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No dia em que se atinge novo máximo, 10 mil casos, a ministra da Saúde suspendeu toda a atividade não urgente nos hospitais de Lisboa e Vale do Tejo

NurPhoto via Getty Images

No dia em que se atinge novo máximo, 10 mil casos, a ministra da Saúde suspendeu toda a atividade não urgente nos hospitais de Lisboa e Vale do Tejo

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10 mil casos num dia. A terceira vaga da pandemia vai ser maior e mais difícil de controlar (palavra, unânime, de especialistas)

Dúvidas? Não há. Nas próximas duas semanas os internamentos e as mortes vão subir. Resta saber se o número de casos diários continua a acelerar e com que rapidez. Pressão sobre SNS será enorme.

A nuvem negra chegou e paira sobre o Serviço Nacional de Saúde. Tem a forma de um número quase redondo: 10.027 novos casos de Covid-19 em apenas 24 horas, valor nunca antes visto em dez meses de pandemia, registado esta quarta-feira, 6 de janeiro, com um salto também inédito em relação ao anterior máximo. Mais 2400 infetados do que a 31 de dezembro, com 7.627 contagiados. Mas o pior ainda pode estar para chegar. A previsão para os próximos dez dias é assustadora, concordam todos os especialistas ouvidos pelo Observador, até mesmo os que dizem “não ter uma bola de cristal”.

Futurologia à parte, lembram que os avisos foram muitos e que a fatura a pagar por um Natal com menos regras não tardaria a chegar. As novas variantes do coronavírus, a do Reino Unido e a sul-africana, também podem ter influência na subida dos casos, mas essa dúvida manter-se-á por mais alguns dias. Uma coisa é certa: quando há mais casos, poucos dias depois aumentam os internamentos, as passagens para os cuidados intensivos e, por fim, as mortes. É um ciclo impossível de quebrar. O que não é impossível é evitar que os novos casos continuem a subir, apesar de as medidas para consegui-lo não serem as mais populares, e essas são decisões que o Governo vai ter de tomar esta semana, com o novo estado de emergência já em vigor, ou dia 15, quando tiver de o renovar. Sem travão, a próxima onda (ou a que já estaremos a viver) será um tsunami quando comparada com os números de abril.

“São muitos casos para Portugal: 10 mil contágios cá correspondem a 80 mil na Alemanha. É um número brutal. Se fizemos a conta para os EUA é ainda maior, serão cerca de 328 mil novos contágios num dia.” Não há como dourar a pílula e para o bastonário da Ordem dos Médicos nem sequer se devia tentar fazê-lo. “Se dissermos que está sempre tudo bem, é mau para os portugueses. Se dissermos a verdade, e pedirmos ajuda, conseguimos envolver as pessoas no combate ao vírus”.

A verdade, para Miguel Guimarães, é clara: “Os hospitais já atingiram os seus limites, temos muitas mais camas para doentes Covid do que deveríamos e os doentes não Covid estão a ficar para trás.”

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Portugal com mais de 10 mil novos casos em 24 horas. É o pior dia desde o início da pandemia

O tom de voz do pneumologista António Diniz também é pesado. “Estamos perante um problema muito sério”, diz o coordenador da Unidade de Imunodeficiência do Hospital Pulido Valente, em Lisboa.

“O que temo que possa acontecer é que os números de hoje [desta quarta, dia 6] — e gostava de ver os de quinta e de sexta-feira para ver a tendência — se mantenham ou subam. Vamos admitir que até houve uns casos atrasados, que entraram mais tarde no sistema, e que, por isso, chegámos a este número. Se amanhã tivermos 8 mil ou 9 mil novos casos, estamos perante um problema muito sério”, insiste António Diniz, um dos oito especialistas do grupo que compõe o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19.

A urgência da situação que se vai viver nos próximos dias, sublinha o pneumologista, já foi admitida pela ministra da Saúde com uma das decisões anunciadas esta quarta-feira. “Quando se suspende toda a atividade programada não urgente nos hospitais isto é sinal de que o Ministério da Saúde sabe a dimensão do que aí vem: primeiro a rutura dos cuidados intensivos, depois a rutura nos internamentos.”

“São muitos casos para Portugal: 10 mil contágios cá correspondem a 80 mil na Alemanha. É um número brutal. Se fizemos a conta para os EUA é ainda maior, serão cerca de 328 mil novos contágios num dia.”
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos

Marta Temido deu ordem aos hospitais de Lisboa e Vale do Tejo para suspenderem de imediato toda a atividade não urgente, através de um email enviado ao presidente do Conselho de Administração dos Hospitais do SNS da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, segundo avançaram os jornais Expresso e Público. “Todos os hospitais devem suspender a atividade assistencial programada não urgente que possa reverter em reforço de cuidados ao doente crítico”, lê-se na missiva.

