Durante a pandemia de Covid-19, quando o mote passou a ser “Fica em casa”, foi isso que muitos dos quase quatrocentos cientistas do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB), da Universidade NOVA de Lisboa, fizeram.
Ficaram em casa, mas muito inquietos. Sempre a tentarem perceber como podiam ajudar e que contributo podiam dar para a enorme crise de saúde pública que se desenrolava. “E foi então que a Catarina Pimentel teve uma ideia”, lembra Mónica Serrano, investigadora do ITQB/NOVA.
A ideia da (também) cientista no ITQB foi esta: se um dos maiores problemas era não haver testes de Covid disponíveis, porque não fazerem um? “Havia falta de plásticos, de zaragatoas, de reagentes”, recorda Mónica Serrano. “Não se conseguia testar mais, porque não havia material.” Mas o ITQB tinha condições para contornar o problema: podia fazer, com os recursos existentes no instituto sediado em Oeiras, a produção e purificação das proteínas necessárias para criar um teste diferente do antigénio e do PCR (reação em cadeia da polimerase) que estavam em falta.
E assim criaram um teste com base na tecnologia LAMP (amplificação isotérmica mediada por loop) para diagnosticar a Covid-19 em amostras de saliva. Um teste de baixo custo, que não exige instrumentos muito complicados para ser produzido nem pessoal muito especializado e que é de fácil implementação. Usaram-nos várias vezes para testar os trabalhadores do ITQB na altura em que terminou o confinamento e todos começaram a voltar ao local de trabalho.
Resultou tão bem que Mónica Serrano está agora a desenvolver um projeto – financiado em 49 mil euros pela Fundação “la Caixa” e noutros 50 mil pelo Fundo Prova de Conceito InnOvalley (IOV PoC), do gabinete de inovação partilhado com o Instituto Gulbenkian de Ciência e o Município de Oeiras – para testes semelhantes que possam detectar outros agentes patogénicos (causadores de doenças) de forma simples. O projeto usa como prova de conceito [forma de testar e comprovar, na prática, uma ideia, criando um protótipo] o SARS-CoV-2, mas, demonstrada a viabilidade com este vírus, pode ser adaptado a qualquer outro patógeno. E esse é também o seu grande trunfo.
As doenças infeciosas – causadas por vírus, bactérias e fungos – provocam a morte de mais de 17 milhões de pessoas todos os anos em todo o planeta. E um dos grandes desafios é precisamente o diagnóstico, já que quase metade da população mundial tem acesso limitado aos testes, nomeadamente de PCR e antigénio, que existem atualmente. Por isso, uma das grandes prioridades é encontrar métodos de diagnóstico baratos e fáceis de implementar de forma rápida a grande escala.
“Preparedness” – ou preparação – é um conceito que marca desde sempre o discurso em saúde pública, mas que ganhou outra dimensão no pós-pandemia. Os surtos de agentes infecciosos são imprevisíveis e a única forma de lidar com eles o melhor possível é com preparação prévia. Por isso, a ideia premiada desta equipa é criar um teste que se consegue implementar a grande escala quase de um dia para o outro.
A partir do momento em que conhecemos o genoma do agente infeccioso com que estamos a lidar, em princípio em cerca de uma semana conseguimos implementar este nosso teste”, explica a cientista Mónica Serrano.
Partindo da experiência que tiveram com a criação do teste LAMP para o SARS-CoV-2, durante a pandemia, estão agora a tentar aperfeiçoar a tecnologia para que seja ainda mais fácil de produzir e implementar.
“Como configurado inicialmente, o teste ainda dependia da produção de enzimas e da purificação em várias etapas, o que exigia semanas de trabalho.” Mas, para simplificar e agilizar o processo, resolveram usar um agente que Mónica conhece bem: a Bacillus subtilis, uma bactéria não patogénica, com que trabalha há muitos anos em conjunto com o investigador Adriano Henriques.
É um organismo que forma esporos – estruturas pequenas e extremamente resistentes – “que podem ser usadas como uma plataforma para apresentar coisas à superfície da bactéria”. Coisas como o antigénio, que mostra se um teste é positivo ou negativo para o agente patogénico.
Uma das grandes vantagens dos esporos é a sua resistência. Se este teste vingar, além de não serem necessários técnicos altamente qualificados nem equipamento de grandes dimensões, haveria outro benefício: “Graças à elevada resistência dos esporos ao calor, não seriam necessários equipamentos frigoríficos para preservar os reagentes, o que permitiria uma fácil implementação em situações de baixos recursos económicos”, explica Mónica Serrano.
A cientista de 49 anos trabalha há 25 com organismos que só se veem ao microscópio, mas, curiosamente, escolheu a licenciatura em Biologia, na Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa, por ter um fascínio com animais de grande porte. Por causa da National Geographic, imaginava-se como David Attenborough, a observar e estudar animais a correr nas savanas ou montanhas. Mas, na faculdade, o estudo destes animais era feito sobretudo através daquilo que eles deixavam para trás, como as fezes e os rastos. E isso já não a entusiasmava, pelo que acabou por desistir de seguir a vertente de Biologia Animal, optando em vez disso, por Biologia Microbiana e Genética.
Quando acabou a licenciatura, não lhe foi óbvio se queria seguir a carreira científica. “Via os estudantes de doutoramento sempre com um ar muito muito stressado.” Passou então os dois anos seguintes a fazer investigação, com bolsas, em jeito de ensaio, antes de se decidir a avançar para o doutoramento, que fez no laboratório de Desenvolvimento Microbiano de Adriano Henriques, no ITQB/NOVA, onde ainda hoje está. Tem por isso um percurso atípico: exceção feita a alguns estágios ou deslocações de curta duração ao estrangeiro, fez toda a carreira em Portugal.
A cientista faz investigação fundamental, a arte de trabalhar sem saber para o que servirão no futuro as conclusões a que chega. “Às vezes podemos achar que o trabalho que estamos a fazer não tem grande utilidade, que não vai ter grande impacto e, se calhar, uma década ou duas mais tarde vai contribuir para um breakthrough”.
A ciência está cheia de histórias que mostram isso, como a da cientista húngara Katalin Karikó, que começou a estudar o RNA mensageiro nos anos 1980. “Ela ouviu muitas vezes dizer que o que estava a estudar não servia para nada, mas manteve aquela linha de investigação durante décadas”, exemplifica. Ganhou o Nobel da Medicina este ano, juntamente com Drew Weissman, porque o seu trabalho com RNA que “não servia para nada”, serviu afinal para criar as vacinas contra a Covid-19.
Apesar da sua área ser a investigação fundamental, durante a pandemia a investigadora teve algum contacto com a investigação mais aplicada e ganhou-lhe o gosto. Além dos testes que desenvolveram para os trabalhadores do ITQB, ela e Catarina Pimentel também criaram um projeto de monitorização da COVID-19 na comunidade escolar de Oeiras através de um teste PCR com saliva.
Foi a primeira vez que sentiu o impacto que aquilo que fazia no laboratório tinha na vida das pessoas. Gostou, sentiu vontade de dedicar mais tempo a isso e foi assim que nasceu este projeto de desenvolvimento de uma alternativa mais barata e rápida para a deteção de agentes patogénicos. Investigar com a expectativa de poder aplicar, conta, “é a cereja no topo do bolo.”
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto do novo teste para detecção de doenças infecciosas liderado por Mónica Serrano, investigadora do ITQB, foi selecionado para financiamento (49 mil euros) pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2023 do CaixaImpulse Validate, um programa que promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2024 deverão abrir em breve.