“Quando é que isto vai parar?”. A pergunta feita pelo assessor de Bill Cosby, depois de o actor ser mais uma das celebridades – que vão da música, passando pela cinema e atingindo mesmo o mundo da política – acusadas de crimes de abusos sexuais nos últimos tempos. A lista inclui nomes como o ator português Nuno Lopes, o cantor Axl Rose, o também ator Jamie Foxx e até o ex-Presidente dos EUA Donald Trump.

Os factos descritos pela alegada vítima do ator português, argumentista A.M. Lukas, terão ocorrido em 2006. Já o retrato gráfico da noite em que Axl Rose terá violado a modelo Sheila Kennedy, remete para o ano de 1989. E Jamie Foxx terá agredido sexualmente uma jovem numa esplanada em 2015. No caso de Trump, o único que já foi julgado, os acontecimentos remontam a meados de 1990.

No entanto, só agora estes casos vieram a público. E a razão está ligada ao local onde todos eles terão ocorrido, o estado de Nova Iorque, estando assim abrangidos pelo Adult Survivors Act, ou Lei dos Sobreviventes Adultos (em tradução livre).

Esta lei surgiu dois anos após Nova Iorque ter aberto uma “janela temporária” para permitir queixas de pessoas que sofreram abusos sexuais quando eram crianças e não tiveram oportunidade de falar. A Lei das Vítimas Infantis, implementada em 2019, chegou ao fim em agosto de 2021, com quase 11.000 processos apresentados. No entanto, a governadora Kathy Hochul considerou que esta tinha deixado de fora pessoas que sofreram o mesmo tipo de abusos já numa idade adulta.

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Desta forma, em maio de 2022 assinou uma nova lei, que criava uma janela de um ano para que as vítimas de abusos sexuais, com idade igual ou superior a 18 anos, pudessem processar os seus agressores, mesmo que o prazo de prescrição já tivesse expirado. A norma entrou em vigor a 24 de novembro de 2022, terminando assim esta sexta-feira.

Demora algum tempo até que a vítima consiga processar o que lhe aconteceu e até que encontre a coragem para o denunciar”, apontou a advogada Kenya Davis, da firma Schiller, ao Financial Times, explicando a importância de uma lei como esta.

Ao longo do último ano, foram apresentados mais de 2.700 casos, de acordo com a revista The Hollywood Reporter, que cita dados dos tribunais de Nova Iorque. E, nos últimos dias, os escritórios de advogados têm recebido uma “avalanche” de queixas, tendo em conta a aproximação do fim do prazo.

Apesar de a maior parte dos casos que vieram a público envolverem celebridades — algumas com um historial de queixas de abusos sexuais —, essa não é a realidade dos processos. Segundo a mesma revista, das 1.200 queixas apresentadas no Tribunal Supremo e das 1.500 no Tribunal de Reclamações, “a grande maioria é contra entidades governamentais, hospitais, igrejas e escolas”.

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“[O número de casos] revela a magnitude e a natureza sistémica dos abusos perpetrados em instituições que se destinam a garantir a segurança e a dar prioridade à reabilitação”, chamou a atenção o advogado Jonathan Schulman, cuja firma Slater Slater Schulman representa 1.800 casos.

O Financial Times fala ainda das prisões como o local em que se registaram mais de metade destas situações. “Até ao final da semana, terei, ao abrigo da Lei dos Sobreviventes Adultos, cerca de 630 processos apresentados. Dos quais, 600 vêm de mulheres anteriormente encarceradas que foram vítimas de abusos sexuais por parte de funcionários penitenciários”, explicou a advogada Anna Kull, sócia da firma Levy Konigsberg.

Jammie Foxx, rooftop bar, 2015

A dois dias do fim da Lei dos Sobreviventes Adultos, uma mulher acusou Eric Marlon Bishop, conhecido como Jamie Foxx, de a ter tocado sem consentimento, depois de ela e uma amiga o terem abordado num rooftop bar, em agosto de 2015.

Tribunal recebe queixa contra Jamie Foxx por agressão sexual em 2015

A descrição da queixosa refere que as duas mulheres pediram uma fotografia ao ator e que este elogiou a alegada vítima, comparando-a à atriz Gabrielle Union. De seguida, terá agarrado no seu braço, puxando-a para longe e tocando-lhe no seio sem consentimento.

