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“É mais do que uma controvérsia legal. É basicamente um golpe de Estado formalizado”, afirmou o político romeno pró-Putin, anti-NATO e anti-UE, Călin Georgescu, na passada sexta-feira. O surpreendente vencedor da primeira volta das eleições presidenciais da Roménia reagia assim à decisão sem precedentes do Tribunal Constitucional de anular totalmente as eleições presidenciais. Em causa estão alegadas interferências russas no processo eleitoral, através da compra de conteúdos pró-Georgescu no TikTok — onde o candidato conduziu grande parte da sua campanha — que estão a ser investigadas.
A decisão do Tribunal fez soar alarmes em todos os campos políticos. Do lado de Georgescu multiplicaram-se as críticas ao sistema e aos partidos tradicionais. Ao centro, questionou-se a legitimidade da anulação, uma vez que quatro dias antes, o mesmo Tribunal tinha validado os resultados. No campo pró-UE, de que faz parte o governo, procura dar-se resposta à capacidade de Moscovo continuar a interferir no processo democrático de antigos Estados satélite — as acusações de interferência russa já tinham sido feitas em eleições na Moldávia e na Geórgia. O Kremlin desvalorizou, atirou piadas e criticou a “histerismo” e as “maquinações do Ocidente”.
No entanto, a crise política na Roménia não termina nesta decisão. No dia 1 de dezembro, os romenos também votaram nas eleições legislativas, das quais não resultou uma maioria clara. A solução política foi um acordo entre os partidos pró-Europa, mas com muito pouco em comum para além disso. “Não ficaria surpreendido se o governo simplesmente caísse ao fim de um ano”, afirma Kamil Całus, analista especialista na Roménia do think tank OSW, ao Observador.
Por agora, este governo tem uma decisão urgente a tomar: a marcação das novas eleições presidenciais. E coloca-se uma questão milionária: tendo em conta as investigações em curso, Călin Georgescu pode voltar a concorrer?
A decisão sem precedentes do Tribunal Constitucional: validação dos resultados, documentos desclassificados e anulação das eleições
A vitória de Georgescu no dia 24 de novembro foi surpreendente, pois o candidato não tinha expressão nas sondagens nem uma extensa cobertura mediática. Foi na rede social TikTok que o político anti-sistema se afirmou e conquistou 22,94% dos votos. Mas, depois de um queixa de um candidato que apenas teve 1% dos votos, o Tribunal Constitucional exigiu uma recontagem dos votos. Os votos foram contados novamente e os resultados da primeira volta foram validados no dia 2 de dezembro. A decisão era final.
Porém, esta decisão durou apenas quatro dias. No dia 4 de dezembro, o Presidente Klaus Iohannis desclassificou cinco documentos das secretas, do Ministério da Administração Interna e dos serviços de telecomunicações. Os documentos expunham que milhares de contas no TikTok foram compradas para promover Georgescu como candidato. Influencers recebiam cerca de 80€ por cada 20 mil seguidores sempre que fizessem uma publicação que promovesse o “candidato ideal” — o nome de Georgescu não era dito explicitamente, mas o perfil descrito pelos influencers era muito semelhante.
Os documentos identificam pelo menos 25 mil contas no TikTok que promoveram Georgescu, onde se verificou, na maior parte, um pico de atividade intenso durante a campanha eleitoral. Muitos utilizaram um endereço IP único, o que dificulta a sua identificação. Entre influencers e bots, os apoiantes que contribuíram para a campanha pró-Georgescu incluem ainda indivíduos com ligações a organizações fascistas e paramilitares.
Uma das pessoas que terá financiado esta campanha é Bogdan Peșchir, cujas propriedades na região da Transilvânia foram alvo de buscas pelas autoridades romenas durante o fim de semana, avança o Politico. Peșchir terá pago 361 mil euros a utilizadores do TikTok e está a ser investigado por corrupção eleitoral, branqueamento de capitais e falsificação informática. Além disso, as autoridades estão a ainda a averiguar uma possível violação de uma proibição de símbolos fascistas nas mesmas propriedades.
Contudo, Peșchir não tem ligações claras a Moscovo e a Rússia também não é mencionada diretamente em nenhum dos documentos. Os serviços de informação romenos destacam apenas que “a atividade das contas pode ter sido coordenada por um ator estatal“.
