Desde que entrou em funções, em maio do ano passado, o Grupo VITA, organismo criado pelos bispos católicos para acompanhar vítimas de abusos sexuais e para capacitar a Igreja para a proteção de menores, já recebeu quase 500 contactos e, dentro desse universo, recebeu pedidos de ajuda não só de mais de uma centena de vítimas como também de um abusador, que foi encaminhado para ajuda psicológica. Um balanço apresentado esta terça-feira pelo organismo, liderado pela psicóloga Rute Agulhas, traz vários dados reveladores desta realidade: 39 pessoas já pediram uma compensação financeira e 15,5% das vítimas chegaram a tentar o suicídio. Várias revelam que os seus abusadores usaram Deus e a religião para justificar os abusos — e, ouvidas sobre o que pensam que a Igreja devia fazer para acabar com o drama dos abusos, muitas sugerem o fim do celibato dos padres.

De acordo com o balanço, que foi apresentado ao início da tarde durante uma conferência de imprensa em Fátima, no primeiro ano de funcionamento o Grupo VITA recebeu um total de 485 chamadas telefónicas na sua linha de atendimento. O grupo assume que vários dos contactos que recebeu diziam respeito a situações fora do seu âmbito de ação — e 28 denúncias foram mesmo encaminhadas para outras entidades —, mas, feitas as contas, através de todas as vias de contacto (linha telefónica, formulário no site e e-mail), o Grupo VITA identificou ao longo do último ano um total de 105 vítimas de violência sexual no contexto da Igreja. Também uma pessoa — um leigo — que cometeu crimes sexuais contactou o grupo. Trata-se, diz o relatório de uma situação que já tinha sido “sinalizada às entidades competentes”, tanto no âmbito penal como no âmbito canónico — e o abusador foi já encaminhado para apoio psicológico com um profissional da bolsa criada pelo Grupo VITA.

Dentro do universo total de contactos recebidos, o Grupo VITA realizou um total de 64 atendimentos com vítimas, e concluiu que cinco delas não preenchiam os critérios de “adulto vulnerável”. Por essa razão, foram encaminhadas para os bispos das respetivas dioceses, uma vez que diziam respeito a casos de padres que violaram os seus votos. Por outro lado, houve também 28 pedidos de ajuda que não diziam respeito à missão do Grupo VITA, incluindo abusos dentro da família e situações de violência doméstica, que foram encaminhadas para entidades como câmaras e autoridades policiais.

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O relatório apresentado esta terça-feira pelo Grupo VITA dá ainda conta do acompanhamento que já está a ser prestado às vítimas — nomeadamente por parte dos 67 psicólogos e cinco psiquiatras que compõem a bolsa de profissionais criada pelo Grupo VITA. Um total de 23 vítimas já foi encaminhada para apoio psicológico, enquanto cinco pessoas foram encaminhadas para apoio psiquiátrico, cinco para apoio social, uma para apoio jurídico e uma para apoio espiritual.

Por outro lado, 39 pessoas já sinalizaram a intenção de receber uma compensação financeira da parte da Igreja Católica por terem sofrido abusos sexuais às mãos do clero. Este pedido foi feito ao abrigo de um mecanismo anunciado em abril pelos bispos e que vai passar pela atribuição de valores monetários destinados a ajudar as vítimas a lidar com as consequências dos abusos. Esses montantes vão ter origem num fundo criado pela própria Igreja, com contribuições de todas as dioceses portuguesas.

[Já saiu o sexto e último episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo, aqui o terceiro, aqui o quarto episódio e aqui o quinto episódio.]

Vítimas são maioritariamente rapazes e sofreram abusos com 11 anos

A maioria dos casos que chegaram ao conhecimento do Grupo VITA durante este ano de funcionamento são novas. Na verdade, de acordo com o relatório, só 27,5% das situações tinham sido apresentadas à Comissão Independente, organismo liderado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht que, entre 2021 e 2023, estudou a realidade dos abusos sexuais de menores e, a partir de 512 testemunhos diretos, estimou em 4.815 o número de casos de abusos de menores ocorridos na Igreja Católica em Portugal entre 1950 e 2022. Trata-se, ainda assim, de casos maioritariamente ocorridos entre as décadas de 1960 e 1980 — embora tenha havido também registo de casos mais recentes.

