O plano Varoufakis foi aceite esta terça-feira pelo Eurogrupo, mas não sem reservas da parte de instituições como o FMI ou o BCE. Para já, ganha tempo ao Governo grego. Leia-se, dá-lhes margem para, até abril, apresentar tudo mais detalhado e começar a governar. Mas não dá financiamento.

Vale a pena agora olhar em maior detalhe para este documento e perceber o que convenceu os parceiros e as “instituições”, mas também o que lhes deixou dúvidas – e até o que ficou de fora do anterior programa eleitoral do Syriza. Uma leitura acompanhada, sempre que possível, do que a troika implementou noutros países sob assistência, como Portugal. Vamos por pontos. Sendo que tem aqui o original do plano, se quiser uma leitura mais direta.

As partes do plano que são do agrado do Eurogrupo

Há várias medidas na lista de sete páginas que merecem apoio franco dos países do euro, assim como das instituições. Veja-se, desde logo, nas questões fiscais:

  • Varoufakis e Tsipras prometem fazer “esforços robustos para melhorar a receita e combater a evasão“, recorrendo por exemplo, “a meios eletrónicos e outras inovações tecnológicas”
  • Falam também da “racionalização das taxas do IVA”, que serão “simplificadas de formar a maximizar a receita” – o que pode levar ao aumento de taxas em alguns produtos (como aconteceu em Portugal no início da troika). O governo grego diz, mesmo assim, que o fará “sem haver um impacto negativo na justiça social”. Solução para a quadratura do círculo? A “limitação de isenções ao mesmo tempo que são eliminadas deduções irrazoáveis.”
  • Compromete-se também a “alargar a definição de fraude e evasão fiscal e eliminar a imunidade fiscal” – indiciando vontade de combater um dos maiores problemas do país.
  • Para ganhar receita há também a “modernização do código do IRS”, retirando dele “as isenções fiscais”. Aqui há uma leve indicação de uma redistribuição, quando se diz que estas isenções serão substituídas “quando necessário, por medidas de reforço da justiça social.”
  • De novo no quadro do combate à fraude e evasão: “Trabalhar no sentido de criar uma nova cultura de cumprimento das obrigações fiscais para assegurar que todos os quadrantes da sociedade, e especialmente os que têm maiores rendimentos, contribuam de forma justa para o financiamento das políticas públicas. Neste contexto, com a assistência dos parceiros Europeus e internacionais, será criada uma base de dados da riqueza que ajudará as autoridades tributárias a aferir a veracidade dos rendimentos declarados para efeitos fiscais.”

Na lista foram também colocadas medidas que serão bem vistas pelos parceiros no que respeita à gestão das Finanças Públicas. Por exemplo:

  • “Adotar alterações à Lei de Enquadramento Orçamental e dar passos para melhorar a gestão financeira pública. A implementação do orçamento será melhorada e clarificada tal como o controlo e responsabilidades de reporte. Procedimentos relativos aos pagamentos serão modernizados e acelerados”, diz o documento, “ao mesmo tempo que será dado um elevado grau de flexibilidade orçamental, financeira e de accountability às entidades independentes ou reguladores.” Tudo isto foi seguido em Portugal, com o acompanhamento da troika, com a chamada Lei dos Compromissos a provocar polémica pela dificuldade dos serviços em obter autorizações de despesa do Ministério das Finanças.  
  • Mais: “Elaborar e implementar uma estratégia para a liquidação de pagamentos em atraso, reembolsos fiscais e pedidos de pensões de reforma.” Foi sempre parte das exigências da troika, embora com dificuldades de implementação.
  • “Transformar o já estabelecido (embora até agora pouco ativo) Conselho Orçamental numa entidade totalmente operacional”. Não é muito diferente do Conselho de Finanças Públicas em Portugal, devidamente incentivado pelos parceiros.
  • No mesmo sentido, promete-se “modernizar as administrações fiscal e aduaneira”, nomeadamente no que respeita ao “processo de nomeação, avaliação e substituição” homem forte do Fisco, que será independente e “plenamente responsável” – sempre com a “assistência técnica” das instituições. O Fisco terá “os recursos humanos adequados” e “fortes poderes de investigação/acusação”. Há no documento várias alusões aos “grupos de elevado rendimento”, alvo preferencial nos discursos do Syriza na campanha.

