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A saúde da nação acima da própria família
O Presidente russo anunciou com pompa e circunstância o registo da primeira vacina em directo nos principais canais de televisão russos, pois era previsível o impacto que iria ter essa informação não só na Rússia, como em todo o mundo.
“Eu sei que ela é bastante eficaz, cria uma imunidade segura e, repito, foi sujeita a todos os testes necessários”, explicou Putin sobre a razão que o levou a dar uma notícia há muito esperada pela humanidade.
E para que não restassem dúvidas de que não se trata de uma manobra de propaganda, fértil no currículo do senhor do Kremlin, revelou o facto de a vacina ter sido testada numa das suas filhas, descrevendo em pormenor a forma como decorreu o teste: “Depois da primeira dose, a temperatura dela foi de 38 [graus centígrados] e, no dia seguinte, 37 e pouco, e foi tudo”.
Para se compreender a importância desta declaração é preciso dizer que Vladimir Putin praticamente nunca fala da sua família, é um dos líderes mundiais mais reservados nesse sentido. Diz-se que tem duas filhas, mas não se sabe ao certo os nomes e apelidos delas. Segundo a imprensa russa, tratam-se de Katarina Tikhonova e Maria Vorontzova. Os apelidos diferentes dos do pai, Putin, pode significar que são ou já foram casadas.
A primeira é mestre em Física e Matemática e dirige o projecto de construção, com base na Universidade Estatal de Moscovo, de mais um análogo russo do Silicon Valley norte-americano. A segunda é mestre em Ciências Médicas e está ligada ao maior projecto privado russo de estudo do cancro e de investigação na área da genética.
“Não foi a Maria, que é médica, mas a Katarina, que é mulher de negócios, que recebeu a nova vacina” – escreve Aleksey Venediktov, redactor-chefe da rádio “Eco de Moscovo”, com boas fontes de informação no Kremlin, para identificar qual das duas foi vacinada.
Tem a Rússia capacidade de concorrência científica?
Esta pergunta é feita por muitos daqueles que consideram que, após a queda da União Soviética, os estudos científicos na Rússia sofreram um duro golpe com a falta de meios financeiros e a “fuga de cérebros” para o estrangeiro, principalmente para os Estados Unidos e países da União Europeia.
Isso é verdade, mas é preciso frisar que este país tem já um longo e antigo historial na investigação e criação de vacinas e medicamentos. Em 1768, a imperatriz Catarina, a Grande, ofereceu-se para ser a primeira voluntária a receber a vacina contra a varíola na Rússia, ou seja, 30 anos antes dessa vacina ter chegado aos Estados Unidos.
Em 1892, o cientista russo Dmitry Ivanovsky detectou um efeito incomum enquanto estudava folhas de tabaco infectadas pela doença do mosaico. As folhas permaneciam contagiosas mesmo depois de o cientista ter retirado as bactérias. Porém, isso foi feito meio século antes de o primeiro vírus ser visto a um microscópio, colocando a pesquisa de Ivanovsky na origem de uma nova ciência chamada virologia.
Após a descoberta de Ivanovsky, a Rússia continuou a ser um dos líderes globais em virologia e pesquisa de vacinas, formando inúmeros cientistas talentosos tais como Nikolai Gamaleya, que estudou no laboratório do biólogo francês Louis Pasteur em Paris e abriu o segundo centro do mundo de vacinação contra a raiva na Rússia em 1886.
Aliás, não é por acaso que o instituto onde foi criada a vacina contra o Ébola e o MERS (síndrome respiratório do Médio Oriente, que tem por base um coronavírus), bem como a anunciada vacina contra a Covid-19 (originada por um novo coronavírus) tem o nome de Nikolai Gamaley. Este centro de investigação debruça-se principalmente sobre áreas como a epidemiologia, microbiologia médica e molecular e imunologia.
Os estudos biológicos na União Soviética tiveram uma forte vertente militar, pois os dirigentes do país não descoravam o perigo de uma guerra biológica no confronto com o Ocidente.
