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Um livro de horas medieval, hoje guardado na Biblioteca Nacional do País de Gales, mostra o milagre operado por São Nicolau para salvar três crianças da salmoura, que lhe valeu o título de santo padroeiro das crianças
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Um livro de horas medieval, hoje guardado na Biblioteca Nacional do País de Gales, mostra o milagre operado por São Nicolau para salvar três crianças da salmoura, que lhe valeu o título de santo padroeiro das crianças

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Um livro de horas medieval, hoje guardado na Biblioteca Nacional do País de Gales, mostra o milagre operado por São Nicolau para salvar três crianças da salmoura, que lhe valeu o título de santo padroeiro das crianças

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A árvore de Adão e Eva, três crianças em salmoura e o jejum que nos deu o bacalhau. Uma breve história do Natal antes do Pai Natal

Os cristãos demoraram mais de 300 anos para começar a celebrar o aniversário de Jesus. Hoje, o Natal é menos religioso do que cultural — mas é da religião que vem a árvore, o Pai Natal e o bacalhau.

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A árvore de Natal e o presépio. O bolo-rei. A troca de presentes e a missa do Galo para os mais religiosos. O reencontro anual com os familiares. E, claro, o bacalhau. A ceia de Natal, que acontece nas casas de milhões de famílias portuguesas este sábado, é uma das tradições mais antigas do mundo ocidental e assinala, pelo menos em teoria, um acontecimento com mais de dois milénios: o nascimento de Jesus Cristo, o profeta revolucionário que transformou a história do mundo contemporâneo, fundando a religião que hoje é seguida por mais de dois mil milhões de pessoas — perto de um terço de toda a população do planeta.

Nestes dois mil anos, porém, nem sempre foi assim: nem sempre se comemorou o Natal da mesma maneira. Aliás, nem sempre se comemorou o Natal, ponto. A celebração que hoje conhecemos e vivemos foi gradualmente construída ao longo de dois milénios por diferentes povos e diferentes culturas, que contribuíram com todo o tipo de costumes e tradições — mais ou menos religiosos — para a criação de uma festa que, atualmente, parece já distante das suas origens.

O Natal contemporâneo está transformado mais numa festa do que numa celebração religiosa, devido a uma crescente secularização das tradições religiosas

LUSA

Afinal, como aconteceu tudo isto? Como se trilhou o caminho entre aquele primeiro Natal — que os relatos bíblicos situam em data incerta num precário estábulo em Belém — e o Natal contemporâneo, com o Pai Natal e pinheiros decorados? Como e onde se cruzaram o religioso e o profano na construção de uma festa que se transformou numa efeméride estruturante da organização temporal das sociedades dos nossos dias? E o que têm, afinal, o bacalhau e o bolo-rei que ver com o nascimento de Jesus?

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Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a História do Natal.

Jesus nasceu a 25 de dezembro do ano 0?

O primeiro Natal numa religião que não celebrava aniversários

São mais do que conhecidos os relatos bíblicos, especialmente os dos Evangelhos segundo São Lucas e São Mateus, do primeiro Natal. O nascimento de São João Batista, o anúncio por parte do anjo Gabriel, o édito de César Augusto para que fosse recenseada toda a população da Palestina, a viagem de José e Maria até Belém, o nascimento de Jesus numa manjedoura, os pastores, os reis magos, a fuga para o Egito, e por aí fora, até aos episódios da vida adulta de Jesus Cristo e à sua morte por crucificação com 33 anos de idade.

A condenação e a morte de Jesus pelas autoridades judaicas abriram as portas ao Cristianismo, a nova religião professada pelos seguidores de Cristo. Nos primeiros três séculos, o Cristianismo foi, na verdade, uma religião clandestina, perseguida quer pelos judeus quer pelas autoridades romanas, que viam aquele grupo de revolucionários como uma ameaça aos poderes religiosos e civis instituídos na altura. Foi neste período da clandestinidade que foram reunidos os primeiros textos dos evangelistas, que os apóstolos de Jesus percorreram grande parte da Europa, África e Ásia para divulgar a nova religião e que os primeiros Padres da Igreja começaram a produzir os grandes textos que hoje permitem reconstituir as origens do Cristianismo.