Quanto à despesa, há também pontos a registar positivamente pela troika. Vejamos:

  • “Rever e controlar os gastos em todas as áreas da despesa pública (por exemplo, educação, defesa, transportes, administração local, benefícios sociais)” – todas elas áreas sensíveis e de grande peso no total de despesa pública. Falta aqui a Saúde, mas essa está na parte mais cinzenta da lista (na ótica da troika).
  • “Trabalhar no sentido de melhorar drasticamente a eficiência dos departamentos e unidades administrados a nível central ou local”.
  • “Identificar medidas de redução de custos através de análise completa à despesa de cada ministério e da racionalização da despesa não salarial e não relacionada com pensões”. O Governo grego anota que esta “representa um espantoso peso de 56% na despesa pública total”, sinalizando que há margem para cortar.
  • Há até uma promessa de corte, a lembrar a Lei dos Suplementos que há muito foi prometida em Portugal e que só agora ganhou letra de lei: “Aplicar a legislação para rever benefícios não salariais no setor público”.
  • Lembra-se dos cruzamentos de dados entre Fisco e Segurança Social? Está também na lista grega: “Validar benefícios através de controlos cruzados entre autoridades relevantes e de registos (por exemplo, número de contribuinte e de segurança social), o que ajudará a identificar beneficiários não elegíveis.”

Agora vejamos a Segurança Social, área sempre delicada, ainda mais tendo em conta o programa do Syriza. A promessa é de “consolidar os fundos de pensões para conseguir poupanças” – uma palavra sempre anotada ao longo do documento.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Segue-se a luta contra a “corrupção“, questão sempre fácil de negociar com os credores.

  • “Transformar o combate à corrupção numa prioridade nacional e operacionalizar plenamente o Plano Nacional Contra a Corrupção.
  • Atacar o contrabando de combustível e tabaco, monitorizar os preços de bens importados (para evitar perdas de receita durante o processo de importação), e combater a lavagem de dinheiro”. São receitas do Estado, tudo o que vier é encaixe.
  • Reduzir o número de ministérios, “assessores especiais” no governo e benefícios extra de políticos. A redução de despesa é pequena, mas sempre bem-vinda. O mesmo se passa com a “legislação relativa ao financiamento dos partidos políticos” e aos tetos de “endividamento” destes.
  • Surpreendentemente (e com contornos ainda não percebidos) há até uma menção a novos leilões de frequências dadas a órgãos de comunicação social que sejam “permanentemente deficitários”.
  • Promete-se um “quadro institucional transparente para concursos públicos”.

No que respeita à Administração Pública, há promessa de “racionalizar benefícios não salariais, para reduzir a despesa global, sem pôr em risco o funcionamento do setor público e de acordo com as boas práticas da UE”. E mais uma nota:

  • “Promover medidas para: melhorar os mecanismos de recrutamento, incentivar nomeações com base no mérito, avaliar de forma genuína as equipas, e estabelecer processos justos para maximizar a mobilidade dos recursos humanos e outros recursos dentro do setor público” – todas elas dentro do guião habitual da troika.

Passagem agora pelo capítulo da “estabilidade financeira”, onde a Grécia se compromete a:

  • Para dar garantias ao BCE: “Utilizar plenamente o Fundo Grego de Estabilidade Financeira e assegurar, em colaboração com o Mecanismo Único de Supervisão (SSM), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia, que desempenha adequadamente o seu papel crucial na garantia da estabilidade do setor bancário e os seu empréstimos numa base de mercado em respeito das regras de concorrência da UE.”
  • Uma promessa eleitoral aqui condicionada, para tranquilizar Frankfurt: “Lidar com o crédito malparado de uma forma que considere totalmente a capitalização dos bancos, o funcionamento do sistema judicial, o estado do mercado imobiliário, as questões de justiça social, e qualquer impacto adverso sobre a situação orçamental do Estado.”
  • Alinhar a legislação sobre decisões fora de tribunal com os novos mecanismos de pagamento quando estes forem alterados, para limitar os riscos para as finanças públicas e para a cultura de pagamento, ao mesmo tempo que facilita a reestruturação de dívida privada.

Por fim, as reformas para a economia:

  • No que respeita a privatizações, o Governo compromete-se a não reverter as já concluídas. E a “respeitar” aquelas “em que o processo de licitação foi já lançado”.
  • Também promete “proteger o fornecimento de bens e serviços públicos básicos por empresas / indústrias privatizadas”.
  • No que respeita ao mercado de trabalho, há um compromisso de “expandir e desenvolver o mecanismo existente de emprego temporário para os desempregados” e políticas ativas de emprego, muito à semelhança do que existe em vários outros países da UE, mas prometendo-se a proteger o “acordo com os parceiros e desde que a margem orçamental” o permita. Neste ponto há questões em aberto, tratadas mais abaixo, na zona cinzenta do acordo.
  • Em benefício do que pensa a troika, Tsipras e Varoufakis querem “reformas do mercado do produtos e um melhor ambiente de negócios”, dizendo-se empenhados em “remover barreiras à concorrência”, “reforçar a Comissão Grega de Concorrência”, “introduzir medidas para reduzir da carga administrativa da burocracia”, “prosseguir os esforços para eliminar as restrições desproporcionadas e injustificadas nas profissões reguladas, como parte de uma estratégia global para enfrentar interesses instalados”. E também “alinhar a regulação do gás e eletricidade com as boas práticas e legislação da UE”.
  • Melhorar a organização dos tribunais, digitalizar o sistema judicial. E, também, investir no gabinete de estatísticas grego, garantindo que o ELSTAT tem os recursos necessários para implementar o seu programa de trabalho.

