Em dezembro do ano passado, José Ribeiro fez um anúncio: o Espaço Ulmeiro, a livraria que abriu no bairro de Benfica no final dos anos 60, ia fechar portas até ao final de 2016. O aumento das despesas, aliado ao número cada vez menor de clientes, levou o livreiro a tomar a decisão, difícil, de encerrar uma das livrarias históricas da cidade de Lisboa, por onde passaram alguns dos grandes nomes da cultura portuguesa. Foi ali, na cave onde frequentemente eram organizadas sessões de música e poesia, que Mário Viegas declamou pela primeira vez. Foi na Ulmeiro que José Afonso passou a madrugada do 25 de Abril.
Dezembro passou, chegou janeiro e a Ulmeiro manteve orgulhosamente as portas abertas. Três meses depois de ter anunciado o seu fim, e graças ao apoio e divulgação que tem recebido, José Ribeiro tem conseguido manter a livraria em atividade. Alguns problemas de saúde obrigaram-no a “abrandar” o ritmo e a mudar o horário de funcionamento — agora, a Ulmeiro está aberta de segunda a sexta-feira, das 14h30 às 19h. Aos sábados, funciona da parte da manhã, entre as 10h e as 13h, e à tarde, entre as 14h30 e as 19h. Mas, se for preciso, José não se importa de aparecer na loja fora do horário normal. Basta combinar. Afinal, ele e a mulher, Lúcia, moram mesmo “na porta ao lado”.
Apesar da aparente tranquilidade, o perigo ainda não passou, é certo. O Espaço Ulmeiro pode mesmo acabar por ter de fechar. Mas José Ribeiro baixa os braços e tem planos para o futuro, que incluem a transformação da livraria numa associação cultural — um passo que permitirá ao espaço subsistir com mais facilidade. Há ainda o plano de concorrer ao programa das “Lojas com História” e de levar a Ulmeiro para fora de portas com uma série de iniciativas. Enquanto isso não acontece, os leilões de livros, que o livreiro iniciou no Facebook para ajudar a pagar as despesas, continuam. E o dono da Ulmeiro garantem que têm tido boa adesão, com compradores de todos os pontos do país — Minho, Alentejo, Madeira e Açores. É que José Ribeiro é um resistente — lutou contra a censura, distribuiu livros na clandestinidade e agora é a vez da sua livraria resistir a um destino que, há três meses, parecia mais que certo.
A Ulmeiro vai continuar. Aqui ou num vão de escada
Sentado atrás de várias pilhas de livros, em frente a um computador, José Ribeiro passa facilmente despercebido a quem entra na loja. A mulher, Lúcia, anda de um lado para o outro ajudando os clientes que vão entrando a conta gotas na livraria, instalada na Avenida do Uruguai, em Benfica, desde 1969. Ao lado de José, Sebastião, o famoso gato amarelo, parece dormir enroscado numa cadeira de pelo. A sua cadeira. “Passa o dia a dormir”, diz José, meio a brincar. “É só comer e dormir!” Às vezes sai da loja e aventura-se na rua, enroscando-se entre os carros. Mas assim que houve o som de um motor, volta para dentro a correr.
Apesar de ter imposto a si próprio um ritmo menos acelerado por questões de saúde, o telemóvel de José não para de tocar. Do outro lado, pedem-lhe uma opinião, perguntam-lhe como está. Na Ulmeiro, uma extensão da sua própria vida, também é assim. À medida que a tarde se vai estendendo, vão aparecendo os amigos, os clientes, os vizinhos, que fazem questão de entrar e de o cumprimentar. E a todos José cumprimenta com um sorriso, meio escondido entre o caos organizado que é o Espaço Ulmeiro.
