Índice
Índice
A pergunta foi feita a altas horas da madrugada, depois de ser confirmada a morte de Yevgeny Prigozhin: “O que significa isto para a Ucrânia?” O conselheiro ucraniano do Ministério dos Negócios Estrangeiros Anton Gerashchenko lançou a questão na rede social X (antigo Twitter) e deu de imediato uma série de respostas. A primeira era taxativa: “Significa que a Rússia vai enfraquecer”, escreveu, antes de acrescentar que Prigozhin era um estratega diferente dos outros no Kremlin, por ser capaz de “abordagens pouco convencionais” e de encontrar “soluções em situações complexas”.
What does the news about the execution of Prigozhin and Utkin mean for Ukraine?
???? First of all, it means Russia will become weaker. A dangerous, cunning, determined, and clever enemy of Ukraine in the person of Prigozhin has been eliminated. He was capable of unconventional… pic.twitter.com/WENdUTmqNc
— Anton Gerashchenko (@Gerashchenko_en) August 24, 2023
Mas Kiev pode ter mais a ganhar com a morte de Prigozhin do que o simples facto de se ter livrado de um inimigo. Precisamente por isso, o colunista da edição norte-americana da Forbes, Melik Kaylan, escrevia na madrugada de quinta-feira que, para descobrir os responsáveis da morte de Prigozhin, é preciso perguntar “cui bono” (expressão latina do Direito que significa “a quem beneficia?”). E, por isso, intitulava o artigo assim: “Por que é que ninguém está a perguntar se foram os ucranianos?”
Horas depois, o próprio Presidente ucraniano respondia: “Não fomos nós. Já sabemos quem foi”, disse Zelensky, na conferência de imprensa com Marcelo Rebelo de Sousa, em Kiev. “Quando a Ucrânia falava ao mundo inteiro de aviões, não era isto que estava a pensar”, acrescentou, em tom de piada.
A pergunta, porém, também já foi feita dentro da Rússia, por alguns propagandistas próximos do Kremlin. E com a investigação ainda a decorrer, não é impossível excluir que o governo de Kiev venha a ser responsabilizado pela queda do avião onde seguia Prigozhin, avisam os especialistas ouvidos pelo Observador. O impacto de tal acusação, contudo, deve ser limitado.
As vantagens e desvantagens que podem sobrar para a Ucrânia no que diz respeito a este incidente prendem-se muito mais com os resultados a longo-prazo deste incidente, dizem. Porque, na verdade, é um problema interno da Rússia — e Zelensky e a sua equipa neste momento limitam-se a observar tudo à distância. Mas há sempre a possibilidade de Putin cair por dentro.
Morte de Prigozhin foi “uma prenda” para Zelensky. Mas foi ele o responsável?
Vladimir Solovyov é um célebre apresentador de televisão na Rússia, conhecido por repetir em público a linha do Kremlin. Esta quinta-feira, num programa da manhã no Canal 1, levantou a hipótese de a morte de Prigozhin ter sido provocada pela Ucrânia. “Isto é obra deles”, disse, segundo o The Telegraph, por ter todos os traços típicos “dos crimes políticos dos Banderistas” — uma expressão usada na Rússia para referir o herói nacionalista ucraniano Stepan Bandera, que colaborou com a Alemanha Nazi.
O russo Oleg Ignatov viu o programa de Solovyov. Ao Observador, este analista do Crisis Group em Moscovo explica que o propagandista não se focou apenas na Ucrânia: “Culpou a Ucrânia, mas também o Ocidente e os liberais. E a discussão não foi especificamente sobre quem matou Prigozhin. Porque eles estão a tentar desviar as atenções, o Estado não parece muito interessado em discutir isto.” E sem uma “narrativa preparada”, diz, na televisão russa ou se vai evitando o tema, ou disparando em todas as direções.
[Já saiu: pode ouvir aqui o terceiro episódio da série em podcast “Um Espião no Kremlin”, a história escondida de como Putin montou uma teia de poder e guerra. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui e o segundo episódio aqui]
Só uma pessoa próxima do Kremlin fez até agora a acusação diretamente: Sergey Markov, ex-conselheiro de Putin e antigo deputado do Rússia Unida, que logo na noite de quarta-feira usou o seu canal de Telegram para decretar que este foi “um ataque terrorista no Dia da Independência ucraniana”. No dia seguinte, subiu a parada, numa entrevista à rádio da BBC: declarou que a morte de Prigozhin é “uma prenda” para Zelensky e que os ucranianos estão certamente “orgulhosos” do ataque que fizeram.