E, na verdade, a partir desses documentos do Cristianismo primitivo é possível concluir que os primeiros cristãos não celebravam o Natal. “Durante os primeiros dois séculos do Cristianismo, houve uma forte oposição ao reconhecimento das datas de nascimento dos mártires ou, até, de Jesus”, explica a Enciclopédia Britânica. “Muitos Padres da Igreja fizeram comentários sarcásticos sobre o hábito pagão de celebrar os aniversários quando, na verdade, os santos e os mártires deviam ser honrados no dia do seu martírio — os seus verdadeiros ‘aniversários’, na perspetiva da Igreja.”

O dia 25 de dezembro de 336 terá sido o primeiro em que se assinalou o Natal, provavelmente porque o imperador Constantino procurava, com a colocação da nova festa cristã nas datas das antigas festas pagãs, reduzir a influência dos ritos pagãos no Império Romano.

Só mais tarde, entre os séculos II e III, viria a surgir o hábito de comemorar o nascimento de Jesus Cristo. Contudo, a partir dos relatos bíblicos, fonte primordial do Cristianismo, é impossível saber o dia em que Jesus nasceu. Os evangelhos apontam apenas algumas pistas genéricas — que Jesus nasceu no reinado de Herodes como rei da Judeia e na altura em que o imperador César Augusto mandou recensear a Palestina —, mas insuficientes para saber a data concreta. O primeiro desafio foi, por isso, o de desvendar a data do nascimento de Jesus.

Sobre as dificuldades deste processo já muito se escreveu. Acredita-se que o historiador grego Sextus Julius Africanus, que viveu entre o final do século II e o início do século III, tenha sido o primeiro a situar o nascimento de Jesus em dezembro. Autor de um notável trabalho cronográfico que, com base nos escritos bíblicos, procurou estabelecer uma linha temporal dos acontecimentos relatados no Antigo Testamento, Sextus Julius Africanus determinou em 221 que entre a criação da Terra e a vida de Jesus teriam decorrido cerca de 5.500 anos — e que a Encarnação de Jesus, ou seja, o momento em que Maria engravidou de Jesus, teria ocorrido no primeiro dia do ano seguinte, 5.501. Transpondo essa contabilização do tempo para o calendário atual, esse dia calharia a 25 de março — o que colocaria o nascimento de Jesus exatamente nove meses depois, a 25 de dezembro.

Outra explicação habitualmente apontada para a celebração do nascimento de Jesus em 25 dezembro prende-se com as antigas tradições do Império Romano, que realizava naquela quadra um conjunto de festividades associadas ao solstício de inverno. Ainda segundo a Enciclopédia Britânica, era naquele mês que os romanos celebravam o renascimento do Sol Invicto, um sinal do regresso dos dias longos após o solstício de inverno, e era também por aqueles dias que se realizava na Antiga Roma o festival da Saturnália, uma grande festividade em honra do deus Saturno, associada ao fim do ano agrícola e aos bons auspícios para as colheitas seguintes. Nesse festival, eram comuns os sacrifícios no Templo de Saturno, os banquetes festivos e ainda a troca de presentes entre as famílias.

Poderá, por isso, ter sido essa uma das principais razões para o início da celebração do nascimento de Jesus em dezembro. Quando, no século IV, Constantino se tornou o primeiro imperador a professar o Cristianismo e a elevá-lo à categoria de religião oficial do Império Romano — acabando com mais de três séculos de clandestinidade para a religião dos seguidores de Jesus —, o Natal ganhou pela primeira vez contornos de celebração formal. O dia 25 de dezembro de 336 terá sido o primeiro em que se assinalou o Natal, provavelmente porque o imperador Constantino procurava, com a colocação da nova festa cristã nas datas das antigas festas pagãs, reduzir a influência dos ritos pagãos no Império Romano.