Além disso, Jamie Foxx terá “colocado os dedos” na sua “vagina e ânus” até que a amiga veio em seu auxílio, visto que o guarda-costas, que alegadamente reparou no que estava a acontecer, ignorou a situação.

Horas depois de o processo ter sido apresentado no Tribunal Supremo de Nova Iorque, que exige uma indemnização devido aos danos “permanentes” na vítima, o ator norte-americano veio desmentir, dizendo que tal “nunca aconteceu”.

“Em 2020, esta pessoa intentou uma ação judicial quase idêntica em Brooklyn. O processo foi arquivado pouco tempo depois. As reivindicações não são mais viáveis hoje do que eram na altura. Estamos confiantes de que serão novamente arquivadas. E assim que o forem, o Sr. Foxx pretende apresentar uma queixa por processo malicioso contra esta pessoa e os seus advogados por voltarem a apresentar esta ação frívola”, disse o porta-voz, num comunicado enviado ao The Independent.

Axl Rose, quarto de hotel, 1989

Também na quarta-feira, foi conhecida uma queixa a envolver Axl Rose, vocalista dos Guns N’ Roses. Sheila Kennedy, antiga modelo da revista Penthouse, descreveu a noite em que foi sair para um bar noturno e acabou convidada pelo artista para ir a uma festa no seu quarto de hotel.  A ela, juntaram-se outra modelo e Riki Rachtman, que se tornou mais tarde apresentador da MTV.

“Ficou deitada, com as mãos atadas e a sangrar, enquanto ele estava numa fúria sexual”. Axl Rose acusado de violar modelo há mais de 30 anos

Já no hotel, a primeira interação sexual com Kennedy, segundo o mesmo relato, terá acontecido quando esta se dirigia à casa-de-banho e o cantor “a empurrou contra a parede e a beijou”. “Kennedy achava Rose atraente e não se tinha importado com este incidente. Estava até disposta a dormir com ele, se as coisas progredissem”, descreve a queixa.

No entanto, acabou por mudar de ideias quando o viu a ter sexo com a outra modelo. “Rose foi agressivo de uma forma que parecia dolorosa para a modelo”, descreveu, acrescentado que depois cantor terá começado a “encorajá-los a fazer sexo em grupo”.

Kennedy não concordou e saiu do quarto, tendo sido seguida pelo cantor que terá gritado: “O que raio estás a fazer aqui fora”. Depois, puxou-a “pelos cabelos” novamente para o quarto, onde “a atirou para cima da cama, de barriga para baixo e lhe atou as mãos atrás das costas”, segundo consta da queixa.

“Kennedy ficou deitada na cama com as mãos atadas atrás das costas, a sangrar, vulnerável e sozinha com Rose, enquanto ele estava num estado de fúria sexual e volátil”, continua o documento. Depois, o artista terá “penetrado à força o ânus da modelo com o seu pénis”, sem “nunca perguntar se ela o consentia”.

Assim como Jamie Foxx, Axl Rose também desmentiu as acusações. “Em termos simples, este incidente nunca aconteceu”, assegurou o advogado, Alan Gutman, citado pelo TMZ. “Embora não negue a possibilidade de ter tirado uma fotografia com a fã, Sr. Rose não se lembra de alguma vez ter conhecido ou falado com a queixosa e nunca ouviu falar destas alegações fictícias antes de hoje. Por isso, está confiante de que este caso seja resolvido a seu favor”.

Nuno Lopes, Festival de Cinema de Tribeca, 2006

Há um nome português na lista dos alegados agressores. A queixa de Nuno Lopes caiu na última segunda-feira e foi apresentada por Anna Martemucci, mais conhecida como A. M. Lukas, que o acusa de a ter “drogado e violado”, em 2006, após um evento no âmbito do Festival de Cinema de Tribeca, em Nova Iorque.

A. M. Lukas, argumentista, revelou as “poucas e horríveis recordações fragmentadas dessa noite”, em que sentiu o seu corpo “a ficar estranhamente pesado, tendo bebido apenas alguns copos de vinho”, o que a levou a ter relações sexuais não consentidas no apartamento de Nuno Lopes.

Da queixa de violação à resposta do ator (que refuta a acusação): os pontos essenciais do caso que envolve Nuno Lopes

A alegada vítima descreveu atos de “penetração” e “masturbação”, em que disse que estava com o “corpo nu e imóvel”. “Lukas não consentiu e não poderia ter consentido fazer sexo com o Sr. Lopes”, descreve a queixa, acrescentando que A. M. Lukas foi ao hospital mais próximo na manhã seguinte.

