ait Bihi, com quem falava ao telemóvel, quando o sismo se fez sentir na povoação marroquina de Tikht. Em vez disso, guarda na memória os barulhos dos objetos a cair, das casas a ruir e do silêncio ensurdecedor que se seguiu ao corte da chamada.

O jovem de 25 anos soube logo o que isto significava. No entanto, até obter uma confirmação, preferiu não acreditar que essa tinha sido a última vez que falara com a sua futura mulher, com quem ia casar daí a algumas semanas.

O pior cenário veio momentos depois, quando os socorristas encontraram um corpo soterrado no meio do pó e dos destroços do que já tinha sido uma casa, com um telemóvel pousado ao lado.

“O que querem que diga? Estou arrasado”, disse à AFP, citado pelo jornal Diário de Notícias, enquanto enterrava Mina Ait Bihi. Omar não precisava de muitas palavras para mostrar o que sentia. Os seus olhos visivelmente vermelhos e revestidos de lágrimas falavam por si.

A mulher foi enterrada num cemitério improvisado da localidade, situada a poucos quilómetros do epicentro, onde estão outras 68 vítimas do sismo.

“A vida acabou aqui”, garantiu Mohssin Aksum, um homem de 33 anos, que não falava apenas da sua família. “A povoação está morta”, acrescentou, referindo-se à aldeia onde viviam 100 famílias. Agora, veem-se apenas rostos tristes a deambular no meio dos “restos de madeira e alvenaria, louças partidas, sapatos que não combinam e tapetes de padrões complexos”, como descreve o Diário de Notícias.

Um com um ano e meio e dois com dias de vida: as despedidas mais difíceis dos sobreviventes marroquinos

“Exatamente aí”. Aarab Abdeli, de 37 anos, podia estar a referir-se à sala de estar onde costumava conviver com a mulher e três filhos. No entanto, não é nisso que pensa quando aponta para os pés dos jornalistas. O marroquino não estava em casa, situada na cidade de Agadir, no litoral de Marrocos, que fica apenas a um quilómetro da estrada que percorre a Cordilheira do Atlas, quando se deu o sismo. Foram os gritos que o obrigaram a abandonar a reunião de comunidade e correr estrada fora para encontrar a mulher e os filhos no meio dos escombros.

Quando chegou, viu a casa partida a meio, as paredes ruídas e o que restava do teto no chão. Sem pensar, desatou a escavar o que costumava ser a sua sala. Começou por retirar a mulher e depois as filhas de 5 e 11 anos. Mas quando segurou no filho de um ano e meio, ele já estava morto.

“[O corpo] está na mesquita”, revelou ao Expresso um dos homens que se juntou para ouvir a história que assombra a vida do pai desde sexta-feira.

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Aarab não foi o único marroquino a ter vida resumida a pó e a cinzas. Já a de Hasan, ficou num monte de tijolos. Pelo menos, são essas as palavras usadas pelo jornal espanhol El Mundo para descrever o que já foi a sua casa.

Sem sítio para viver, foi o único sobrevivente da sua família de quatro membros. Sendo que, com dois deles, mal teve tempo para criar laços e, sobretudo, para se despedir.

“[A minha mulher] tinha acabado de ter dois gémeos”, recorda ao jornal espanhol. “Na noite do terramoto, pôs um em cada braço para tentar escapar, quando tudo lhe caiu em cima”.

Hasan viu tudo isto com os próprios olhos e nada pôde fazer para o impedir. Também o marroquino ficou preso nos escombros, onde permaneceu por mais de três horas, tendo sido salvo pelos residentes que o foram resgatar com as próprias mãos.

“Foi de partir o coração”

“Imagine ver uma pessoa a morrer à sua frente, que outrora foi um vizinho e amigo”. Azis Taki não precisou de imaginar. Viu-o acontecer debaixo dos seus olhos, quando tentava ajudar as pessoas presas nos escombros da sua rua — tal como fizeram com Hansan. Mas, no caso do marroquino, o tempo não jogava a seu favor.

O homem já tinha alguma experiência com terramotos, mas nenhum tinha sido como este: “Foi algo devastador”, lembrou.

Azis Taki foi acordado pela mãe e pelo filho de um ano, com a descrição do cenário que se passava dentro e fora das quatro paredes. Levantou-se em segundos e saiu de casa em outros tantos. Depois, subiu as escadas e foi alertar o pai, mãe e dois irmãos para fazer o mesmo. Mas um deles não foi tão fácil de convencer.

“O meu pai é demasiado ligado à sua casa. Por isso, recusou-se a sair”: descreveu ao Washington Post. Omar, de 93 anos, acabou por sair, ao ver os vizinhos a correr e os edifícios a colapsar pela janela.

Levou cerca de dez minutos até a família de Azis Taki chegar à praça de Bab Elmaleh, localizada nas redondezas. Nesse momento, o marroquino decidiu voltar para o seu bairro, para ajudar os vizinhos que tinham ficado encurralados nos escombros.

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Quando chegou, viu oito pessoas mortas ou ainda a morrer, nomeadamente uma mãe, um filho e um homem que tinha saltado da janela, para se salvar. Quando andou até perto de casa, viu um rosto que conhecia bem, apesar do pó tapar a maior parte das suas feições.

O homem deu três a quatro passos para fora de casa, até cair e morrer. “Foi de partir o coração”, recordou. A partir desse momento, não houve grande margem para imaginar um cenário pior.