No dia 6 de dezembro, o Tribunal Constitucional declarou que o conteúdo dos documentos mostrava “que o processo eleitoral foi viciado em toda a sua duração por múltiplas irregularidades e violações da legislação eleitoral que distorceram a natureza livre e justa do voto”, citam os media romenos. Os juízes notaram a utilização de inteligência artificial e financiamento não declarado como violações das leis eleitoral e anularam todo o processo.
Cristian Pîrvulescu, diretor da Faculdade de Ciências Políticas de Bucareste, explica ao Observador que as duas decisões não são contraditórias. A decisão do dia 2 de dezembro, que exigiu a recontagem dos votos, foi feita ao abrigo da lei eleitoral, devido à proximidade no número de votos entre os candidatos. Já a decisão do dia 6 está prevista na Constituição, que obriga o Tribunal a garantir a ordem constitucional, incluindo das eleições.
Ora, os documentos desclassificados continham “informações novas relevantes”. “Os documentos indicavam um desvio do processo eleitoral sob a forma de um golpe eleitoral”, considera, acrescentando que a forma de “garantir a ordem constitucional foi cancelar as eleições”. “Situações excecionais, medidas excecionais“, resume.
Kamil Całus reconhece a legalidade da decisão, mas tem uma interpretação mais cética da decisão. “Eu entendo isto como um ‘truque ilegal’, ou seja, uma omissão da lei, mas levantou muitas dúvidas”, nota o analista, que sugere que o Tribunal podia ter esperado pela segunda volta das eleições e anulado a segunda volta, citando exatamente as mesmas razões. “O principal problema é terem mudado a sua opinião anterior”, considera.
“A solução correta”, diz a esquerda. “Ilegal e imoral”, diz a direita. Choque de posições dentro da mesma coligação
As dúvidas que o investigador Całus coloca sobre a decisão do Tribunal refletem-se na diversidade de reações que esta arrancou à classe política romena. O Presidente Iohannis afirmou que vai respeitar a decisão do Tribunal e manter-se em funções até ser eleito o seu sucessor. Justificou ainda a sua decisão de desclassificar os documentos dada “a gravidade” do caso. O primeiro-minstro incumbente (do PSD, de centro-esquerda), Marcel Ciolacu, afirmou que era “a única solução correta”.
Para além de um “golpe de Estado formalizado”, Călin Georgescu afirmou que a democracia está sob ataque, o primado da lei está em coma e a Justiça já não existe — e defendeu o protesto contra esta realidade. Ele mesmo se manifestou contra o cancelamento da segunda volta das eleições, ao apresentar-se em frente à sua mesa de voto no dia 8 de dezembro. “Ao cancelar a democracia, a nossa liberdade está cancelada”, declarou aos jornalistas no local.
George Simion, líder da Aliança pela União da Roménia (AUR) — o partido de extrema-direita que viu Georgescu nascer politicamente e depois o expulsou pelas suas visões radicais — concordou que se tratou de um “golpe de Estado”. Contudo, pediu às pessoas que não protestassem. “O sistema deve cair democraticamente”, escreveu Simion.
“Ilegal, imoral e esmagador da essência da democracia”, classificou por sua vez Elena Lasconi. A política do União Salvar a Roménia (USR) — de centro-direita, liberal e pró-UE — conseguiu um segundo lugar na primeira volta das eleições e teria enfrentado Georgescu na segunda volta. Lasconi defendeu que a segunda volta devia ter acontecido na mesma.
Apesar da dissonância entre o PSD e a USR no que toca a esta decisão, os dois partidos farão agora parte de uma coligação de governo, anunciada na terça-feira. O PSD conseguiu uma vitória nas eleições legislativas de dia 1 de dezembro, mas não obteve uma maioria suficiente para governar. Em 2021, face ao mesmo cenário, coligou-se com o Partido Nacional Liberal (PNL), de centro-direita, com quem tinha alternado na governação desde 1989. Desta vez, o bloco central PSD/PNL não foi suficiente.