Já o ator refutou todas as acusações dizendo que é “moralmente e eticamente incapaz de cometer” esses atos. “Jamais drogaria alguém e jamais me aproveitaria de uma pessoa incapacitada, quer por excesso de álcool ou por influência de quaisquer outras substâncias. Nem hoje nem há 17 anos”, disse num comunicado publicado nas redes sociais.

Bill Cosby, The Cosby Show, 1980

Depois de o movimento #MeToo ter fechado Bill Cosby numa prisão na Filadélfia, onde passou três anos, a nova lei volta a assombrar o comediante com acusações de abusos sexuais. No último ano, pelo menos dez queixas foram apresentadas contra ele, levando a que mais de 60 mulheres tenham reportado terem sido violentadas pelo próprio. A última ocorreu na última terça-feira, referente aos anos em que The Cosby Show esteve no ar.

Uma mulher que trabalhava no programa do comediante acusou-o de a ter drogado e abusado sexualmente, após este ter-se oferecido para lhe dar dicas sobre aspetos a melhorar. Começou com conselhos no camarim sobre o guarda-roupa e evoluiu para um convite para a queixosa ir a sua casa.

Lá, a alegada vítima terá desmaiado durante um exercício de representação, após ter bebido vinho que teria sido misturado com uma toxina. Quando acordou, estava “parcialmente despida e a vomitar para dentro de uma sanita”, descreveu, citado pelo The Guardian.

Tal como os outros, Cosby também negou tais declarações. “Quando é que isto vai parar e quem vai ser o próprio homem a ser vitimizado por estas janelas do passado”, questionou o seu assessor.

Terry Richardson, sessão fotográfica, 2004

A queixa apresentada na terça-feira contra o fotógrafo Terry Richardson é mais uma no seu historial de abusos sexuais, que nasceu em 2010. Mas, desta vez, como aponta o The New York Times, talvez tenha mesmo de ir a tribunal defender-se.

A modelo espanhola Minerva Portillo recuou ao ano de 2004, quando foi contratada para fazer uma sessão fotográfica com Richardson. Na chegada ao estúdio, segundo conta, terá sido recebida com uma bebida, que acreditou ter sido “misturada com uma substância tóxica”, pois fê-la sentir-se “tonta, desorientada e sem controlo total do seu corpo”.

Já durante a sessão fotográfica, que Portillo fez de tronco nu, Richardson terá começado a posar com ela, tocando-lhe alegadamente nos seios e pressionando o seu pénis contra o seu corpo. Depois, terá “introduzido à força o seu pénis na sua boca, ordenando-a que lhe fizesse sexo oral”, enquanto a modelo dizia repetidamente que “não”.

Estas agressões foram não só vistas, como fotografas pelos funcionários de Richardson, segundo consta da queixa apresentada.

A lista inclui também o comediante Russell Brand, que teve quatro denúncias de mulheres com quem teve relações íntimas entre 2006 e 2013, nomeadamente enquanto estava casado com Katy Perry.

Comediante e influencer Russell Brand acusado de violação, agressão sexual e abuso emocional

Também o ex-Presidente Donald Trump teve de responder por suposta violação da colunista E. Jean Carroll em meados da década de 1990, num vestiário de uma loja em Manhattan – e, quando conheceu a acusação, o milionário republicano respondeu que a queixosa não “faz o seu género”. A 9 de maio deste ano, no final de um processo cível, o antigo Chefe de Estado norte-americano foi responsabilizado por abuso sexual, mas não por violação, e condenado a pagar uma indeminização de cinco milhões de dólares.

“Ela não é o meu género”. Donald Trump descredibiliza a acusação de violação de E. Jean Carroll

Também o caso da estrela de hip-hop Sean “Diddy” Combs, que foi acusado pela cantora de R&B Casandra Ventura, mais conhecida como Cassie, de a ter violado e violentado durante anos, ficou concluído mesmo antes do prazo da lei terminar.

EUA. Estrela do hip-hop Sean Diddy Combs acusado de violação pela cantora Cassie

O artista, acusado de “frequentes murros, pontapés e pisões, resultando em hematomas, lábios rebentados, olhos roxos e sangramento”, chegou a um acordo com Cassie, apesar de ter sempre negado os factos, como destaca o The Guardian.