Almeida Inaugurates The Cibeles Palace Nativity Scene

Os presépios ainda procuram recriar a imagem do estábulo onde Jesus nasceu — um dos poucos símbolos cristãos visíveis no Natal contemporâneo

Europa Press via Getty Images

Ainda assim, só mais tarde, já no século IX, é que a celebração do Natal ganhou uma liturgia específica dentro da Igreja. Ao longo do segundo milénio, à medida que a celebração do Natal se começou a consolidar entre as comunidades cristãs — entretanto divididas entre católicas e ortodoxas —, começaram também a desenhar-se as tradições culturais associadas ao período festivo que hoje uma grande parte do mundo ainda observa. Todas elas, da árvore de Natal ao Pai-Natal e até ao bacalhau português, têm uma origem religiosa, embora na maior parte dos casos essa ligação à fé cristã já tenha desvanecido por completo e o Natal se tenha praticamente transformado numa festividade civil de celebração da família.

A árvore de Adão e Eva

Em todo o mundo ocidental, talvez a árvore de Natal seja hoje o símbolo mais reconhecível do período natalício. Há vários séculos que há registos históricos do uso de árvores decoradas para assinalar o período do Natal, além de existirem múltiplos mitos e lendas associados à origem deste símbolo natalício. Um deles remonta ao século VIII, altura em que o próprio hábito de celebrar o Natal ainda estava a desenvolver-se entre as comunidades cristãs do primeiro milénio.

Segundo a revista Time, uma das lendas mais antigas acerca da árvore de Natal envolve São Bonifácio, um santo inglês que viveu entre os anos 675 e 754 e ficou conhecido pelo seu trabalho missionário na região hoje ocupada pela Alemanha e Países Baixos. No início do século VIII, São Bonifácio terá salvo uma pessoa que estaria prestes a ser morta numa cerimónia pagã que envolvia um sacrifício humano debaixo de uma árvore. O santo cortou o carvalho sob o qual o sacrifício iria ser realizado, impedindo a cerimónia, e no lugar do carvalho terá nascido um abeto — a célebre árvore cónica da família dos pinheiros que hoje é amplamente reconhecida como a típica árvore de natal.

Outras histórias populares situam a tradição do pinheiro de Natal alguns séculos mais tarde. A tradição inglesa de usar o azevinho e as folhas de hera para as decorações no período do inverno terá estado na origem do clássico cântico popular de Natal inglês “The Holly and the Ivy” — e poderá ter contribuído para fixar a tradição das árvores de Natal. O artífice da Reforma Protestante, o monge alemão Martinho Lutero, também está associado a uma conhecida história em torno da árvore de Natal: certo inverno, durante um passeio noturno, Lutero terá ficado fascinado com a imagem das estrelas no meio de uma floresta. Procurando dar à sua família uma visão do que o tinha deslumbrado, Lutero terá colocado um abeto na sala de casa, decorado com pequenas velas acesas. Dos celtas aos vikings, múltiplas outras histórias e lendas parecem apontar para uma tradição contínua de recurso às célebres árvores cónicas do norte da Europa como símbolo do inverno e das celebrações da quadra.

Christmas Market In Duesseldorf

A árvore de Natal tornou-se num dos símbolos mais reconhecidos do período natalício

NurPhoto via Getty Images

Contudo, como explica a Time, a explicação mais consensual para o uso da árvore como símbolo do Natal remonta ao início do século XV, quando, na Alemanha, uma popular peça de teatro sobre a história de Adão e Eva usava como adereço central, por motivos óbvios, uma árvore adornada de maçãs. Simultaneamente, como explica o portal católico Aleteia, durante a Idade Média, em vários pontos da Europa o dia 24 de dezembro era assinalado como o “Dia de Adão e Eva” — uma antiga festa litúrgica destinada a recordar aquelas figuras intimamente associadas à ideia de pecado original e à redenção protagonizada por Jesus Cristo. Adão e Eva eram comemorados no dia 24 de dezembro precisamente para reforçar o simbolismo do dia seguinte: o nascimento de Jesus Cristo, que viria a reverter a negação de Deus que Adão e Eva simbolizavam.