O que fica na zona cinzenta – da desconfiança dos credores

Vejamos agora os pontos que podem ter levantado dúvidas aos parceiros da zona euro e às “instituições”, assim como as cautelas que, mesmo nestes pontos, Varoufakis e Tsipras colocaram no documento que lhes assegurou o ok de todos ao prolongamento do programa e do empréstimo.

  • Começando pelo setor da Saúde, uma das bandeiras do programa eleitoral: Diz a lista que o Governo vai “controlar a despesa de saúde e melhorar a oferta e qualidade dos serviços médicos, ao mesmo tempo que é assegurado o acesso universal”. Como este compromisso eleitoral arrisca ter efeitos orçamentais negativos, acrescenta-se uma linha: “Neste contexto, o governo pretende apresentar propostas concretas em colaboração com as instituições europeias e internacionais, incluindo a OCDE.” Leia-se, tudo será feito em articulação.
  • Há um ponto, relacionado com a introdução de um Rendimento Mínimo prometido na campanha, que podia ser uma linha vermelha para a troika: “Estabelecer uma ligação mais próxima entre as contribuições de pensão e o rendimento, simplificar benefícios, reforçar os incentivos para declarar trabalho remunerado e fornecer assistência específica aos trabalhadores entre 50 e 65 anos, inclusivamente através de um sistema de Rendimento Mínimo Garantido”. Mas Varoufakis atenua o risco, dando um incentivo positivo do ponto de vista fiscal: o objetivo é, diz o ministro, “eliminar a pressão social e política para a reforma antecipada que sobrecarrega os fundos de pensão.”
  • Já agora, o “Rendimento Mínimo Garantido” avançará em “sistema-piloto” e será avaliado antes de ser estendido “a todo o país”.
  • Agora os salários da função pública: diz o documento que o Governo vai “reformar a grelha salarial do setor público com vista a descomprimir a distribuição salarial através de ganhos de produtividade e políticas de recrutamento apropriadas, sem reduzir os mínimos salariais atuais.” A salvaguarda? “O custo salarial do setor público não aumenta.”
  • E ainda “reformar a grelha salarial do setor público com vista a descomprimir a distribuição salarial através de ganhos de produtividade e políticas de recrutamento apropriadas, sem reduzir os mínimos salariais atuais, mas salvaguardando que custo salarial do setor público não aumenta”.
  • Outra promessa eleitoral vista com desconfiança pelos credores tem a ver com o pagamento de dívidas pelas empresas em dificuldades financeiras. Agora, Varoufakis pôs no papel vários ‘mas’, como distinguir entre incumpridores (nomeadamente quem não tem solução possível ou tem problemas com a justiça) e com soluções que  “anulem o risco moral”.
  • Há, neste mesmo campo, um ponto em aberto: a “descriminalização dos devedores de baixo rendimento com dívidas pequenas.” Falta quantificar e dizer como, mas aqui o documento fica inteiramente em aberto.
  • No que respeita às famílias endividadas, a solução Varoufakis consegue (ainda que em colaboração com a “gestão dos bancos e com as instituições”) “evitar, no futuro próximo, os leilões da residência principal de famílias que estão abaixo de um determinado limiar de rendimento. Fica traçada a linha vermelha do programa: “evitar uma nova queda nos preços do imobiliário (que teria um impacto negativo na carteira dos bancos)”. Mas também a promessa de reduzir o número de famílias “sem-abrigo”. Mas é deixado em aberto um ponto: “Serão tomadas medidas para apoiar as famílias mais vulneráveis incapazes de pagar os seus empréstimos”. Quais? Depois se verá.
  • As privatizações, outro problema que fica (parcialmente, como já vimos) em aberto nas negociações. O governo grego quer “rever as privatizações que ainda não foram lançadas”, com o argumento de “melhorar as suas condições de forma a maximizar os benefícios de longo prazo do Estado, gerar receitas, aumentar a concorrência nas economias locais, promover a recuperação económica nacional, e estimular as perspetivas de crescimento de longo prazo.” Agora, tudo será visto caso a caso.
  • Também as reformas do mercado de trabalho. O texto entregue à troika propõe-se a “atingir as melhores práticas da UE em toda a gama de legislação relativa ao mercado de trabalho através de um processo de consulta com os parceiros sociais, beneficiando do conhecimento técnico e de contributos da Organização Internacional do Trabalho, da OCDE e da assistência técnica disponível.” Não fala em reverter nada do que foi feito antes, nem detalha em que sentido vão estas “melhores práticas”.
  • Mas há um ponto importante, nesta área: a “introdução progressiva de uma nova abordagem ‘inteligente’ para a negociação salarial coletiva que equilibre a necessidade de flexibilidade com justiça”. Diz Varoufakis que “isso inclui a ambição de simplificar e aumentar os salários mínimos ao longo do tempo, de forma a salvaguardar a competitividade e as perspetivas de emprego”. Já não se fala de valores (menos ainda dos mais de 700 euros que foram a promessa de Tsipras, nem de calendários. “A dimensão e o momento das alterações no salário mínimo será feita em consulta com os parceiros sociais e com as instituições europeias e internacionais” e de um novo órgão interno “independente”, sempre tendo em conta “a evolução da produtividade e competitividade”.
  • Por fim, o plano para pôr fim à “crise humanitária”. O governo grego fala agora em “lidar com o recente aumento da pobreza absoluta (acesso inadequado à alimentação, habitação, serviços de saúde e fornecimento básico de energia) por meio de medidas não pecuniárias altamente dirigidas (por exemplo, cupões de alimentos).” E garante que o plano “não tem efeito orçamental negativo”.