Também esta quarta-feira, em Évora, a ministra da Saúde admitiu que o SNS enfrenta uma nova “fase de imensa pressão” e que os próximos dias vão ser “muito duros” devido ao crescimento do número de contágios. “Estamos novamente numa fase de imensa pressão no SNS e estamos a procurar responder, mas precisamos da ajuda de todos”, afirmou Marta Temido que assistia ao início da vacinação na Unidade de Cuidados Continuados Integrados da Misericórdia de Mora.

Há sete dias consecutivos que os internamentos em enfermaria e em cuidados intensivos sobem, e esta quarta-feira atingiu-se o número mais elevado de internados desde o dia 10 de dezembro e o número mais alto de internados em cuidados intensivos desde o dia 6 de dezembro.

Ministra alerta para nova pressão nos hospitais e dias “muito duros”

Não foi por falta de aviso que se chegou aos 10 mil casos

Com o dedo mais ou menos apontado às decisões tomadas pelo Governo, que optou por aligeirar as medidas de restrição durante o período de Natal, nenhum dos médicos ouvidos pelo Observador se mostra espantado com os 10 mil casos diários que agora registámos, até porque o início da curva ascendente começou logo a seguir à consoada.

“Era francamente esperado”, diz António Diniz. “É o resultado das opções que se tomaram, as pessoas sabiam exatamente o que podia acontecer, e isto aplica-se a governantes e a governados. As opções, legítimas, envolviam riscos, sabia-se que isto podia acontecer. Ninguém pode dizer que não sabia. E agora estamos todos nesta situação”, diz o pneumologista. É como ver um filme, sublinha, em que “sabemos o que pode acontecer a seguir”.

“Houve ‘N’ alertas sobre os riscos que se corria com a abertura dada numa época como o Natal. Mas foi agradável. Agora vai ser desagradável”, ironiza ainda o pneumologista. “Ainda vamos ver a dimensão da fatura a pagar — no SNS, em óbitos, em ter de voltar atrás num conjunto de medidas, e no compromisso social e económico que isso vai ter.”

Mas não foi só a consoada ou o almoço de 25 de dezembro que levaram ao aumento de casos, argumenta Elisabete Ramos, presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologistas. “Toda esta época do ano propicia mais contactos, as idas às compras, as visitas as colegas de trabalho, e são contactos em que temos menos precauções. A curva ascendente começa logo a 26, 27 de dezembro e, por isso, não reflete logo a noite de Natal.”

Apesar de os 10 mil serem um valor real, a investigadora do Instituto de Saúde Pública do Porto lembra que uma das lições aprendidas nesta pandemia é que os números de cada dia são influenciados por demasiados fatores: o efeito do fim de semana, uma falha na informatização dos dados ou um número menor de testagens. “Um número específico de um dia não diz muito e o foco deve ser na tendência que se observa. Os valores de internamentos e óbitos refletem muito melhor a situação, porque não são influenciados por aqueles fatores, mas têm um problema: chegam com atraso.”

Covid-19. Portugal já entrou na terceira vaga, defende especialista: “Números podem chegar a valores insuportáveis”

Acontece que a tendência está em alta, lembra Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. “A semana passada já tínhamos tido um número importante”, diz, referindo-se ao tal anterior máximo de 7.627 novos casos registados a 31 de dezembro. Foi a segunda vez que Portugal ultrapassou os 7 mil casos —  da primeira vez, a 4 de novembro, dos 7.497 contágios só 3.927 tinham acontecido, de facto, nas 24 horas anteriores. Os demais eram atualizações.

O último dia do ano não foi caso isolado. Antes e depois, os diagnósticos positivos também foram expressivos: 6.049 a 30 de dezembro e 6.951 no primeiro dia de 2021, mostrando que o crescimento da pandemia é imune a passagens de ano.

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Não foi só a consoada ou o almoço de 25 de dezembro que levaram ao aumento de casos, argumenta Elisabete Ramos, presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologistas

AFP via Getty Images

A culpa foi das ceias de Natal? Então, e as novas estirpes?

De nada serve chorar sobre leite derramado, mas os médicos estão cansados de correr atrás do prejuízo. “O Natal é uma altura importante, de afetos, de reforço da estrutura familiar. Sem obrigar a nada, o Governo podia ter feito uma recomendação sobre o número máximo de pessoas à mesa na ceia de Natal”, defende o bastonário.