Segundo uma análise estatística que tem por base os dados referentes a 58 vítimas, cujos atendimentos tinham acontecido até à elaboração do relatório, a maioria das vítimas (60,3%) é do sexo masculino e a idade média das vítimas ouvidas pelo grupo é de 53,8 anos (a mais nova tem 19 e a mais velha 75). Em termos médios, a primeira situação de violência sexual ocorreu entre os 11 e os 12 anos de idade das vítimas — embora haja vítimas que relatem abusos ocorridos com idades tão baixas como cinco anos, e também quem relate abusos ocorridos até aos 25 anos.

As vítimas ouvidas pelo Grupo VITA eram todas de nacionalidade portuguesa e o tempo médio de duração dos atendimentos em que contaram as suas histórias foi de duas horas e meia. A maioria dos casos (67,2%) diz respeito a vítimas que viviam com a sua família nuclear, enquanto cerca de 31% das vítimas viviam em instituições como seminários, casas de acolhimento ou colégios. No que diz respeito à distribuição geográfica dos casos, a maioria ocorreu na região Norte (20 casos), seguida de Lisboa e Vale do Tejo (17), Centro (15), Madeira (3), Alentejo (2) e Açores (1). Nenhuma vítima do Algarve falou ao Grupo VITA.

Abusos ocorreram em confessionários e sacristias

Já no que diz respeito aos abusadores, a esmagadora maioria (98,3%) eram homens, havendo apenas registo de uma mulher como autora dos abusos. De igual forma, a esmagadora maioria (91,4%) em padres. Em quase todos os casos (89,7%), a vítima e o abusador conheceram-se num contexto diretamente ligado à Igreja.

O relatório diz ainda que o contexto mais frequente para os abusos (32,8% dos casos) foi a própria igreja, com destaque para o confessionário e a sacristia. Seguem-se as instituições (20,9%) e houve ainda casos ocorridos em casas paroquiais, carros de padres, casas de férias e seminários. Hoje em dia, mais de metade das vítimas (55,2%) dizem-se católicas, enquanto 21% dizem participar frequentemente em atos religiosos.

O tipo de abuso mais frequente registado nos casos atendidos pelo Grupo VITA foi a ocorrência de toques, carícias e beijos em zonas erógenas. Houve também casos de manipulação de órgãos genitais, conversas sexuais, masturbação e penetração.

O Grupo VITA recorda ainda no seu relatório que os casos são sinalizados à Procuradoria-Geral da República e à PJ os casos de violência sexual, “exceto nas situações em que o denunciado tenha falecido ou quando tenha já decorrido, ou esteja a decorrer, processo judicial de natureza criminal”. Por outro lado, são sinalizadas às estruturas da própria Igreja Católica todos os casos, para que possam decorrer os processos internos. Nesse sentido, o Grupo VITA já sinalizou 66 casos à Igreja e 24 à PGR e PJ.

Houve tentativas de suicídio em 15,5% das vítimas

No relatório, o Grupo VITA descreve também os principais impactos que os abusos sexuais tiveram nas vítimas. O principal destaque vai para os impactos emocionais, com 58,6% das vítimas a sentir raiva e 46,6% a sentir vergonha pelo que sentiu. Também nas crenças religiosas os abusos têm impacto, com 43,1% a relatarem alterações nas suas crenças e 29,3% a descreverem pensamentos intrusivos. Por outro lado, há também impactos como alterações no sono (em 33% das vítimas) e dificuldades ou disfunções sexuais (em 25,9% dos casos).

Do ponto de vista comportamental, o relatório diz que se identificaram tentativas de suicídio em 15,5% das vítimas, situações de isolamento em 29%, tentativas de evitar locais e pessoas em 25,9% e agressividade em 19%. “Globalmente, os dados parecem apontar para um impacto mais significativo em situações em que a vivência abusiva ocorreu mais do que uma vez”, diz o documento.

O Grupo VITA explica ainda que muitas vítimas descreveram “a forma gradual como foram aliciadas pelo agressor, o que corresponde ao chamado processo de grooming“. Trata-se de um “processo de manipulação, no qual um indivíduo constrói gradualmente uma conexão emocional com outra pessoa, especialmente vulnerável em razão da idade, maturidade, saúde física ou psicológica ou outra, tendo em vista a preparação para a violência sexual“.

“Penetrou-me com os dedos e disse ‘agora já sabes o que são pensamentos maus'”

Além da análise estatística, o relatório inclui também alguns relatos sobre a realidade das situações abusivas vividas pelas vítimas. Um dos principais destaques é o modo como os abusadores, na sua maioria sacerdotes, usaram a religião como justificação para a violência sexual. “O padre perguntou-me na confissão da minha primeira comunhão se eu sabia o que eram pensamentos maus e eu nem sabia o que isso era. Então ele penetrou-me com os dedos e disse ‘agora já sabes o que são pensamentos maus’“, contou uma das vítimas ao grupo.

