“Oublier les machines”, dizia a minha avó quando lhe quiseram oferecer uma máquina de lavar a loiça. Para ela, o trabalho manual era para ser feito com as mãos, mesmo que se tratassem das mãos das empregadas. Seja como for, ficou-me qualquer coisa e não aprecio particularmente máquinas na cozinha que não vou usar nem saber usar e que ficam para sempre a ocupar espaço, cheias de pó e gordura.

Peut-être pour ça não estava muito animada quando soube que a De’Longhi Eletta Explore (uma máquina de preparar café) ia entrar na nossa casa. Quando me enviaram uma fotografia, fiquei ainda pior. Que farei eu avec ça, pensei? Como escreveu Simone Weil, “Argent, machinisme, algèbre ; les trois monstres de la civilisation actuelle”. Tem razão.

Esperava incómodo, mas não imaginei que a Eletta Explore fosse como receber um S. Bernardo em versão Transformer. A caixa pesa uma tonelada (ou talvez mais), se bem que em breve percebemos que metade são manuais em papel, caixas, acessórios e bocados de cartão. Mesmo assim, a própria da máquina de café, que me dizem ser destinada ao público mais jovem, é grande, metalizada, complexa, demora a instalar e a instalar-se, felizmente que inclui tudo naquele chassis em forma de paralelepípedo, o moinho, o depósito de água, as torneiras, os botões e o pequeno ecrã.

Devo dizer que em geral fico desagradada quando vejo uma máquina de café com manípulo, sei que vai sair barulho (quando se bate na poubelle para fazer sair os restos de borra), água a respingar, (quando se passa na torneira) e restos de pó de café por todo o lado (quando se coloca o pó, depois da moagem). A Eletta, abençoada seja, não tem manípulo, requer somente grãos de café e água e voilá. Do ponto de vista de um purista, pode não ser o melhor, mas a não ser que o purista se ofereça para me limpar a cuisine, prefiro assim, sem manípulos.

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Em conversa sobre passadeiras de ginásio, um engenheiro suíço amigo disse-me uma vez que é essencial para as pessoas que as suas máquinas se pareçam com o futuro. É importante que exsudem design, pareçam feitas num metal qualquer vindo do espaço, com botões, luzinhas e barulhinhos, o que talvez explique o motivo por que as cozinhas estão transformadas em laboratórios a um ponto tal que imagino que em breve a Disney faça um novo “Bela e o Monstro”, em que um air fryer falante, dança com um shaker ao som de uma orquestra de robots de cozinha.

O aspeto espacial não é acidental e o meu cinismo diz-me que a juventude precisava de ser enganada: não tirariam os pratos de uma máquina de lavar branca e aborrecida, pode ser que o façam se for revestida a aço escovado. Neste caso, se queremos que nos tirem um café, é bom que eles pensem que estão a comandar um exército de drones.

Voltando à Eletta Explore, à parte temos dois copos de encaixe, uma para bebidas quentes, outra para frios e ainda cuvetes, que deveremos colocar no congelador para as bebidas frias. Este modelo é dirigido, aliás, a quem gosta de bebidas frias com café, porque tem uma tecnologia que extrai a frio e faz uma bebida em cinco minutos, o que suponho ser uma coisa boa para quem anda à procura disto.

Com tempo, descobriremos que se lava sozinha antes de nos servir, tem capacidade de fazer dezenas de bebidas diferentes, algumas das quais bastantes inesperadas, como chá. Tudo fará mais sentido se espreitarem os vídeos no YouTube que a marca preparou, como eu fiz, que detesto manuais. Também há uma app, que não cheguei a descarregar.

Lá em casa, o café é um assunto très sérieux. De manhã, precisamos dele depressa, por isso, obviamente, usamos uma pequena máquina de cápsulas que demora menos de um minuto a devolver um expresso. Em dias com mais tempo, os que pedem cafés longos, usamos uma Moccamaster, robusta, fiável, de design magnífico. Ao fim de uma semana de convívio com a Eletta, consegue-se tudo isto. Desde tirar um expresso em menos de um minuto, com a vantagem de não termos a cápsula plástica (ou alumínio) para enviar para a reciclagem; a cafés longos, cafés com isto e aquilo, frios, quentes, americano, machiattos, cappuccinos, lattes, o que é ótimo para quem sabe as diferenças entre estas versões. Apesar de grande, a Eletta não faz demasiado barulho. Heureusement. Personalizável e adaptada aos nossos gostos e perfis, é muito comunicativa e fala línguas, num tom suficientemente casual e atrevido para a Joana Marques lhe poder dedicar um “Extremamente Desagradável” um destes dias. Quando a ligamos, vamos recebendo dicas, instruções e comentários num pequeno visor, como se o filho adolescente do Chat GPT habitasse ali dentro. Percebo agora melhor que a máquina se destine a um público mais jovem.

Sou alguém que precisa de café, que ainda vejo com um ato rebelde, porque a minha mãe não me deixava beber expressos em pequena, dizia que eu não conseguiria dormir. Significa que para compensar o trauma de infância, preciso de uma Eletta, deste tamanho? Na verdade não, pergunto mesmo se alguém precisará de uma coisa assim, mas as novas gerações são um mistério e é um risco tentar percebê-las.

Quando me deparo com uma das máquinas modernas, nunca me canso de notar a importância que um certo café tinha no país. Quando estudava em Paris, perguntavam-me como é que aguentava estar em tanto tempo bebendo “aquele café que parecia água de lavar pratos”. Acabei por desistir de responder que em Paris também existe bom café, inclusive expresso e que Paris é sempre Paris, porque pelo tom, repetição e insistência, parecia que quem tirava a célebre bica a um português, lhe tirava a raison d’être.

As coisas mudam e primeiro as cápsulas e depois o Starbucks, fizeram desaparecer a cantilena. La passion est finie e irrita-me que ninguém fale disso. Os portugueses transformaram-se em maluquinhos da espuma e a tal bica, tão venerada e bebida ao balcão na pastelaria, perdeu importância, arrastando consigo uma certa tradição de pedidos especiais. Eu, pelo menos, nunca ouvi ninguém a pedir o café de cápsula sem princípio, em chávena escaldada, ou fria, em italiana, com pingo,  cheio sem ser a rasar e mais não sei o quê.

Suspeito que os fabricantes saibam que este tipo de máquinas são sobretudo cadeaux que se oferecem a quem tem tudo. O destino trouxe-nos aqui. Tudo fácil de fazer, é só ler ecrãs e carregar em botões. Bebidas quentes e frias, com múltiplas combinações, apta para leite normal ou sucedâneos vegetais, o que interessa é que é tudo ajustável nos vários tipos de espuma – porque no fim de contas é tudo acerca da espuma, espuma em versão quente, espuma em versão fria, espuma mais espumosa ou menos espumosa. Estas proezas fazem da Eletta uma máquina, capaz de honrar qualquer pedido, mas era o que faltava que assim não fosse, custando em volta de mil euros.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.