E o que mais ficou de fora do programa do Syriza?

Desde logo no plano humanitário, cujo custo estava estimado em 1,9 mil milhões de euros para os quatro anos de governação, não se notam na lista pontos do programa que falavam em “assistência de saúde e farmacêutica livre para desempregados sem subsídio; num cartão especial para transportes públicos, entregue a desempregados de longa duração”; ou a “revisão dos impostos dos combustíveis e para aquecimento em casa.”

Há também pontos que estavam quantificados que ficam, aqui, em aberto, como o programa de garantia de habitação, que prometia pagar “parte da renda de pequenas casas a 30 mil famílias”.

Quanto ao pilar que se propunha a “relançar a economia e promover a justiça fiscal”, ficam em aberto pontos (alguns constantes do plano Varoufakis) que constavam do programa. Vejamos alguns

  • “Aumentar o número de escalões de IRS, para assegurar maior progressividade” – o que pode gerar perda de receita.
  • “Reestruturação de empréstimos para empresas e indivíduos – para os que estiverem abaixo do limiar de pobreza e para as dívidas (ao Estado, Segurança Social e banca) que baixem os rendimentos abaixo dos 33%” (idem, embora tenha uma formulação mais aberta no plano Varoufakis).
  • “Recolocar o salário mínimo nos 751 euros” – agora totalmente em aberto e já não com efeitos imediatos.

Havia no programa um outro pilar sensível, de matéria laboral. Dizia o Syriza que pretendia “recuperar os direitos perdidos com o Memorando (legislação laboral)”; “Recuperar acordos coletivos”; a abolição de layoffs “massivos e injustificados”. Tirando este último ponto, que não é especificado neste documento, todos os outros ficam sujeitos a conversas com os credores.

Por fim, a parte do programa que entrava diretamente no plano europeu. Recuperando o que dizia, em síntese:

  • “Reestruturar grande parte da dívida pública, de forma a que se torne sustentável, no contexto de uma “Conferência sobre a Dívida Europeia” (o tema fica à espera de um cumprimento do plano Varoufakis, como disse esta terça-feira o presidente do Eurogrupo);
  • “Incluir uma “cláusula de crescimento” para o pagamento da parte remanescente da dívida grega, para garantir que será financiada com crescimento e “não com o orçamento” (idem).
  • “Incluir uma moratória para o serviço da dívida, para poupar fundos para estimular o crescimento” (idem).
  • “Excluir os investimentos públicos das restrições do Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE” (as novas regras interpretativas só o permitem para países que respeitem défice de 3% do PIB).
  • “Um New Deal de investimento público europeu financiado pelo Banco Europeu de Investimento” (o plano Juncker já está no papel, mas o seu financiamento ainda não está acertado).
  • Exigência de compra direta de dívida europeia pelo BCE, o chamado “Quantitative Easing” (O BCE anunciou um plano neste sentido, mas deixou condicionada a aplicação à Grécia – não só porque tem coberto o limite colocado para o país – até junho -, mas também condicionando-o à existência de um programa de assistência. O atual na Grécia ainda não terminou e a troika e o novo Governo já admitiram que, em abril, falarão sobre a necessidade de um próximo).