A popularidade da peça de teatro terá levado muitos a reproduzirem nas suas casas a tal árvore usada para representar o paraíso — decorada não apenas com as maçãs, mas também com velas, biscoitos e outros sinais de festa — no dia 24 de dezembro, o dia de Adão e Eva. A árvore decorada tornou-se, assim, num símbolo indissociável do período do Natal. A partir dessa tradição, terão surgido os primeiros mercados de inverno especializados em árvores de Natal: o primeiro de que há registos é o de Estrasburgo, onde eram vendidas árvores sem decoração, para que cada um pudesse decorar a sua a seu gosto.

Ao longo dos séculos, a tradição da árvore de Natal transpôs as fronteiras alemãs e universalizou-se. Acredita-se, por exemplo, que o príncipe Alberto, marido da rainha Vitória, tenha levado a tradição para o Reino Unido durante o século XIX — e a imagem do casal em torno da árvore de Natal no Castelo de Windsor, publicada em 1848 na revista Illustrated London News, foi decisiva para disseminar o uso da árvore de Natal até aos dias de hoje, dominados pelas árvores de plástico.

Christmas tree at Windsor Castle.

Imagem da Rainha Vitória e do Príncipe Alberto publicada em 1848 na revista Illustrated London News

Universal Images Group via Getty

O santo que salvou três crianças de se transformarem em fiambre

Um outro elemento está associado à celebração do Natal desde os primórdios: a troca de presentes. Também sobre esta tradição, as explicações multiplicaram-se ao longo dos tempos e as raízes ancestrais confundem-se com as práticas dos últimos séculos — a ponto de ser difícil reescrever sem erros a história do hábito de trocar presentes no Natal.

Um dos elementos óbvios parece estar associado à descrição que consta do Evangelho segundo São Mateus, que narra a viagem de “uns magos vindos do Oriente” que, depois de verem no céu a estrela que indicava o nascimento de Jesus, partiram em busca do lugar onde tinha nascido a criança. Quando chegaram a Belém, guiados pela estrela, ofereceram-lhe três presentes: ouro, incenso e mirra, que representavam, respetivamente, a realeza, a divindade e a humanidade de Jesus. A tradição dos séculos seguintes viria a dar nome e rosto a estes magos que a Bíblia descreve apenas de modo genérico — e os “Reis-Magos” ficariam incontornavelmente associados à ideia da entrega dos presentes no Natal.

Mais tarde, no século III, a reconfiguração das tradições de inverno do Império Romano em celebrações de Natal poderá ter dado uma ajuda, uma vez que já nessas celebrações havia o costume de trocar presentes na família.

Nesta tradição dos presentes, há uma outra figura incontornável: São Nicolau, um bispo grego que viveu no século IV na antiga região da Lícia (hoje na Turquia) e que, muitos séculos depois, viria a servir de inspiração para a figura do Pai-Natal. Apesar das inúmeras lendas e mitos em torno de São Nicolau, não há sequer certezas sobre a sua existência. Mas a tradição coloca-o como santo padroeiro das crianças e associa-o à ideia da entrega de presentes.

Segundo a Agência de Notícias Católica, uma das lendas em torno do santo conta que a cidade de Mira, onde Nicolau era bispo, passou por um duro período de fome durante o século IV e que, durante esses tempos, um talhante teria enganado três crianças para as atrair ao talho, as matar e as colocar em salmoura para as vender como fiambre. Porém, Nicolau terá feito um milagre para ressuscitar as crianças, o que lhe valeu o título de padroeiro das crianças. Outra lenda, menos mórbida, ajuda a explicar ainda melhor como Nicolau se terá tornado num símbolo do Natal: um homem pobre com três filhas não tinha dinheiro suficiente para os dotes que assegurariam os casamentos das filhas e temia que elas tivessem de recorrer à prostituição para se sustentarem caso não casassem. Sabendo da história, o bispo Nicolau terá passado três vezes pela casa da família para atirar três sacos de moedas de ouro pela janela durante a noite, enquanto todos dormiam. Na terceira noite, o pai das jovens, intrigado pelas duas primeiras ofertas, ficou acordado toda a noite para descobrir o benfeitor — mas Nicolau obrigou-o a jurar segredo.