Os livros estão por todo o lado — nas estantes, em cima de mesas. No primeiro andar e também na cave, que recebeu alguns dos grandes nomes da cultura portuguesa. Natália Correia e David Mourão-Ferreira apresentaram livros lá e José Afonso por lá cantou mais do que uma vez. Carlos Paredes também passou por lá. Foi na Ulmeiro que Mário Viegas declamou poesia em Lisboa pela primeira vez. Também houve gente de fora, como o “grande poeta galego” Manuel Maria Fernández Teixeiro, que realizou uma sessão “espetacular” de poesia na livraria de Benfica. “Chegámos a ter sessões com 150 pessoas”, conta José Ribeiro ao Observador. Na livraria cabem pouco mais de 35. “O Ferlinghetti, o grande poeta da Beat Generation, da [editora] City Lights, de São Francisco, encheu a cave. Uma coisa daquelas!”
Mais recentemente, a livraria recebeu Luís Osório para a apresentação do livro Amor (publicado no ano passado pela Oficina do Livro). “A Cristina Carvalho, a filha do poeta António Gedeão (Rómulo de Carvalho), também esteve cá. Ana Saragoça também. Enfim, fizemos uma série de coisas aqui recentemente e queremos voltar a fazer coisas.” Essa é uma das razões pelas quais José quer transformar a Ulmeiro numa associação cultural. Até porque, na prática, a loja sempre o foi. Antes da Revolução, faziam-se sessões de cinema para as crianças. “Todos os sábados de manhã, os papás deixavam aqui os meninos e passámos o Charlot todo e essas coisas. Ficavam aqui a manhã e depois vinham buscá-los quando acabava.”
José Ribeiro admite que gostam “desse tipo de coisas”, mas é difícil dar conta do recado sozinho. Tal como a arrumação da loja. “Não é tão desorganizado quanto parece, mas é suficientemente desorganizado. Gostaria de ter isto um pouco mais arrumado… De uma forma geral, as secções estão mais ou menos estruturadas. Há é muita coisa fora do sítio porque os próprios leilões. Os livros saem, mas não se vendem todos. Os que não se vendem têm de se voltar a colocar no sítio onde estavam e isso às vezes é trabalho que não dá para um homem só.” É trabalho que se vai fazendo? Sim, “vai-se fazendo”.
“Com a associação cultural as coisas serão um pouco diferente porque algumas pessoas já se disponibilizaram para dar apoio, para que as atividades tenham alguma organização e pessoas também”, conta. “Começámos como uma empresa comercial para apoiar com a nossa existência as cooperativas culturais num tempo em que tinham muita dificuldade em alugar espaços, etc. A Ulmeiro foi fiadora de praticamente todas aquelas que houve antes do 25 de Abril”, lembra, salientando a ajuda que prestaram à LIVRELCO — Cooperativa Livreira de Universitários.
“Importávamos livros para eles, fazendo uma espécie de cobertura para que a PIDE não os apanhasse. As coisas vinham para aqui e só depois é quem iam para a LIVRELCO. Por acaso correu bem.” Foi sorte? “Não foi apenas sorte, também tivemos de pagar a alguém que tinha relações com os correios para que aquilo pudesse passar. A Ulmeiro nessa fase foi obrigada a ser uma empresa comercial para poder facilitar, mas penso que já devíamos ter feito a transformação há mais tempo. Deixamos passar demasiado tempo e acabámos na última estação da via sacra.”
Os tempos agora são outros, é certo. Apesar de ter sido anunciado que a Ulmeiro iria fechar no final de 2016, tal não aconteceu. Mas isso não significa que a hipótese tenha sido colocada totalmente de lado. O encerramento da loja é um fantasma com qual José tem de viver todos os dias. “Essa é uma hipótese que está sempre sob a cabeça”, admite José Ribeiro. “Não podemos dizer que tudo isto é adquirido — podemos é dizer que temos vontade de continuar e que, de qualquer forma, continuaremos. Aqui, no vão de escada…” Quando fala em “vão de escada”, José não fala de forma depreciativa. Até porque “houve livreiros em vãos de escada com trabalhos interessantes”.