Se o Kremlin vai agarrar esta linha de pensamento ou não ainda é uma incógnita. Mas entre analistas do ecossistema russo, o palpite é que isso pouco importa. “Podem culpar a Ucrânia? É possível. Mas é pouco relevante se culpam um associado de Prigozhin, a Ucrânia ou quem quer que seja, porque poucos russos vão acreditar”, acrescenta Oleg Ignatov.
O norte-americano Daniel Treisman, especialista na Rússia da Universidade da Califórnia, diz que devemos esperar que Kiev venha a ser responsabilizada pelos propagandistas do Kremlin porque “fazem sempre isso com as notícias embaraçosas”. “Mas há aqui uma subtileza”, aponta o professor de Ciência Política ao Observador. “O Kremlin vai negar oficialmente ser responsável pela morte de Prigozhin — e isso até pode ser verdade —, mas a equipa de Putin vai ter esperança que isto assuste outros que possam estar a pensar em fazer um novo motim. E se Prigozhin tiver sido morto pelos ucranianos, já não há nenhum efeito de dissuasão sobre os nacionalistas russos.”
Pôr as culpas em Kiev tem ainda um outro efeito contraproducente, aponta o alemão Andreas Umland, do Centro de Estocolmo para os Estudos da Europa de Leste: “Seria uma vergonha para a Rússia admitir que a Ucrânia tinha conseguido isto”, afirma. “Acho que vamos ouvir muitas versões diferentes sobre quem matou Prigozhin e a da Ucrânia vai ser só mais uma. Exatamente como aconteceu com o avião da Malaysian Airlines, em 2014.”
Impacto no moral das tropas “joga a favor da Ucrânia”.
Como explicar então a afirmação do conselheiro Gerashchenko de que “a Rússia vai enfraquecer” com a morte de Prigozhin? Em Kiev, apostam-se todas as fichas na ideia de que ou a divisão interna começada pelo líder da Wagner terá continuidade ou outras figuras como ele podem vir a desafiar Vladimir Putin.
A primeira hipótese sustenta-se nas ameaças deixadas nos grupos de Telegram próximos da Wagner logo depois do acidente, com vários canais a prometerem “vingar” a morte do chefe. “O assassinato de Prigozhin vai ter consequências desastrosas”, previu mesmo o blogger Roman Saponkov, próximo da Wagner, como destacou o Financial Times. “As pessoas que deram esta ordem não compreendem de todo o ambiente e o moral no Exército.”
Mas os especialistas têm dúvidas de que a Wagner tenha agora capacidade para levar a cabo uma rebelião semelhante à de junho, até porque as suas tropas estão neste momento espalhadas pela Bielorrússia, Rússia, África e Ucrânia. “Há muitos combatentes da Wagner doutrinados que apoiam verdadeiramente Prigozhin e há claro o risco de quererem vingança. Lembra-se do “Dia do Chacal”, quando tentaram matar De Gaulle?”, pergunta Ignatov, referindo-se a uma das tentativas de assassinato mais conhecidas contra o Presidente francês, em 1962. “Alguns deles são um risco para o governo — mas creio que o Kremlin sabe isto e está atento.”
Já Umland é mais categórico: “A Wagner está sem liderança política e, sem ela, não vejo como o podem conseguir. Por agora, Putin resolveu o problema.” O analista alemão, porém, avisa que Prigozhin era apenas “o sintoma” de um descontentamento mais profundo que ainda grassa no Exército, facto também destacado por Daniel Treisman. “Isto não vai melhorar o moral dos oficiais mais radicais que partilham a frustração de Prigozhin com os comandantes militares”, diz o norte-americano.
É precisamente esse descontentamento, ligado sobretudo ao rumo incerto da guerra na Ucrânia, que pode levar a uma convulsão interna na política russa. Poucos dias antes da morte de Prigozhin, a consultora russa Tatyana Stonovaya previa que, à medida que o conflito se arrasta, o desagrado pode dar azo a novas atitudes: “Esta viragem para os problemas internos pode levar a uma atitude mais pragmática face à guerra da Ucrânia, que ao mesmo tempo pode tornar o Estado muito mais implacável com os seus cidadãos”, alvitrou, num artigo publicado na Foreign Affairs.
É precisamente por isso que Andreas Umland considera que, embora a morte de Prigozhin seja um problema interno da Rússia, “joga a favor da Ucrânia”. “Tudo isto enfraqueceu Putin. A curto-prazo, ele conseguiu restabelecer a cadeia de comando, mas os problemas ainda lá estão. Talvez outros ‘cisnes negros’, como Prigozhin, se levantem no futuro.”