Outros países fizeram exatamente isso, recorda Miguel Guimarães: na Alemanha a recomendação era de juntar ao núcleo familiar um máximo de quatro pessoas, na Bélgica apenas mais duas. Em Espanha, o conselho era de que não se juntasse mais de seis pessoas à mesa. “A fiscalização seria impossível, mas havendo uma recomendação, dizendo que a situação é séria e grave, as pessoas tendem a cumprir. Assim, deu-se lugar a que as infeções crescessem e é agora que começamos a ter a ideia real do que aconteceu no período de férias”, sublinha.

“Os números não mentem. Há uma parte substancial da população que não cumpriu as recomendações e teve um comportamento relaxado e festivo. Para 10 mil casos num dia, não há outra explicação: há muita gente que esteve com muita gente no Natal”, diz, por seu lado, Gustavo Tato Borges, vice-presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública e coordenador regional de saúde pública do governo açoriano.

Já Ricardo Mexia diz que se devia ter antecipado esta situação. “Sabíamos, antes do Natal, que ia piorar com esta época. Com o aligeirar de medidas ia ser ainda pior e continuamos a correr atrás do prejuízo.”

“Era francamente esperado. É o resultado das opções que se tomaram, as pessoas sabiam exatamente o que podia acontecer, e isto aplica-se a governantes e a governados. As opções, legítimas, envolviam riscos, mas sabia-se que isto podia acontecer. Ninguém pode dizer que não sabia. E agora estamos todos nesta situação.”
António Diniz, pneumologista

A presença de novas variantes do coronavírus também pode ter influência no aumento do número de casos, se estas forem mais transmissíveis — como é o caso daquela que se tornou dominante no Reino Unido e que já chegou a Portugal. “Não descarto que as novas variantes tenham influência neste crescimento”, diz Elisabete Ramos, frisando que ainda demorará algum tempo até sabermos se esta se tornou o vírus mais comum em Portugal.

António Diniz concorda: “Não excluo essa possibilidade, sabemos que a nova variante do Reino Unido está cá, mas não sabemos a dimensão porque não se faz sequenciação de todas as amostras. Se ela mantiver as características apontadas pelos ingleses, podemos esperar, para nossa infelicidade, uma velocidade ainda maior nos contágios. Mesmo que não seja mais letal, havendo maior transmissibilidade há mais contágios, logo, em proporção haverá mais internados e mais óbitos.” As 91 mortes desta quarta-feira tornaram-na o terceiro pior dia da pandemia, depois das 95 de 11 de dezembro e das 98 de dia 13.

O frio — lembra o bastonário Miguel Guimarães no dia em que a Península Ibérica atingiu a sua temperatura mais baixa de sempre, 34,1ºC negativos— também pode ter um papel no aumento dos casos. “Estamos em período de inverno e os vírus têm mais atividade quando as temperaturas estão mais baixas, o vírus da gripe também está mais ativo e pode ter mais manifestações, assim como outras doenças respiratórias”, diz o bastonário da Ordem dos Médicos. E isso leva a uma pressão ainda maior sobre o SNS.

“Todos os anos, em dezembro, janeiro, vemos as imagens dos hospitais lotados e isso em anos sem Covid. Este ano será pior, mesmo que o vírus da influenza perca terreno: quando estamos na presença de dois vírus, o mais forte tem sempre mais expressão”, refere Miguel Guimarães.

Ou seja, a situação era expectável, lembra o pneumologista do Pulido Valente. “Desde o princípio do verão que se fala do inverno e de como isso ia levar a uma sobrecarga. Agora, estamos no inverno e está a acontecer. Houve alertas e assobiou-se para o lado”, sublinha António Diniz.

Próximos capítulos: uma onda que parece um tsunami

Com uma curva ascendente, a epidemiologista Elisabete Ramos lembra que estamos próximos dos níveis mais altos de novembro, altura que se apontou como a segunda vaga da pandemia. “Com a informação que temos agora, e sem fazer futurologia, tudo parece indicar que vamos ter números mais altos do que há dois meses. Quanto mais? Não sei dizer”, sublinha. E deixa um alerta: “Com a inclinação que a curva tem neste momento, não é previsível que vá quebrar em pouco tempo e, previsivelmente, o SNS vai estar a braços com uma grande pressão.”