Um dos centros de investigação para fins militares era o Centro Científico Estatal de Virologia e Biotecnologia “Vektor”, situado em Novossibirsk, na Sibéria. Em 1999, Victor Evstigneev, chefe da Direcção de Defesa Biológica do Ministério da Defesa da Rússia reconheceu que o centro “Vektor” começou por produzir meios de defesa contra armamentos biológicos do adversário potencial, mas, nos anos de 1990, tornou-se a “base industrial para a produção de substâncias biológicas ofensivas”.
Hoje, esse centro está também virado para o combate à Covid-19. Em Fevereiro registou um dos testes para a detecção do novo coronavírus e, em Março, começou a testar uma das vacinas russas.
Ou seja, a Rússia conseguiu conservar potencial suficiente para participar na maratona científica internacional pela vacina e medicamentos contra a Covid-19, que foi reforçado com significativos investimentos não só para a protecção da saúde dos cidadãos, mas também como forma de mostrar que o país dirigido pelo autocrata Vladimir Putin não deve ser menosprezado do ponto de vista científico.
Um dos trinta e oito voluntários
Além da filha de Vladimir Putin, na testagem realizada pelo Instituto Gamaley participaram mais 37 voluntários. Um deles foi Anna Kutkina, que relatou ao jornal “Novaya Gazeta” a sua experiência.
Segundo ela, foi internada numa casa de repouso, onde os médicos verificaram se estava de perfeita saúde. Depois, na Universidade de Medicina Setchenovski, foi-lhe injectada uma substância e, durante 28 dias, foi seguida por médicos.
Anna relata que teve 38 graus de temperatura durante dois dias, mas, depois, tudo voltou ao normal, sublinhando que se sente bem, recebeu alta e regressou a sua casa em Rostov Veliky, cidade situada a cerca de 200 quilómetros a norte de Moscovo.
A “cobaia humana”, que reconheceu ter participado nestes testes para melhorar o nível de vida, revelou ter sido recompensada pelo seu trabalho com 100 mil rublos (cerca de 1 170 euros) e espera que a vacina que ela testou salve vidas quando chegar a segunda onda da pandemia no Outono.
Porquê vacina Sputnik V?
Quando a corrida mundial à vacina já tinha alguns meses e se transformara num instrumento de política e de propaganda, na Rússia ouviram-se vozes de que este seria o primeiro país a registar uma nova vacina e que esse facto equivaleria, pela sua importância para a humanidade, ao lançamento do primeiro satélite artificial da Terra, lançado pelos soviéticos em 1957. Tal como hoje, tudo foi feito no maior dos segredos com vista a surpreender o mundo e a mostrar a superioridade do socialismo face ao capitalismo. Feito semelhante foi a viagem do primeiro cosmonauta soviético ao Espaço, Iúri Gagarin, em 1961.
Porém, ainda antes do anúncio de Putin, os dirigentes russos diziam que foram obrigados a trabalhar sozinhos na vacina devido ao facto de o Ocidente não ter manifestado vontade de trabalhar em conjunto, sublinhando que se observam mesmo tentativas de minimizar ou até mesmo denegrir esta descoberta russa.
“Infelizmente, ao invés de olhar para a ciência por trás da comprovada vacina adenoviral e vectorial, testada e desenvolvida pela Rússia, alguns políticos e media internacionais decidiram focar na política e nas tentativas de minar a credibilidade da vacina russa”, escreve o jornal electrónico Sputnik, um dos órgãos de propaganda do Kremlin para o estrangeiro: “Acreditamos que tal comportamento é contraprodutivo e apelamos por um ‘cessar-fogo’ político sobre as vacinas face à pandemia de Covid-19”, frisa.
Anúncio precipitado?
Uma das questões que hoje se discute na Rússia e no mundo é se a direcção russa não se precipitou a anunciar a vacina por motivos políticos.
Denis Logunov, um dos cientistas que participou na criação da nova vacina, declarou, numa entrevista ao jornal electrónico “Meduza” de 23 de Julho, que este êxito se deve ao facto de a ciência russa ter forte experiência na criação de “vacinas vectoriais”, sublinhando: “Nós criámos um padrão para todas as vacinas vectoriais. Semelhantes vacinas não apareceram do nada, mas são activamente utilizadas desde os anos de 1990. Foi em conformidade com esse princípio que criámos a vacina contra o vírus do Ébola, que já registada no nosso país”. Logunov recorda também que “durante três anos criámos a vacina contra o MERS [síndrome respiratório do Médio Oriente]”.
