Durante as buscas à casa do ministro das Infraestruturas, João Galamba, que se realizaram no âmbito da investigação aos negócios de hidrogénio e lítio que levou à demissão do primeiro-ministro, António Costa, as autoridades encontraram e apreenderam haxixe. A informação foi esta quinta-feira avançada pelo jornal Público, que escreve que se tratará de uma pequena quantidade, considerada de autoconsumo. De acordo com a nova lei da descriminalização do consumo de drogas, a posse destas pequenas quantidades de droga para consumo, como parece ser o caso, deixaram de ser crime. Mas não deixaram de ser ilícitas.
Ou seja, o consumo de substâncias como haxixe, cocaína, heroína ou ecstasy continuam a ser ilegais, ainda que a sua posse para consumo exclusivo não constitua um crime. Na prática, se alguém tiver na sua posse, por exemplo, 100 gramas de haxixe e for apanhado pelas autoridades, está a “deter drogas”. Porém, “o que interessa para a lei é saber se essa detenção se destina à venda, que é crime, ou se se destina ao consumo exclusivo, que não é crime”, explica o advogado Tiago Melo Alves, da Melo Alves Advogados, em declarações ao Observador.
A legislação relacionada com a droga é um “tipo penal muito aberto”, mas existem aspetos que podem ser relevantes conhecer, nomeadamente o que acontece àqueles que são apanhados na posse de droga para autoconsumo e como é que se apura de quem é uma determinada substância quando esta é encontrada numa propriedade onde habitam várias pessoas.
Na casa de João Galamba foram encontradas doses de haxixe para autoconsumo. É crime?
Não. Contudo, como o consumo de drogas como haxixe é ilícito, fazê-lo é algo ilegal perante a lei, apesar das mudanças introduzidas pela descriminalização do consumo de drogas. Trata-se de uma “contraordenação” que é tratada fora dos tribunais, por Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência. Quando identificam um consumidor de droga, as autoridades podem determinar que este se deve apresentar na comissão que fica mais perto da sua área de residência. O site do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) refere que será “apreciado o comportamento ilícito e avaliado o tipo de consumo em causa”.
Depois, após ser feito esse diagnóstico e analisado o “enquadramento socio-familiar”, o consumidor “pode ser encaminhado para apoio psicológico, por exemplo, ou para tratamento numa Equipa de Tratamento ou outra estrutura de saúde adequada”.
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Qual a diferença “relevante” sobre o consumo na nova lei da descriminalização do consumo de drogas?
A nova versão da lei da descriminalização do consumo de drogas (Lei n.º 15/93), que foi promulgada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em agosto, admite a posse de doses de droga para mais de dez dias, se for provado que é para autoconsumo. Anteriormente, “só se podia ter quantidade suficiente para dez dias, para consumo. Se tivesse uma quantidade superior era considerado crime, mesmo se fosse para consumo”, indica Tiago Melo Alves.
Neste momento, com a nova legislação em vigor, “desde que se prove” que a posse de droga é para consumo exclusivo — mesmo que exceda os tais dez dias — “não é crime”. Quando a nova versão da lei foi promulgada, Manuel Cardoso, subdiretor geral do SICAD, já tinha afirmado, em declarações ao Observador, que “em relação à posse, se um consumidor tiver mais do que a média para dez dias, se for exclusivamente para consumo”, o processo não deve ser enviado para tribunal.
É o artigo 40.º da Lei n.º 15/93 que consagra que no caso da aquisição ou detenção de substâncias ilícitas que exceda o período de 10 dias “e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência.
Como se comprova de quem é a droga, quando encontrada numa casa onde moram várias pessoas?
O haxixe encontrado em casa de João Galamba poderá tanto ser seu como da sua mulher, de uma empregada ou de alguém que more com ele. Existem várias possibilidades, pelo que é necessário apurar a quem pertence a droga. Como o governante foi constituído arguido na investigação aos negócios de hidrogénio e lítio deverá ser ouvido em tribunal.
Desta forma, Tiago Melo Alves antecipa que o ministro das Infraestruturas será questionado sobre se sabia da existência do haxixe em sua casa. “Se disser ‘olhe, não sei, nunca tinha visto isto na vida’” será necessário investigar para perceber a quem percebiam as doses dessa substância. Por outro lado, “se disser ‘isso é meu e para o meu consumo exclusivo’, em princípio, a situação fica arrumada, não será acusado” e poderá ser chamado a comparecer na Comissão para a Dissuasão de Toxicodependência na sua área de residência.
Mas como se comprova que a droga é para autoconsumo?
O advogado ouvido pelo Observador explica que, por norma, “é pela quantidade, pela forma como estava em casa, pelas declarações do próprio arguido”, que “se forem credíveis, o juiz aceita”. “Se [as declarações] baterem certo com a quantidade encontrada e com a forma como a droga estava acondicionada, normalmente os juízes percebem se é para consumo ou não”, acrescenta.
O detentor da droga poderá ser alvo de coimas?
Se o detentor da droga cumprir o “plano” que lhe será imposto na Comissão para a Dissuasão de Toxicodependência, não será alvo de uma multa ou coima. Porém, se isso não se verificar, haverá uma “contraordenação”, algo que não é usual. Tiago Melo Alves estima que as multas possam rondar os 50 euros ou 100 euros, mas afirma não ter conhecimento de “ninguém que tenha sido multado”.
O crime de tráfico é só vender droga?
Não. Há um aspeto “muito controverso” na legislação sobre drogas. É que “tanto é crime de tráfico vender como dar” qualquer substância ilícita a outrem. Por exemplo, detalha o advogado da Melo Alves Advogados, se um indivíduo der a sua droga, que utiliza para consumo exclusivo, a outra pessoa (mesmo sem que seja pago qualquer valor monetário) já poderá estar a “cometer um crime de tráfico”.
Isto acontece porque “a doação já não tem nada que ver com a questão de ser para consumo [exclusivo] ou não”. Como já foi explicado, apenas a “detenção para autoconsumo”, se assim ficar provada, não constitui um crime.
O que pode acontecer a quem está a consumir substâncias ilícitas na rua?
Fora de casa, se alguém for apanhado pela polícia a consumir substâncias ilícitas na rua, poderá ver essas drogas serem apreendidas. “Porque, lá está, pode não ser crime, mas não é lícito”, diz Tiago Melo Alves. As substâncias podem ser apreendidas até porque as autoridades, antes de o fazerem, “não sabem se a quantidade é suficiente para consumo ou não”.
O SICAD acrescenta que os maiores de 16 anos, quando são “apanhados a fumar um charro”, são notificados pelas autoridades para se apresentarem numa Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência. “É instaurado um processo de contraordenação em relação ao qual o indiciado consumidor terá de responder, comparecendo na comissão sempre que for notificado”.
E se for menor de 16 anos?
O SICAD explica que se forem menores de 16 anos a serem apanhados a consumir substâncias ilícitas, a “polícia encarrega-se de chamar os pais ou representantes legais e de encaminhar o caso para as Comissões de Proteção de Menores”.
Por sua vez, Tiago Melo Alves nota que os “menores de 16 anos não cometem crimes e portanto não são puníveis”. Por isso, um eventual caso será remetido para o “Ministério Público do Tribunal de Família e Menores que, depois, tem várias opções previstas desde planos de detenção, cumprimento de deveres e, em última análise, um julgamento, mas [levado a cabo] por um juiz do Tribunal de Família e Menores”.