"Penso que nos próximos dez, quinze dias, os valores vão manter-se altos, com manutenção destes valores de mortes e casos diários. Embora o valor máximo seja muito difícil prever, serão mais assustadores. Talvez 12 mil, 15 mil casos diários e 100 mortes por dia."
Gustavo Tato Borges, especialista de saúde pública

Mesmo que os hospitais consigam responder aos doentes Covid, lembra que nada acontece “a custo zero”. Ter mais respostas de um lado, implica ter menos respostas de outro.

O especialista de saúde pública Gustavo Tato Borges diz não ter uma bola de cristal, mas, ainda assim, arrisca alguns números, perante a situação atual. “Penso que nos próximos dez, quinze dias, os valores vão manter-se altos, com manutenção destes valores de mortes e casos diários. Embora o valor máximo seja muito difícil prever, serão mais assustadores. Talvez 12 mil, 15 mil casos diários e 100 mortes por dia.”

Se acontecer, defende, será necessário reformular a resposta do SNS e criar soluções de retaguarda, como os hospitais de campanha que se criaram no início da pandemia para os doentes não graves, já que o pior ainda pode estar para vir.

“Tradicionalmente, as doenças infecciosas têm tendência a surgir em ondas crescentes. Depois de uma segunda onda grande, não havendo nenhuma alteração da arma terapêutica e das estratégias, é normal que a onda seguinte venha com mais força. É possível que a terceira onda seja ainda maior e que cause muito mais problemas. Temos esperança na vacina, mas ela só vai produzir efeitos quando uma boa parte da população estiver vacinada e isso só acontecerá no verão ou depois do verão”, defende Gustavo Tato Borges. “Vai ser mais difícil de controlar esta onda e vai causar disrupção no SNS.”

A última chamada dos doentes infetados que não sabem se vão sobreviver

O problema, dizem vários dos médicos ouvidos, é que partimos para um novo crescimento da curva de um patamar elevado e já com uma grande pressão nas unidades hospitalares. “Isso pode levar a uma paragem do SNS que passa por só conseguir fazer urgências e Covid. Ou então adotamos uma postura como a da Suécia que é a de deixar correr e ver o que acontece”, acrescenta Gustavo Tato Borges.

Mesmo que diariamente não se assistam a 10 mil novos casos, uma sucessão de quatro ou cinco dias com contágios acima dos 6 mil já será uma “pressão brutal” para o SNS, diz o bastonário da Ordem dos Médicos. “Já ultrapassámos a capacidade do SNS, estar a transformar mais camas em camas Covid é estar a condenar outros doentes até, eventualmente, à morte.”

Até agora, embora possa não parecer, assistimos a um crescimento suave da pandemia, diz António Diniz. “Agora estamos a subir muito rapidamente e isso dá menos espaço aos serviços para se adaptarem. Não é o mesmo ter 100 internamentos em 2 dias ou em 4 dias. Há uma sobrecarga que o SNS vai ter problemas em acomodar. Tenho colegas que hoje correram 4, 5 serviços intensivos e não encontraram vagas nesta altura. Imagine-se quando piorar.”

O problema, diz, é que o número de casos nunca foi tranquilizador. Não foi no verão, quando houve a primeira descida, e muito menos foi agora, antes do início da nova subida. “Nunca conseguimos esmagar a curva: entramos em défice no outono e entrámos em défice ainda maior no inverno. O nosso ponto de partida, em cada novo crescimento, é mais alto, porque o máximo que conseguimos foi ficar num planalto.”

"Nunca conseguimos esmagar a curva: entramos em défice no outono e entrámos em défice ainda maior no inverno. O nosso ponto de partida, em cada novo crescimento, é mais alto, porque o máximo que conseguimos foi ficar num planalto."
António Diniz, pneumologista

A pergunta seguinte não tem uma resposta clara. O que é que se pode fazer a seguir? “O Governo vai ter de tomar decisões muito drásticas, como a chanceler alemã que praticamente voltou ao confinamento total”, diz o bastonário Miguel Guimarães. “O jogo entre economia e saúde é um jogo complexo, mas a pandemia em pleno crescimento rebenta com a economia completamente.”

António Diniz deixa apenas perguntas no ar, voltando a frisar que “tudo” poderia ter sido evitado. “Se tivermos 5, 6 dias com 10 mil casos qual vai ser o nível de restrições? Vão fechar as escolas? Fechar os espaços comerciais? A restauração? Vamos voltar a ficar confinados um ano depois? Vão ser decisões complicadas. E isto tudo faz-me lembrar Itália na primeira vaga da pandemia, quando era tudo novo. Só que Itália tinha desculpa, nós, agora, não temos.”

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