São Nicolau a oferecer um saco de moedas de ouro à família do homem que tinha três filhas — uma lenda que terá inspirado a história do Pai-Natal, que dá presentes pela calada da noite

Wikimedia Commons

Celebrado anualmente no dia 6 de dezembro, São Nicolau é um dos santos mais populares entre os cristãos ortodoxos e é também bastante venerado entre os católicos. Contudo, a devoção a São Nicolau não persistiu nos países do norte da Europa depois da Reforma Protestante, em 1517, com uma única exceção: os Países Baixos, onde o santo era conhecido como Sinterklaas. Aí, o santo continuou a ser venerado e lembrado pela sua generosidade e atenção especial às crianças, numa festa assinalada nas semanas que precediam o Natal. Através dos movimentos colonialistas holandeses, a figura de Sinterklaas chegou aos Estados Unidos da América — à “Nova Amesterdão”, assentamento holandês no lugar onde hoje fica Nova Iorque —, onde se desenvolveria verdadeiramente o culto do “Santa Claus” como patrono do Natal.

Como escreve a revista The Atlantic, é nos EUA que podemos encontrar a génese do hábito contemporâneo de comprar presentes e de alimentar a figura barbuda do Pai-Natal. “A prática de comprar presentes de Natal paras as crianças é anterior à difusão do capitalismo corporativo nos EUA: começou durante a primeira metade do século XIX, particularmente em Nova Iorque, e fez parte de uma transformação mais alargada do Natal, de um tempo de folia pública numa celebração caseira e centrada nas crianças”, escreveu a revista em 2015. Durante séculos, uma das facetas mais visíveis das celebrações do Natal era precisamente a folia nas ruas, à semelhança do que sucedia na Saturnália romana: no tempo de abrandamento da atividade agrícola, em que se esperava que as colheitas do ano seguinte fossem bem-sucedidas e em que se faziam contas à vida, aos camponeses eram permitidos excessos que no resto do ano seriam inadmissíveis como forma de compensar o descontentamento pela falta de condições para a agricultura.

No início do século XIX, com o enorme crescimento da população de Nova Iorque e com a progressiva industrialização dos EUA, aquele período anteriormente vivido pelos camponeses e agricultores passava gradualmente para as classes operárias — e as elites temiam que a continuação daquele tipo de festividade abrisse as portas a protestos contra os empresários industriais. Foi, assim, das próprias elites que partiu a iniciativa de reconfigurar o período do Natal e de o transformar numa festa da família e das crianças. O Sinterklaas foi ressuscitado e as celebrações de São Nicolau, a partir do dia 6 de dezembro, foram o pretexto para esse processo de transformação da festividade.

O célebre poema “The Night Before Christmas”, escrito em 1823 pelo poeta americano Clement Clarke Moore, descreve uma visita de São Nicolau a uma casa de família na véspera de Natal para entregar presentes. O texto serviu para consolidar decisivamente a ideia de São Nicolau/Santa Claus como figura mítica de um Natal centrado na família, na compra de presentes para as crianças e na celebração caseira alimentada pelo consumismo desenfreado numa sociedade que se desenvolvia no capitalismo.

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As ilustrações de Haddon Sundblom para a Coca-Cola, na década de 1930, fixaram a imagem contemporânea do Pai-Natal, figura derivada da lenda de São Nicolau importada para os EUA pelos holandeses

Corbis/VCG via Getty Images

Mais recentemente, já na década de 1930, o pintor norte-americano Haddon Sundblom deu um contributo decisivo para o imaginário natalício contemporâneo ao criar um conjunto de anúncios publicitários para a Coca-Cola protagonizados pelo Pai-Natal. Os desenhos de Sundblom acabaram por fixar a imagem contemporânea do Pai-Natal, o homem de barbas brancas e vestes vermelhas que vive no Pólo Norte (muito longe da antiga Ásia Menor onde o verdadeiro São Nicolau nascera) e que distribui presentes pela calada da noite (tal como o verdadeiro São Nicolau).

