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Nas ruas de Amesterdão, José Rodrigues dos Santos passeia com o braço sobre o ombro da mulher, Florbela. Passam facilmente por mais um casal a fazer turismo na capital dos Países Baixos. Compram bolbos de flores no mercado, provam os queijos típicos, tiram fotografias, notam o trânsito de bicicletas, visitam o Red Light District. É precisamente na rua vermelha, já perto do fim das 48 horas com o Observador, que o escritor e pivô da RTP é reconhecido pela primeira vez por um grupo de portugueses.
A viagem até terras neerlandesas é promovida pela editora Planeta a propósito do novo livro do autor: O Segredo de Espinosa, inspirado na vida do filósofo neerlandês Bento de Espinosa. É o 25.º romance do autor, presença regular no primeiro lugar dos tops de vendas nacionais.
Depois de um problema no primeiro voo, o casal acaba por chegar de Bordéus, França, onde o escritor participou num festival de cultura. José Rodrigues dos Santos é discreto sobre a sua vida pessoal e com habilidade faz com que quase todas as respostas desaguem nos livros. Ainda assim, conta como se conheceram na Universidade Nova de Lisboa, na Avenida de Berna. Ele, aluno de Ciências da Comunicação, ela, aluna de História. São casados e têm duas filhas. São cúmplices nos gestos e no discurso, atentos um ao outro, conhecem a palavra que se segue e o pensamento que se formula. Mesmo quando discordam, amparam-se. Ele é o consumidor ávido do ciclo noticioso, ela apologista do silêncio. “A última palavra vai, sempre, para a Florbela”, escreve nos agradecimentos do novo título.
Aos 59 anos, José Rodrigues dos Santos é uma máquina de produzir livros. “A minha técnica normalmente é: pesquisa no outono, escrita no inverno, revisões na primavera e promoções no verão, com viagens nos vários países onde sou publicado”. Escreve 10 páginas por dia, publica um romance por ano — por norma, um bestseller.”O próximo já está escrito. Já estou a pensar no seguinte”, garante.
Na verdade, há mais dois na calha, preparados pela editora e pelo escritor em grande secretismo. Um deles é a publicação da sua tese de doutoramento, que defendeu, em novembro último, na Universidade de Paris II – Panthéon-Assas, com título, em língua francesa, Le fil rouge du fascisme – Nouveaux apports pour la compréhension du fascisme et sa dimension socialiste. É a primeira tese que resulta da colaboração entre a prestigiada universidade francesa e a Universidade Aberta, em Portugal. O tema promete somar mais uma polémica às várias que o autor coleciona. Defende que o fascismo tem origem ideológica no marxismo. Obteve a classificação de 19 valores e a recomendação do júri para que fosse publicada. Acontecerá, confirma a editora Planeta ao Observador, algures em 2024. O outro livro é mais um romance que está neste momento sob revisão científica para que possa chegar às bancas quando é habitual: no outono.
O que não é habitual é que José Rodrigues dos Santos não tenha visitado o local onde narra as histórias que conta. Mas foi precisamente o que aconteceu com O Segredo de Espinosa: o escritor escreveu as 554 páginas do romance que se passa integralmente em Amesterdão sem ter alguma vez visitado a cidade. À conta dos constrangimentos da pandemia de Covid-19, é já com o livro nas mãos que palmilha os quilómetros percorridos pela figura que define na contracapa como “o maior filósofo português de sempre”.
Com alguns jornalistas, obedece a um programa intenso de visitas à Sinagoga Portuguesa de Amesterdão, à casa de Espinosa em Rijnsburg, à Casa de Espinosa em Haia, à campa do filósofo e à estátua em sua homenagem, no centro da capital neerlandesa. O escritor é tão ou mais incansável que o guia turístico em explicações sobre Espinosa e a sua história.
Não se cansa de frisar como a figura é incompreensivelmente esquecida em Portugal. “Junto da população, existe um grande desconhecimento. É uma personagem que, na nossa história, por alguma estranha razão, não foi abraçada pelo nosso establishment cultural. Achei que era importante escrever a história e as ideias deste homem que fundou o nosso mundo moderno. É, talvez, dos filósofos mais importantes da história. Está na base do liberalismo, é ele que retira, no método científico, Deus da equação.”
Nascido em Amesterdão em 1632, filho de judeus portugueses fugidos da Inquisição, Bento (ou Baruch, ou Benedito) de Espinosa foi excomungado, acusado de heresia pelas suas ideias sobre a Bíblia e a verdadeira natureza da realidade. O seu Tratado Teológico-Político (1670) foi designado pelos críticos como “um livro forjado no inferno”. Foi aquele de quem um dia Albert Einstein, questionado se acreditava em Deus, respondeu: “Acredito no Deus de Espinosa, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pelo destino e pelas ações dos homens”.