O principal problema é, claro está, clientela. “Se não houver clientes, nenhum projeto livreiro ou editorial se aguentará”, diz o dono do Espaço Ulmeiro. “É preciso sempre encontrar formas de as despesas serem cobertas pelas vendas, não há outra forma. A outra forma era termos acesso a mecenas ou o Estado virar-se mais para estas coisas. Já me contentaria que o Estado fizesse alguma divulgação do setor. Já não era mau…”
Para o dono da Ulmeiro, a divulgação é um dos principais problemas do setor hoje em dia. Há vários programas sobre futebol a funcionar simultaneamente na televisão, mas nenhum sobre livros. Não que José desgoste de futebol, que até gosta, mas “o que é em excesso enjoa”. “Cada vez se fala menos dos livros, comparando com os anos 60, 70. A crítica literária desapareceu, haverá uma ou outra referência a livros, mas a esmagadora maioria que se publica permanece mais ou menos olimpicamente esquecida.” Além disso, o Estado também devia mostrar outro interesse no que diz respeito ao setor livreiro.
“Acho que o Estado tem obrigações, pelo menos no que diz respeito ao Ensino e à forma como a leitura é incentivada ou não nos programas escolares, na forma como facilita ou não o contacto com eles.” Um contacto que poderia ser facilitado pelas próprias escolas. “Somos a única livraria em Benfica há 50 anos”, lembra o dono da Ulmeiro. “Há imensas escolas aqui e veríamos com bons olhos a presença das crianças aqui, para terem contacto com os livros. Mero contacto — não é preciso comprarem, não é preciso nada. Mas passarem meia hora de vez em quando a folhearem livros seria um bom e podia mais tarde vir a despertar o interesse pela leitura.”
Foi essa possibilidade, a de poder folhear livros, que fez com que José tornasse livreiro e editor. Nascido em 1942 numa aldeia perto de Ourém, os seus pais eram analfabetos e na casa onde cresceu só havia duas obras. “É curioso, ainda hoje me fascinam”, admite sorridente. “Um era o Viagem ao Centro da Terra, do Júlio Verne, e o outro era um exemplar cartonado, com aquelas capas pretas durinhas, das Décadas da Ásia, de João de Barros. É para mim um grande mistério tentar perceber como é que um livro daqueles estava naquela casa e como foi lá parar. Terá sido um dos meus avós ou bisavós que lá deixou essa semente. Mas tiveram uma grande importância para mim.”
Depois houve a professora primária, uma “senhora excecional”, e as bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, que costumam percorrer o país de norte a sul levando os livros a quem não os tinha. “Tinha pessoal bem qualificado. Poetas, normalmente. Lembro-me que na Gulbenkian esteve o poeta António José Forte, o Carlos Loures, o Máximo Lisboa. Esse tipo de contacto foi extremamente importante. De 15 em 15 dias, lá vinha a biblioteca da Gulbenkian e aquilo era uma festa! Portanto, o contacto com o livro é fundamental.”
Exemplo disso é o caso de um aluno que conheceu durante a visita a uma escola. Depois do encontro, a professora ligou-lhe para lhe contar que o rapaz, que era muito mal comportado e que não mostrava qualquer tipo de interesse pela escola e pelo estudo, mudou radicalmente depois da conversa que teve com José, que lhe contou um pouco da sua vida de livreiro e editor e de como os livros a mudaram. Alguma coisa fez click e, depois disso, o miúdo passou a interessar-se pelos livros e pelas aulas. “Os livros mudaram a minha vida”, admite o dono da Ulmeiro. E podem mudar a de muitos mais. “Cresci numa casa de analfabetos, o meu futuro era ser serralheiro ou coisa que o valha. Na melhor das hipóteses ia trabalhar para a CP. Foram os livros que me fizeram mudar.”
Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha
Mas enquanto o Estado não se chega à frente, José tem planos. E não são poucos. Ainda este mês, vai organizar uma feira para assinalar o primeiro aniversário do Cartão B, um cartão de apoio ao comércio de Benfica, criado pela junta de freguesia, que dá descontos em várias lojas do bairro. “O aniversário e no dia 25 de março e o livreiro garante que “vamos fazer aqui à porta um grande estendal”. Além disso, José Ribeiro tem planeada uma série de outras iniciativas que pretendem levar a Ulmeiro para lá do número 13A da Avenida do Uruguai. “Vamos fazer no princípio da Estrada de Benfica um grande mercado do livro e do vinil. Depois vamos repeti-lo todos os sábados de cada mês no mesmo local, também com o apoio da junta de freguesia.”
As datas ainda estão a ser acertadas, mas a Ulmeiro vai propor que a primeira feira aconteça entre 11 e 15 de abril. Uma segunda feira deverá depois coincidir com a inauguração do Palácio Baldaia, onde irá nascer um novo espaço dedicado à cultura. Dois ou três dias depois, José Ribeiro irá participar numa conversa sobre censura, também no Palácio Baldaia, e talvez haja ainda uma exposição de pintura. Tudo organizado pela Ulmeiro. “Procuramos estar fora daqui”, admite José. “Estamos a dar passos para fazer atividades fora daqui. Consideramos que, se a montanha não vai ao Maomé, o Maomé tem de ir à montanha. Não há hipótese de ficarmos aqui à espera apenas.”
Além disso, existe ainda o plano de transformar o Espaço Ulmeiro numa associação cultural e de, posteriormente, candidatar o espaço ao programa “Lojas com História”, um projeto da Câmara Municipal de Lisboa que pretende promover e salvaguardar o comércio local e tradicional lisboeta. A candidatura pode ser feita pela própria Ulmeiro ou pela Junta de Freguesia de Benfica, que já se mostrou mais do que uma vez disponível para dar todo o apoio necessário.
A presidente, Inês Drummond, garante que que a “junta está completamente disponível para os apoiar”. “É uma livraria com uma história muito importante no combate ao fascismo e luta pela liberdade”, salienta a presidente da junta, que já se reuniu com José Ribeiro “para perceber a gravidade da situação, que é um bocadinho frágil”. Admitindo que existem outras lojas na freguesia com as características necessárias para se candidatarem às “Lojas com História”, Inês Drummond admite que a Ulmeiro “tem umas características de urgência” e que pode fechar a qualquer momento.
Independentemente de quem avança com a candidatura, José admite que é algo que irão tentar. “É uma das minhas batalhas próximas”, admite. “Concretizar a associação, pô-la a funcionar e depois partir para uma série de coisas que queremos fazer. Não ficamos à espera, queremos fazer mais coisas fora da livraria desde já. Não vamos ficar à espera de ser associação para fazermos isto ou aquilo — vamos fazer desde já. Esperamos que esta coisa assim vá indo. É um bocado o pais… vai indo…”
Todas estas mudanças irão transformar a Ulmeiro numa coisa que nunca foi. Apesar de, como diz José, a livraria sempre ter sido uma espécie de associação cultural. Ainda assim, será que isso não lhe custa?
“Não”, responde rapidamente. “Há uma coisa que me caracteriza: nunca lamento nada. O passado já lá vai, não fico agarrado. Fiz muitas asneiras, como é óbvio, tenho um catálogo de erros monstruosos. Sou muito crédulo — crédulo nas pessoas –, e tive algumas experiências muito desagradáveis. Mas continuo igual, isso não me leva a mudar. Gostaria que as coisas tivessem sido diferentes? Sim. Gostaria de ter feito mais coisas, gostaria que as coisas tivessem sido feitas mais rapidamente.”
Mas as coisas nem sempre são como sonhamos e, por vezes, são as circunstâncias que as ditam. “As minhas circunstancias — não só as da livraria, mas também as minhas — também ditaram a forma como as coisas evoluíram. Mas não estou nada, nada arrependido.” É que José não é de arrependimentos: “Não faz o meu estilo”.