Jejum, abstinência e bacalhau

A consolidação do costume de celebrar o Natal como uma das grandes festividades cristãs do ano, marcada por este misto de tradições religiosas e profanas, foi, sem surpresas, acompanhada pela evolução de um complexo repertório gastronómico associado à celebração do nascimento de Jesus. A tradição de assinalar as grandes festas das sociedades com comida é tão antiga como a própria humanidade. Sem sair do domínio bíblico, basta pensar nas celebrações da Páscoa judaica, associadas ao sacrifício e consumo do cordeiro, para compreender a relação íntima entre os festejos religiosos e os banquetes.

Ao longo dos séculos, diferentes países desenvolveram diferentes tradições alimentares para pontuar os principais momentos de festa — e o Natal não é exceção. Por todo o mundo, uma miríade de receitas de carne, peixe e doces tornaram-se símbolos tão eloquentes do Natal como a árvore, os presentes ou o Pai-Natal. No caso de Portugal, há um alimento que fala mais alto que qualquer outro neste aspeto: o bacalhau. Curiosamente, também a tradição portuguesa de comer bacalhau na noite de Natal tem uma origem religiosa.

Historicamente, a carne era um alimento mais nobre e mais caro do que o peixe. Era praticamente só de carne, pão e vinho que se alimentavam os monarcas e a alta sociedade e os banquetes festivos gravitavam sempre em torno da carne, enquanto o peixe era mais comum entre os mais pobres e como alimento de substituição. Ao longo de vários séculos, a nobreza portuguesa privilegiou a carne e foi a carne que ocupou o lugar central nos momentos de celebração. Para os nobres, o peixe surgia em circunstâncias muito específicas. A principal era uma condicionante religiosa: o cumprimento das normas de jejum e abstinência prescritas pela Igreja Católica.

Até à revisão do Código de Direito Canónico de 1983, a véspera de Natal estava abrangida pela lei do jejum e da abstinência, o que significava que até à meia-noite do dia 25 de dezembro era proibido comer carne e só se podia fazer uma refeição.

Em Portugal, país governado por uma monarquia profundamente católica durante vários séculos, esta condicionante foi determinante para o estabelecimento da tradição gastronómica natalícia.

Até há poucas décadas, a doutrina católica era muito mais rígida do que atualmente no que toca à questão do jejum e da abstinência. Basta consultar o Código de Direito Canónico de 1917 — um documento produzido no início do século XX para sintetizar, pela primeira vez, dois mil anos de legislação dispersa na Igreja Católica e fixar uma lei interna para a instituição — para compreender qual a doutrina que a Igreja manteve durante largos séculos.

A anterior lei da Igreja Católica, que esteve em vigor até 1983, ano da aprovação do atual Código de Direito Canónico, determinava uma longa lista de dias em que era necessário praticar o jejum (dias em que só se pode comer uma refeição), a abstinência (não comer carne) ou ambos. Segundo o cânone 1252 do antigo Código, todas as sextas-feiras do ano eram de abstinência obrigatória e todos os dias da Quaresma eram de jejum obrigatório. Além disso, havia um conjunto de dias em que era obrigatório o jejum e a abstinência: a quarta-feira de Cinzas, as sextas-feiras e os sábados da Quaresma, as têmporas (quarta, sexta e sábado da semana em que mudava a estação), a festa da Assunção (15 de agosto), e ainda as vésperas de Pentecostes, Assunção, Todos os Santos e Natal.

Ou seja, a véspera de Natal estava abrangida pela lei do jejum e da abstinência, o que significava que até à meia-noite do dia 25 de dezembro era proibido comer carne e só se podia fazer uma refeição.

