Gisèle Pélicot, a mulher francesa que foi violada por mais de 80 homens, a convite do marido, testemunhou esta quarta-feira em tribunal. Gisèle, que está a ser tratada pelo primeiro nome na justiça, para a diferenciar de Dominique Pélicot, relatou que, apesar de tentar manter-se forte e calma em público, está “em ruínas” com a “tortura” a que foi sujeita, declarações citadas no The Guardian.

Em 2020, aos 68 anos, Gisèle descobriu que tinha sido violada quase uma centena de vezes, por dezenas de homens. O marido drogava-a, convidava homens a entrar na sua casa para a violar e gravava as agressões. A mulher abdicou do direito à privacidade, para tornar público o julgamento, que começou na quarta-feira. Esta quinta-feira, foi a sua vez de testemunhar perante o coletivo de cinco juízes.

Violada 100 vezes por 80 homens a mando do marido. O caso de Gisèle Pélicot que está a chocar França

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“O meu mundo desabou. Para mim, tudo estava tudo a desabar. Tudo o que construímos ao longo de 50 anos”, partilhou Gisèle, que só soube das violações sistemáticas quando a polícia encontrou os vídeos gravados por Pélicot no seu computador, em novembro de 2020. A mulher afirmou que só conseguiu olhar para as imagens em maio de 2023: “são cenas de horror para mim”.

Explicando a sua decisão de tornar o julgamento público, declarou que o fazia “por todas as mulheres” que já foram agredidas e drogadas, para que mais nenhuma “tenha de sofrer isto”. Mais do que violações, descreve aquilo por que passou como “tortura”.

“Fui sacrificada no altar do vício. Eles olhavam para mim como uma boneca de trapos, como um saco do lixo. Quando se vê uma mulher drogada, maltratada, uma pessoa morta numa cama — claro que o corpo não está frio, está quente, mas é como se eu estivesse morta”, descreveu.

O jornal britânico descreve que Gisèle se manteve calma e falou sempre com voz clara, postura que foi elogiada pela sua “força”. A mulher respondeu que a força era apenas aparente e que por dentro estava “em ruínas”, sem saber como o seu corpo sobreviveu aos abusos e como a mente sobrevive agora em escrutínio na justiça.

Sem memórias, ficaram as marcas no corpo

Drogada pelo marido, Gisèle não se lembra dos abusos que sofreu e quando olhou para as imagens não se reconheceu e “quis morrer”. Questionada sobre se houve alguma alteração nos seus hábitos ou no corpo, que não conseguia justificar, respondeu afirmativamente.

Relatou, então, que começou a ter graves dificuldades de concentração e de memória. Deixou mesmo de apanhar o comboio sozinha, porque tinha medo se não sair na estação correta. Além disso, perdeu muito peso, tinha dificuldades motoras num braço e experienciou problemas ginecológicos, tendo sido diagnosticada com múltiplas doenças sexualmente transmissíveis, já durante o decorrer investigação criminal.

Mentalmente, destacou o momento em que teve de contar aos três filhos já adultos, aquilo a que tinha sido sujeita pelo pai deles. “O grito [da filha] ficou gravado na minha memória”, relatou.

No seu testemunho, Gisèle assinalou ainda que casou aos 21 anos, esteve casada com Pélicot mais de 50 e sempre se sentiu apoiada por ele. “Não erámos ricos, mas éramos felizes. Até os nossos amigos diziam que erámos o casal ideal. Agora, já não tenho uma identidade…Não sei se alguma vez serei capaz de me reconstruir“, partilhou.

Gisèle foi acompanhada no tribunal pelos três filhos e o advogado, sentando-se na ponta oposta do marido na sala de audiências. O julgamento, no tribunal de Avignon, deverá durar quatro meses e Pélicot e outros 50 arguidos podem enfrentar até 20 anos de prisão pelas violações.