“Mandava-me confessar porque o pecador era eu”, recordou outra das vítimas. “Dizia que era a vontade de Deus, que era Deus quem queria“, acrescentou outra. De acordo com o Grupo VITA, este tipo de declarações mostra “uma tentativa de induzir culpa nas vítimas, fazendo-as sentir-se responsáveis pela violência sofrida. Este argumento da religião cria um ambiente onde as vítimas sentiam que desobedecer ao agressor seria desobedecer a uma autoridade divina.”

Outras vítimas revelaram também estratégias de intimidação levadas a cabo pelos abusadores. “Ameaçava com o Inferno por eu pecar contra a castidade sozinho, que era um pecado“, contou uma vítima. “Dizia, não podes dizer a ninguém senão os teus pais vão morrer”, disse outra. “No final dizia que ficava entre nós e Deus, que não podia contar senão ia para o Inferno ou para a prisão”, assinalou ainda outra vítima. “Este tipo de intimidação não só silenciava as vítimas, como também reforçava a sensação de impotência e isolamento”, sintetiza o grupo liderado por Rute Agulhas.

“A partir dos temas identificados, é possível entender melhor a dinâmica de poder e controlo que os agressores exerciam sobre as vítimas atendidas, até ao momento, pelo Grupo VITA: o uso da religião como ferramenta de manipulação, não só confere uma falsa legitimidade às ações do agressor, como também aprofunda os sentimentos de culpa e a responsabilidade nas vítimas”, lê-se no relatório. “Este tipo de abuso psicológico cria danos graves nas vítimas, ao manipular as suas crenças religiosas fundamentais, tornando-as mais vulneráveis e menos propensas a pedir ajuda.”

“A intimidação através do medo do Inferno ou de consequências divinas cria um ambiente de constante terror psicológico. As vítimas, temendo a punição eterna, são forçadas a manter o silêncio e a submeter-se à violência, reforçando a sensação de impotência e desesperança. A manipulação emocional, por sua vez, confunde as vítimas e cria um aparente vínculo emocional que dificulta a resistência. A alternância entre violência e aparentes demonstrações de afeto cria um ciclo de violência que aprisiona as vítimas num estado de confusão emocional, dificultando a quebra desse mesmo ciclo”, destaca ainda o relatório.

Vítimas pedem fim do celibato e normalização da sexualidade dos padres

Nos contactos com o Grupo VITA, as vítimas foram também questionadas sobre o que consideravam que a Igreja devia fazer para evitar a violência sexual. Além de recomendarem a criação de canais de denúncia, muitas das vítimas pediram uma “revisão das questões do celibato na Igreja“. De acordo com o relatório, houve mesmo pessoas que pediram mesmo para os “padres poderem casar“, para se “acabar com o voto de castidade” e para “haver menos tabus relativamente à sexualidade dos padres e permitir que estes namorem e casem”.

Além disso, as vítimas pedem também que sejam criados códigos de conduta para os sacerdotes, que haja uma “expressão e vivência da sexualidade de um modo mais saudável” entre o clero e ainda que a própria ação da Igreja Católica relativamente aos menores ocorra num ambiente mais preventivo.

Em paralelo com o trabalho do Grupo VITA, estão também a ser desenvolvidos vários projetos de investigação em parceria com a academia — esta é, aliás, uma das prioridades atuais do grupo de Rute Agulhas —, incluindo um sobre as questões do celibato. Há atualmente cinco projetos de investigação em curso, incluindo um intitulado “Vivências do celibato no contexto da Igreja Católica em Portugal: Um estudo quantitativo com seminaristas, diáconos, padres e religiosas“.

Na conferência de imprensa desta terça-feira, o Grupo VITA fez também um balanço das atividades que tem desenvolvido ao longo do último no âmbito da formação e capacitação dos agentes da Igreja Católica para a questão da proteção de menores, incluindo ações de formação e a edição de materiais de apoio para os membros da Igreja. Um deles, apresentado esta terça-feira, é o “Kit VITA”, um “recurso prático” destinado a facilitar a “promoção de boas práticas, podendo ser utilizado por agentes formativos na dinamização de ações dirigidas a padres, diáconos, agentes pastorais, elementos de IPSS católicas e demais estruturas eclesiásticas”.