Em 1983, a nova versão do Código de Direito Canónico aligeirou substancialmente as normas da Igreja sobre o jejum e a abstinência. Atualmente, há apenas dois dias em que é determinado o jejum e a abstinência: a quarta-feira de Cinzas e a Sexta-Feira Santa. Além disso, em todas as sextas-feiras do ano e no tempo da Quaresma, a norma é a de que seja seguida apenas a abstinência de carne. O período do Natal foi completamente retirado destas normas, bem como as restantes celebrações do ano litúrgico.

Ainda assim, durante a Idade Média, o cumprimento estrito dos preceitos da Igreja Católica obrigou a sociedade portuguesa a conceber um banquete de Natal sem carnes. “A refeição do jantar do dia 24 era a última do período de jejum. Comia-se peixe, à meia-noite ia-se à missa e depois regressava-se a casa para celebrar com carne e doces”, explicou em 2016 à Notícias Magazine o historiador da alimentação Virgílio Nogueiro Gomes. E porquê o bacalhau? “Como em dezembro era difícil os barcos partirem para a pesca e obter peixe fresco, o bacalhau revelou-se o produto ideal para a maioria da população, pobre, cumprir em todo o país a obrigação de jejum.”

O bacalhau é um dos símbolos maiores do Natal em Portugal

Inácio Rosa/LUSA

O bacalhau, um peixe do norte do Atlântico, entrava em Portugal pelo Minho, lugar onde terá tido início a tradição de comer aquele peixe conservado em sal na consoada. Segundo aquele investigador, o uso do bacalhau na consoada, entretanto disseminado para todas as classes sociais, é um exemplo claro de uma tradição alimentar que entrou nos banquetes de Natal por via da população mais pobre — ao contrário do peru, que terá chegado a Portugal no século XVI, época da expansão marítima, oriundo do continente americano (um equívoco sobre o país de descoberta daquela ave terá até estado na origem no seu nome), e se transformou num sinal de grande luxo e riqueza, sendo o protagonista de vários banquetes dos monarcas e da nobreza portuguesa. Hoje, o peru é habitualmente um dos protagonistas do almoço do dia de Natal, embora o título de rei do Natal pertença indiscutivelmente ao bacalhau.

Ao longo dos séculos, segundo explicava o mesmo investigador, outras receitas encontrariam um lugar de destaque na mesa de Natal dos portugueses, incluindo o bolo-rei (cuja simbologia estará relacionada com os presentes entregues pelos Reis-Magos ao menino Jesus) ou as rabanadas (um alimento antigamente dado às mulheres que tinham acabado de dar à luz, para lhes dar forças, e posteriormente associado à festa do nascimento de Jesus). Contudo, à semelhança do que aconteceu com a maioria das tradições natalícias, da árvore à troca de presentes, a origem religiosa da gastronomia de Natal também já começou a desvanecer-se — tanto que, hoje, é possível encontrar vários pratos na ceia de Natal dos portugueses, incluindo o polvo e várias receitas de carne como alternativa ao bacalhau.

O Natal ainda é religioso?

Com a tendência de secularização de praticamente todas as tradições do Natal, incluindo até as de origem mais religiosa ou devocional, podemos perguntar-nos: a celebração do nascimento de Jesus Cristo ainda é verdadeiramente uma celebração religiosa? Nos últimos anos, a questão surgiu com especial fervor nos Estados Unidos, país crescentemente marcado por uma profunda polarização cultural e social entre progressistas e conservadores — intensificada durante a presidência de Donald Trump.

A polarização traduziu-se, entre vários outros aspetos, numa polémica em torno do modo como as pessoas se deveriam cumprimentar durante a época natalícia: com um “Merry Christmas” (Feliz Natal) ou com um “Happy Holidays” (Festas Felizes)? Efetivamente, apesar da origem absolutamente religiosa da celebração, o Natal foi adquirindo ao longo do século XX um carácter secular e, atualmente, a festa tem as suas próprias tradições sociais, familiares, gastronómicas e comerciais. É um tempo de pausa, para celebrar a família e as crianças — mesmo que, para uma larga maioria da população, já não seja relevante lembrar a história que lhe deu origem.

