O Vaticano e a Bélgica estão envolvidos numa polémica diplomática depois de o Papa Francisco ter criticado a liberalização do aborto durante uma viagem à Bélgica, um país que se encontra atualmente a debater a possibilidade de alargar de 12 para 18 semanas o prazo legal para realizar uma interrupção voluntária da gravidez.

Na sequência de uma conferência de imprensa em que o Papa Francisco classificou os médicos que realizam abortos como “sicários” e em que elogiou a “coragem” de um antigo rei que recusou promulgar uma lei que despenalizou o aborto, o primeiro-ministro belga já anunciou que convocou o embaixador da Santa Sé para uma reunião em que vai frisar à diplomacia do Vaticano que as declarações do Papa foram “inaceitáveis”.

O Papa Francisco esteve em viagem apostólica ao Luxemburgo e à Bélgica nos dias 26-29 de setembro. Na habitual conferência de imprensa a bordo do avião de regresso a Roma, uma jornalista belga questionou o Papa sobre a sua visita ao túmulo do Rei Balduíno, que “causaram algum espanto na Bélgica” e foram consideradas “uma ingerência política na vida democrática” do país.

Em 1990, Balduíno renunciou ao trono da Bélgica por recusar promulgar uma lei aprovada pelo parlamento belga com vista à despenalização do aborto. Durante a recente viagem à Bélgica, Francisco visitou o túmulo de Balduíno e anunciou que o Vaticano ia dar início ao processo de beatificação do antigo monarca. “Que o seu exemplo de homem de fé ilumine os governantes. Peço que os bispos belgas se empenhem para levar por diante esta causa”, disse o Papa em Bruxelas.

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Já depois da visita, na viagem de regresso a Roma, o Papa foi questionado sobre se o processo de beatificação do antigo rei estava “ligado às suas posições” acerca do aborto e sobre o modo como era possível “conciliar o direito à vida (…) com o direito das mulheres a terem uma vida sem sofrimento”.

Em resposta, Francisco deixou rasgados elogios ao antigo monarca. “O rei foi corajoso porque, perante uma lei de morte, não assinou e demitiu-se. É preciso coragem! É preciso um político ‘que veste calças’ para fazer isso. É preciso coragem. Esta é uma situação especial e, com isso, ele transmitiu igualmente uma mensagem. E fê-lo também porque era um santo. Aquele homem é um santo e, porque me deu provas disso, o processo de beatificação continuará”, disse o Papa.

“Relativamente às mulheres, elas têm direito à vida: à sua vida, à vida dos seus filhos. Mas não nos esqueçamos de dizer o seguinte: o aborto é um homicídio. A ciência diz-nos que, um mês após a conceção, já todos os órgãos estão formados. Mata-se um ser humano! E os médicos que se prestam a isso são — permitam-me a palavra — sicários. São uns sicários. E isto é indiscutível. Mata-se uma vida humana. As mulheres têm o direito de proteger a vida. Os métodos contracetivos são uma outra coisa. Não se deve confundir. Agora estou a falar apenas do aborto. E isso não se discute. Peço desculpa, mas é a verdade”, acrescentou.

Francisco repetia uma expressão que já tinha usado outras vezes. Em outubro de 2018, por exemplo, comparou o aborto à contratação de um assassino a soldo “para resolver um problema”.

Papa Francisco defende que o aborto é como contratar um assassino

“O tempo em que a Igreja ditava o nosso trabalho já ficou lá atrás”

As declarações do Papa Francisco foram mal recebidas em Bruxelas. Esta quinta-feira, o primeiro-ministro belga, Alexander De Croo, anunciou no parlamento que que iria convocar o embaixador da Santa Sé em Bruxelas, o arcebispo Franco Coppola, para uma reunião por considerar as palavras de Francisco uma ingerência nas questões internas da política belga.

“A minha mensagem será clara. O que aconteceu é inaceitável”, disse De Croo durante um plenário do parlamento belga na quinta-feira, de acordo com o jornal belga Le Soir. “É totalmente inaceitável que um chefe de Estado estrangeiro faça este tipo de declarações sobre as leis do nosso país. O tempo em que a Igreja ditava o nosso trabalho já ficou lá atrás.”

O primeiro-ministro também lamentou que a visita do Papa Francisco ao túmulo do Rei Balduíno tenha sido “menos privada do que o que tinha sido anunciado”. Segundo o governante, o plano era a visita de Francisco àquele local só ser divulgada depois de ter acontecido.

A polémica intensificou-se depois de o reitor da Universidade de Livre de Bruxelas, Jan Danckaert, ter publicado um artigo de opinião no jornal belga De Standaard em que atacou a intervenção do Papa Francisco, classificando-a como insultuosa.

“É inédito que um chefe de Estado estrangeiro — porque é isso que o Papa Francisco é — assuma que tem o direito de atacar uma lei de outro país, que é democrático”, escreveu Danckaert, considerando que as palavras do Papa “não apenas insultam os médicos que efetuam abortos, mas também a Bélgica e a sua população”.

O jornal Crux recorda que a ministra da Administração Interna da Bélgica, Annelies Verlinden, também já tinha criticado o Papa Francisco esta semana por ter feito uma declaração “desnecessariamente dolorosa para as mulheres e para os prestadores de cuidados de saúde”. A expressão “um político ‘que veste calças'” também foi vista como pouco adequada, pela conotação discriminatória — sobretudo no contexto de uma visita que já tinha sido marcada por declarações controversas sobre o papel da mulher na sociedade.