Todavia, o cientista frisou que não estava preocupado com o facto de a sua vacina ser a primeira no mundo ou não e que estava planeado que ela só iria receber o “registo temporário” em Setembro e a sua produção em massa não iria começar antes de finais de 2020.
Receando o anúncio precipitado sobre a nova vacina por parte das autoridades russas, a 10 de Agosto, a Associação das Organizações de Estudos Clínicos, que reúne empresas farmacêuticas e organizações de investigação, apelou ao Ministério da Saúde da Rússia que adiasse o registo da vacina criada pelo Instituto Gamaley, porque “os criadores da vacina testaram-na em menos de cem pessoas”.
Além disso, a associação considera que a vacina foi criada de outra vacina contra o MERS, mas que os testes desta última ainda não terminaram e, por conseguinte, “não existem fundamentos para concluir sobre a sua eficácia”.
Os autores deste documento apelaram ao ministério russo da Saúde a “não forçar o fabrico da vacina”, pois no mundo há já “26 candidatos a vacinas”, sendo que seis já foram testadas com a participação de milhares e dezenas de milhares de pessoas.
“O registo acelerado já não faz da Rússia o líder desta corrida, mas apenas coloca em risco desnecessário os consumidores finais da vacina, os cidadãos da Federação da Rússia”, lê-se no documento publicado por essa organização.
A resposta negativa a este apelo veio de Nikolai Briko, epidemiólogo principal do ministério da Saúde. Ele justificou a decisão das autoridades com o mesmo argumento de Logunov: “Na criação da vacina contra a Covid-19 foi utilizada a mesma tecnologia, com base no adenovírus, por isso, neste caso, a decisão não deve ser revista, adiada, porque a tecnologia já foi testada”.
Quanto ao facto de a vacina não ter sido testada em milhares de pessoas, Briko responde que “a vacina mostrou ser segura, a posterior eficácia será testada”.
Nesta discussão é importante assinalar igualmente que a Organização Mundial da Saúde recebeu com cautela a notícia de que a Rússia registou a primeira vacina do mundo contra a Covid-19, lembrando que ela, como as demais, deve seguir os procedimentos de pré-qualificação e revisão estabelecidos pela agência. “Acelerar o progresso não deve significar comprometer a segurança”, disse o porta-voz da OMS, Tarik Jasarevic.
Desafio ao Ocidente
A Rússia continua a estar entre os países com mais casos de infectados com o coronavírus, registando diariamente cerca de 5 000 casos. Por isso, é também dos mais interessados no aparecimento de uma vacina.
Porém, não parece haver dúvidas de que, na declaração de Putin, predominaram motivos políticos.
Uma fonte por nós contactada em Moscovo considera que o anúncio de Putin possa ter a ver com o receio do Kremlin de que o Presidente norte-americano, Donald Trump, se antecipasse a ele. A pouco menos de três meses das eleições presidenciais, Trump poderia ser tentado a utilizar isso para ganhar votos.
Além disso, a revelação do Kremlin vai ao encontro do ego patriótico de muitos russos e ajuda a desviar a atenção dos problemas económicos provocados pela pandemia, bem como da situação de turbulência política na Bielorrússia.
Uma das razões que leva Putin a apoiar Alexandre Lukachenko consiste no facto de uma possível queda do ditador bielorrusso por movimentos sociais poder ser um mau exemplo para a sociedade russa.
Mas este anúncio tem, sem dúvida, um aspecto positivo: trata-se de um desafio lançado às farmacêuticas ocidentais e chinesas, que poderá obrigá-las a acelerar o lançamento de vacinas. Em jogo estão milhares de milhões de euros e o seu prestígio.
Se voltarmos à corrida espacial, os Estados Unidos responderam à União Soviética com a viagem dos seus astronautas. Vamos ver como irão responder agora.
No meio desta corrida atribulada, a coisa mais importante que se pede é que a vacina não prejudique a saúde dos cidadãos.