A história de Espinosa inscreve-se na linha de romances que José Rodrigues dos Santos está a fazer em que aborda figuras e momentos importantes da História de Portugal. “Comecei com A Ilha das Trevas sobre os esforços de Portugal para levar a independência a Timor, depois A Filha do Capitão com a intervenção de Portugal na Primeira Guerra Mundial, O Codex 632 com os Descobrimentos, O Anjo Branco sobre a Guerra Colonial, O Homem de Constantinopla sobre o Gulbenkian”, enumera.
Marie-Therese Daniels-Dirven, voluntária na casa de Espinosa em Haia, explica como o filósofo ali escreveu a sua grande obra prima, Ética, publicada postumamente. Foi em Haia que viveu a partir de 1669 e onde morreu vítima de tuberculose aos 44 anos. Entre chá e biscoitos, trava conversa e uma animada discussão com o escritor. “Acho que ele [Espinosa] se refere a Deus”, diz-lhe a anfitriã. “Esse é um grande debate entre filósofos e historiadores”, contesta José.
“Dizem-me que é um Dan Brown português”, comenta também Marie-Therese. A comparação é frequente, e está até na aba do livro, numa citação destacada do site Bookreporter. Mais tarde, ao Observador, o escritor português é rápido a distanciar-se. “Sou um autor que tem uma voz própria. Quando se fazem comparações é a procurar algumas semelhanças. O Dan Brown procura o mistério do passado, isso também me interessa, mas não fico por aí. Quem lê a minha obra percebe que é totalmente diferente. Tenho a minha voz, escrevo à minha maneira, com o meu estilo, e com a minha conceção do que deve ser a literatura”.
Rumores e ghostwriters: “A boataria diverte-me imenso”
Não é só o estilo (como o famoso piscar de olho, que vem desde os tempos da rádio na BBC) ou a entoação com que dá as notícias no Telejornal — a forma como disse “Morreram todos”, aquando da morte dos cinco ocupantes do submarino Titan, tornou-se um meme — que torna José Rodrigues dos Santos uma figura pouco consensual. Nas últimas duas décadas, multiplicaram-se as teorias em torno da sua escrita prolífica, sendo a mais recorrente a de que teria ghostwriters, pessoas que escrevem os livros por ele. “A mim a boataria diverte-me imenso. São tudo rumores. Tudo. Havia o rumor de que tinha ações da Gradiva, isso obviamente é um disparate. Não faz sentido. O rumor de que outras pessoas escrevem por mim, isso também é um disparate.”
Cita Alexander Dumas — cujo famoso escritor-fantasma é Auguste Maquet — ou a extensa equipa que escreve os romances de guerra de James Patterson. “É uma tradição um bocado forte na América, em que os textos, as obras, normalmente, são a várias mãos. Na Europa não há essa tradição. No meu caso é totalmente falso. Aliás, basta falar comigo sobre cada um dos meus romances, conheço-os todos ao pormenor.”
O que, segundo José Rodrigues dos Santos, é facto: “Trabalho muito rápido e gosto do que faço”. A única fase da conceção de um romance de que não gosta é a revisão. “Porque estou sempre a ler a mesma história várias vezes à procura de pormenores. A dada altura já estou farto da história. Mas tudo o resto apaixona-me, a identificação do tema, a pesquisa. Não era capaz de deixar a pesquisa a outra pessoa. É o que me enriquece.”
Perguntamos-lhe se já se debruçou sobre a obra de Raul Minh’alma, escritor que com ele tem disputado, nos últimos anos, o título de autor mais vendido em Portugal. “Não li [a obra]. Estou numa fase em que quase não consigo ler nada que não tenha a ver com a pesquisa para os meus romances. Já quase não faço leituras de prazer. Ler um livro ali, descansado, sem outro objetivo que não seja ler o livro, isso deixou de existir na minha vida.” O seu livro favorito é Of Human Bondage (1915), de William Somerset Maugham. “É um grande livro. Sobre uma pessoa que fica escrava das emoções”. Nunca o releu.
Segundo o autor, corroborado por dados da Gfk, entidade independente que faz auditoria e contagem das vendas de livros ao longo do ano, a sua última obra, A Mulher do Dragão Vermelho , foi o livro mais vendido em 2022 em Portugal, com vendas acima de 70.000 exemplares. “Isso é a prova do sucesso do livro ou não”, sublinha. “Neste momento as vendas [por livro] andam na ronda dos 80 mil exemplares. Mas, antes da crise, andavam nos 110 mil”.