“Pensei logo na Turquia. Tinha de sair rapidamente”

Sebastian Rosemont, 32 anos, e a mulher, Genia, tinham acabado de desfazer as malas. Após dois dias a passear e a conhecer Marraquexe, o casal estava pronto para uma boa noite de sono numa guesthouse. Até o chão começar a tremer.

“Parecia que nunca mais parava de abanar”, diz ao relembrar ao jornal norte-americano o momento em que ele e a mulher se abaixaram no chão, à espera que o sismo passasse. “Pensei logo na Turquia. Tinha de sair dali rapidamente”.

O turista norte-americano não estava preparado para viver um cenário semelhante ao que tinha matado mais de 50 mil pessoas na Turquia e na Síria, apenas sete meses antes. Por isso, saiu com a mulher para o exterior do edifício, onde uma nuvem de pó lhes barrou o caminho.

Sebastian tentou guiar-se pelos gritos das pessoas e desviar-se dos estrondos dos prédios a desabar. À medida que caminhava, as ruas cheias de destroços e a correria das equipas médicas, que carregavam corpos de um lado para o outro, mostravam-lhe cada vez mais que o seu pior pesadelo estava a tornar-se real.

O homem acabou por alertar a sua família, que reside no estado de Washington, de que estava bem e que não sabia ainda o que fazer com a semana de férias que lhe restava. O seu plano inicial era fazer uma caminhada pelas montanhas onde foi o epicentro, que tiveram de abolir por razões óbvias.

Por volta das três da manhã, o proprietário da pousada avisou-os e aos restantes hóspedes de que era seguro voltarem para dentro. Assim fizeram, mas só conseguiram dormir cerca de uma hora.

Na manhã seguinte, percorreram os locais que nos dias anteriores os fascinaram. Desde lojas que se mantiveram intactas, às ruínas agora destruídas. E lembraram a visita guiada que tinham tido dois dias antes, em que o guia lhes explicou que maior parte dos monumentos marroquinos estavam bem preservados, devido à raridade de sismos naquela zona.

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Sebastian e a mulher não eram os únicos turistas por lá. Shabina Bano, presidente da Câmara de Small Heath, em Birmingham, no Reino Unido, também andava a passear com a sua família por Marraquexe, quando uma “tontura” veio mudar os planos.

A autarca estava a fazer compras com o marido, os três filhos e o irmão, quando se “sentiu ligeiramente tonta”. “Antes de conseguir pensar, o chão começou a tremer e não percebia o que se estava a passar”, disse à BBC.

Shabina descreve que só quando ouviu “gritos e choros”, e viu “pessoas a empurrarem-se umas às outras”, é que percebeu que “algo realmente se passava”.

“Naquele momento, não sabíamos se íamos sobreviver àquilo. Tínhamos uma grande sensação de medo dentro de nós”, recordou.

A família manteve-se unida durante o caminho para o exterior e não deixou que a nuvem de pó a separasse. Quando chegou ao carro, pôs as mãos ao volante e dirigiu-se até à cidade de Essaouira, uma viagem que demorou cerca de seis horas, devido ao trânsito de pessoas a fugir do centro.

Após passarem por “restaurantes destruídos, edifícios desabados e paredes esburacadas”, Shabina e a restante família chegaram sãos e salvos à pousada onde estavam alojados. Esperava-os uma noite tranquila, como a que não tinham tido, na sexta-feira, mas não foi isso que aconteceu.

Nenhum deles conseguiu pregar olho, devido ao medo que algo semelhante se repetisse. “Aquelas memórias estavam sempre a voltar e era uma sensação verdadeiramente assustadora”, revelou.

Para grande alívio da família, já está de volta a casa, à cidade de Birmingham, mas de “coração partido” pela “história que foi destruída” em Marrocos.

Um comboio a chegar ou uma bomba a explodir: como os residentes viram o terramoto

O sismo que abalou Marrocos foi sentido de diversas maneiras pelos diferentes moradores. Alguns sentiram que foi longo e que “parecia nunca mais parar” e outros disseram que foi “rápido e violento”. Foi o caso de Steve Sleight, um guia das montanhas de Atlas.

“Parecia um comboio a chegar. Tudo tremeu de repente. Nem sei como descrever”, recordou à BBC. O antigo canalizador de 50 anos estava no telhado de um amigo, a “olhar para estrelas”, quando o céu se encheu de pó.

“Corri lá para baixo e, quando abri a porta da frente, não consegui ver nada. Apenas nuvens de pó por todo o lado”, disse. Na pequena vila de Amizmiz, a cerca de 12 quilómetros do epicentro, o marroquino lembra-se de ver “três ou quatro casas desabar”: “Mas, felizmente, acho que ninguém morreu”.

O mesmo não se pode dizer da cidade de Tiniskt, onde está o repórter do jornal Al Jazeera. “Pode parecer clichê, mas parecia que uma bomba tinha explodido. E isso nem lhe faz justiça”, disse Simon Speak Cordall, correspondente da Tunísia, mas que se deslocou a Marrocos para cobrir a tragédia.

O repórter tem acompanhado diversas famílias que perderam lares e entes queridos. Como foi o caso de Mohammed, Isham e Ferrid, três crianças que sorriram para a sua câmara, apesar de não terem nada de alegre para contar.

“Toda a minha família morreu com o terramoto”, disse um. De acordo com o jornal, os três estão temporariamente numa tenda, assim como muitos outros residentes que perderam as casas.