Esse carácter secular do Natal contemporâneo levou à eclosão da polémica em torno dos cumprimentos festivos. Um inquérito realizado em 2016 nos Estados Unidos identificou uma enorme polarização entre democratas e republicanos no que toca a este assunto aparentemente inócuo. Questionados sobre se o cumprimento “Festas Felizes” deveria ser preferido sobre o tradicional “Feliz Natal” durante a época, para respeitar todas as religiões, 67% dos republicanos disseram que não e 66% dos democratas disseram que não. O estudo identificou também as características-tipo das populações que preferiam o “Feliz Natal” (homem republicano acima dos 60 anos que vive na região central dos EUA) e o “Festas Felizes” (mulher democrata entre os 18 e os 29 anos que vive no nordeste do país).

Obama family's last Christmas card from the White House

O postal de Natal da família Obama em 2016 não incluía a palavra "Natal"

picture alliance via Getty Image

A polarização em torno deste assunto tornou-se, rapidamente, numa arma política para Donald Trump, que usou várias vezes o argumento “vamos voltar a dizer ‘Feliz Natal’” para galvanizar os seus apoiantes conservadores contra aquilo que foi batizado nos EUA como a “guerra contra o Natal”. O facto de os tradicionais postais de Natal presidenciais durante o mandato de Barack Obama terem incluído a expressão “Happy Holidays” em vez de “Merry Christmas” irritou particularmente os republicanos mais conservadores — e a promessa do regresso do Natal foi um dos aspetos ideológicos que Trump usou para aprofundar a polarização social no país.

Contudo, em dezembro de 2017, um estudo alargado publicado pelo Pew Research Center concluiu que, afinal, uma grande parte da população americana não dava grande importância à dimensão religiosa do Natal. Nos EUA, um país de maioria cristã (70% da população), apenas 46% das pessoas celebravam o Natal de uma forma essencialmente religiosa, enquanto 33% o celebravam de uma forma sobretudo cultural — e apenas 51% dos inquiridos disseram participar em alguma forma de culto religioso na véspera ou no dia de Natal. O mesmo estudo concluiu ainda que o número de americanos que acreditavam no relato bíblico do nascimento de Jesus estava a diminuir em relação a estudos anteriores.

No caso português, há menos dados disponíveis para compreender a perceção da população sobre a dimensão religiosa do Natal. Sabe-se que a esmagadora maioria dos portugueses se identifica com uma denominação religiosa cristã que celebra o Natal. De acordo com o último recenseamento geral da população, que estudou as identidades religiosas da população acima dos 15 anos de idade, a maioria da população (80,1%) identifica-se como católica, seguindo-se os protestantes/evangélicos (2,1%) e os ortodoxos (0,6%). As Testemunhas de Jeová, por outro lado, apesar de se classificarem como cristãs, não celebram o Natal.

Sobre as práticas religiosas propriamente ditas, há pouca informação. Um dos estudos mais relevantes foi publicado em 2019 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e coordenado pelo investigador Alfredo Teixeira, da Universidade Católica Portuguesa, versando apenas sobre a Área Metropolitana de Lisboa. Uma das conclusões do estudo foi a de que a prática de ir à missa ao domingo está a cair em desuso entre os católicos — embora a participação no culto religioso mantenha uma grande relevância nas denominações cristãs minoritárias. Perante a pergunta “quais destas coisas fez no último fim de semana?”, apenas 14,8% dos católicos responderam ter ido à missa. No mesmo sentido, questionados sobre a frequência do culto religioso, apenas 13,3% dos católicos disseram ir à missa todas as semanas. A maioria vai apenas ocasionalmente — e 23,4% disse nunca ir à missa.

Apesar de estes dados não permitirem uma extrapolação direta sobre se os portugueses comemoram o Natal de forma mais ou menos fiel às suas origens religiosas, o que é certo é que pintam o retrato de um país cada vez menos empenhado na vivência quotidiana da religiosidade e mais virado para as tradições seculares — do Pai-Natal ao bacalhau.

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