O abalo não o tem tornado menos desejado pelas editoras. No ano passado, foi protagonista da “bomba do ano no meio editorial”, como descreveu o então diretor-geral da Penguin Random House em Portugal (como a Planeta, uma das cinco maiores editoras europeias), Manuel de Freitas. Após 21 anos de relação editorial, o autor deixou a casa-mãe, a Gradiva, onde editou 30 livros em 30 países. Perante o anúncio da mudança repentina, Guilherme Valente, emblemático editor e fundador da chancela portuguesa criada em 1981, admitiu ao Expresso que a saída do escritor representava um “rombo financeiro” que obrigaria a editora a “redistribuir energias e recursos”. “Não temos passivo nem dívidas. Sobrevivemos sem o J.R.S.”, concluía Valente, que no início de outubro anunciou a saída da editora que fundou há 42 anos.
Foi a crónica de uma mudança anunciada. O editor da Gradiva chegou a admitir ao semanário que vivera “sempre com o fantasma de que alguém o levasse”. Afinal, José Rodrigues dos Santos havia sido namorado, 15 anos antes, por “uma outra editora mundial”, conta agora ao Observador o autor. “Já me tinha sido dada a oportunidade no passado e eu tinha deixado passar. Achei que desta vez já estava numa idade em que não ia ter muito mais oportunidades. Foi uma decisão de gestão de carreira, pura e simplesmente. A Gradiva faz um sustentado trabalho em promover-me nos mercados, mas os poderes de qualquer editora portuguesa são limitados aí. A Planeta é a maior editora da América Latina inteira. Houve ali um momento em que estagnei quando era preciso dar o passo seguinte e este passo foi dado agora.”
Os livros estão neste momento publicados em 21 línguas: português, inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, neerlandês, finlandês, grego, russo, polaco, húngaro, checo, búlgaro, sérvio, romeno, turco, árabe, cazaque, tailandês e chinês. Na passagem por Amesterdão, o escritor reservou tempo para conhecer a tradutora para neerlandês.
Três milhões de cópias vendidas é uma estimativa antiga, avançada ainda pela Gradiva, há já vários anos, e replicada desde então. Questionados por tiragens globais atuais, escritor e editora atual atestam apenas que será “seguramente acima dos três milhões”, alegando que é difícil ter os números exatos de vendas no estrangeiro porque as editoras locais preferem ocultar os dados para não terem que pagar mais direitos de autor. Sobre os livros que venderam melhor, dos Santos elenca A Fórmula de Deus e O Codex 632.
“Tenho leitores absolutamente fanáticos, pessoas que compram tudo, e essas quando aparece um livro novo compram. Depois há pessoas que compram porque há um título que lhes chama a atenção.” Depois do tatuador, o carteiro, a bailarina, o voluntário (só para nomear alguns), José Rodrigues dos Santos juntou-se à moda dos livros cujo assunto é, de algum modo, os campos de concentração, em particular o de Auschwitz, com a publicação de O Mágico de Auschwitz (2020). Confessa que tentou fugir à palavra-chave, antes de se render à evidência: “Auschwitz é um tema que se tornou um subgénero. Há um publico que só lê Auschwitz, que é fanático. Para compensar, há leitores meus, que são fiéis, e que esse título não compraram.”
Mais de duas dezenas de livros depois, José Rodrigues dos Santos não se arrepende de nada que tenha escrito — nem mesmo da célebre cena de sexo que mete sopa de peixe e leite materno. Está nas páginas 161 e 162 da edição portuguesa de O Codex 632 (ed. Gradiva): “Quero fazer uma sopa de peixe com o leite das minhas mamas”, diz uma aluna sueca ao professor Tomás Noronha, famosa personagem dos romances do escritor. A cena foi cortada da edição na William Morrow, uma das principais chancelas do grupo HarperCollins nos Estados Unidos. “Não [me arrependo], mas por acaso havia coisas d’O Codex que tinha feito diferente. Teria escrito o livro de uma maneira mais thriller, que seria mais interessante. Ele é um bocado, mas não acho que tenha sido o suficiente. Há uma cena ou uma página n’A Filha do Capitão que alteraria. Mas, no essencial, revejo-me na minha obra”.
Prémios literários: “Não sou um autor do regime”
O tema dos prémios literários não tarda em surgir, entre viagens pelo périplo neerlandês. Em território nacional, José Rodrigues dos Santos coleciona prémios atribuídos pelos leitores, mas fica à margem dos atribuídos pela crítica. Francisco Vale, editor da Relógio D’Água chegou a chamar “paraliteratura” à obra do pivô da RTP, comparando-o à de Margarida Rebelo Pinto.
O que pensa o escritor sobre o aparente fosso entre a sua obra e a comunidade literária? “Não sou um autor do regime. Não sou um autor que conta aquilo que é politicamente correto. Entendo que essa é a função do escritor, questionar. Não é questionar conforme o regime quer. É questionar o próprio regime, muitas vezes, e alguns dos mitos que são fundacionais. É esse o trabalho. Todos os prémios que ganho que não são de leitores, são sempre do estrangeiro. Em Portugal são prémios de leitores. Ninguém é profeta na sua terra. Em França, dizem-me o contrário. Integro-me muito bem na comunidade literária francesa, sou muito bem aceite, sou premiado. Posso não ser profeta dentro de um núcleo, um nicho. Mas o grande público está lá. E o grande público é quem interessa”.
Em suma, não lê a crítica e confia nos leitores. “Há pessoas que pensam que os leitores são acéfalos. Não são. Quem compra livros, quem pega no dinheiro e compra livros, são, obrigatoriamente, pessoas que são educadas e inteligentes. É estranho que haja pessoas que defendam a literatura e que depois desqualifiquem os leitores. O leitor é uma pessoa válida, é inteligente e sabe o que está a fazer. E seria bom que as pessoas confiassem mais nos leitores”.
Polémicas? “O que me interessa são os factos”
As polémicas atravessam a carreira de José Rodrigues dos Santos enquanto escritor. O Último Segredo, por exemplo, não passou indiferente à Igreja Católica. Editado em 2011, o jornalista propôs-se neste romance a revelar a “verdadeira identidade de Jesus Cristo”. É quase certo que a cada novo romance se desperte uma controvérsia que faria regozijar qualquer equipa de marketing. Este mês é a propósito das origens de Cristóvão Colombo, em que o jornalista e o historiador Roger Lee de Jesus batalharam em artigos de opinião na revista Visão.
“[As polémicas acontecem] porque toco nos temas que não podem ser tocados. O meu comprometimento não é com as ideias feitas, o meu comprometimento é com a verdade”, diz. “Se formos a ver bem, sempre que a polémica surge, depois, quando vamos aos factos, acaba-se por dar conta que tenho razão. O que me interessa são os factos. É um bocado a minha formação, não só académica, como também de jornalista”.
Os livros relativos à pesquisa para os romances ficam todos guardados à parte, em casa, num “armário gigante” que tem na garagem, revela. “Às vezes alguém vem contestar alguma coisa e tenho de ir lá… Sei um bocadinho mais do que pensam.”
José nasceu em 1964 em Moçambique, viveu em Macau, passou pela BBC e CNN e está há mais de 20 anos na estação pública. Tem uma vida que lhe permitiu colecionar peripécias várias e é um contador de histórias nato. Quase todos os temas lhe despertam a memória para uma rábula, uma anedota, uma curiosidade.
O período na BBC, onde chegou depois da licenciatura, usando o dinheiro que herdou após a morte do pai (a quem dedicou o livro O Anjo Branco, em 2010) para investir na sua educação, foi particularmente marcante. Nos primeiros dias, ainda a trabalhar sem receber, falaram-lhe das “ditaduras comunistas”. “Disse-lhe: chamar ditaduras, isto não é ofensivo para os comunistas? O jornalista disse-me que não percebia a pergunta. ‘Aquilo são democracias?’, perguntou-me. Não são. O nosso trabalho é dizer a verdade”, recorda. “Não quero saber se ofendo alguém ou não. O meu trabalho é dizer a verdade. Se aquilo são ditaduras, vamos chamá-las pelos nomes, sem medo. Para mim foi uma grande lição”.
Seja nas páginas dos livros ou no ecrã no Telejornal, José Rodrigues dos Santos defende a importância de falar sem rodeios, “sem aquilo a que os ingleses chamam beating about the bush, que é andar a tocar tudo, mas não tocar no essencial”. “É um trabalho dos jornalistas, de um académico, mas também de um escritor”. Por outras palavras, ir direto ao assunto. “Vivemos numa sociedade que está rodeada de mitos, de tabus, de dogmas, e não nos apercebemos. Alguém que de repente diz a verdade é um escândalo. Mas é mentira?”
Perguntamos-lhe se as polémicas que coleciona não podem interferir com a credibilidade enquanto jornalista. “Existe sempre uma pressão social para o conformismo. Sei que corro riscos. Nunca procuro a polémica, mas quando desafiam o que estou a dizer, depois documento com os factos. A mentira lava-se com a verdade.”
“A imagem é ficcional”, diz-nos sob a chuva de Amesterdão, diante da estátua de Bento de Espinosa. “Ninguém sabe como ele era de facto”. O retrato ficcionado do filósofo também consta na capa do livro que tem nas mãos. Mas seria de estranhar que um autor que tanto apregoa a importância da verdade não denunciasse a mentira coletiva.
O Observador viajou até Amesterdão a convite da editora Planeta.