Depois de negociações, PSD, PNL, USR e ainda UDMR (Partido da minoria étnica húngara na Roménia) anunciaram uma coligação. Espalhados pelo espectro partidário, partilham o sentimento pró-UE, que os separa das figuras da extrema-direita, em que se inclui Georgescu. Mas isso pode não ser base suficiente para governar, alertam os especialistas ouvidos pelo Observador.
“Será uma coabitação difícil”, considera Kamil Całus, principalmente para a USR que ganhou eleitores criticando os partidos no poder, o PSD e o PNL. “Além dos partidos radicais, a USR era o único que se apresentava como alternativa aos partidos tradicionais e agora está numa coligação [com esses mesmos partidos]”, nota. O investigador argumenta que isso pode ser “combustível político” para alimentar os partidos radicais antissistema.
Cristian Pîrvulescu sublinha que, além das diferenças ideológicas, a Roménia não tem uma tradição de governar em coligação, o que pode amplificar os desafios. Por agora, prefere pôr os olhos no futuro imediato: a escolha de um novo Presidente.
Investigações do Ministério Público podem impedir Georgescu de se recandidatar
Primeiro, o novo governo de coligação tem de tomar posse. Depois, uma das prioridades deverá ser o anúncio de novas eleições presidenciais — que só poderão acontecer num período mínimo de 75 dias a partir do anúncio. Tempo em conta este prazo, a escolha do novo Presidente da Roménia só deverá acontecer em março ou abril de 2025.
Durante esse período, os políticos devem apresentar as suas candidaturas. Porém, em todos os campos políticos há muitos pontos de interrogação sobre quem serão estes candidatos. Apesar da coligação no governo, os analistas ouvidos pelo Observador estão céticos que os quatro partidos apresentem apenas um nome, pois isso só iria beneficiar a extrema-direita. “Um único candidato significa oferecer à extrema-direita sem qualquer esforço, um lugar na segunda volta das eleições presidenciais”, afirma Pîrvulescu. Além disso, ajudaria a justificar o discurso dos partidos antissistema, como a AUR, que pode apontar o dedo à mudança de postura da USR.
Pîrvulescu sugere que uma forma de contornar esta questão seria o apoio a um candidato independente e adianta que o presidente da Câmara de Bucareste, Nicușor Dan, já foi apresentado como “uma hipótese de trabalho”.
Já uma recandidatura bem-sucedida de Călin Georgescu é improvável. Politicamente, a extrema-direita pode ter saído reforçada da anulação das eleições, já que esta decisão confirma, no entendimento desses partidos, um pendor de todo o sistema a favor do partido do governo, principalmente o PSD. Ainda assim, os investigadores ressalvam que a sociedade ficou extremamente dividida — entre pessoas anti-Georgescu, que apoiam a anulação; pessoas anti-Georgescu, mas que acham que o Tribunal tomou a decisão errada; e pessoas pró-Georgescu — e que os efeitos a longo prazo da decisão histórica do Tribunal Constitucional ainda estão a ser analisados.
Por outro lado, o futuro de Georgescu pode incluir processos legais que o impeçam de concorrer. A investigação ao caso de fraude eleitoral e branqueamento de capitais não envolve, por agora, Georgescu, tal como sublinhou o seu porta-voz ao Politico. Mas à medida que a investigação do Ministério Público romeno se desenrolar, o seu nome pode acabar envolvido, argumenta Całus ao Observador.
Ao mesmo tempo, há outra investigação que o pode prejudicar. No dia 8 de dezembro, um grupo de 20 pessoas armadas — com armas de fogo, machados, catanas e facas — foram detidas a caminho de Bucareste, onde teriam planeado perturbar os protestos pacíficos pró-UE que estavam a acontecer na capital. O grupo seria liderado por um ex-mercenário, Horaţiu Potra, que foi sujeito a termo de identidade e residência durante a investigação a este caso. Tanto Potra como Georgescu negam uma ligação relevante entre os dois, mas os media romenos e Kamil Całus identificam Potra como “chefe de segurança de Georgescu”.
Depois de ter sido presente a tribunal esta sexta-feira, Potra esclareceu aos jornalistas que o destacamento de segurança do candidato presidencial é composto por outros mercenários com quem trabalhou no Congo, que sugeriu para o posto, mas que não operam sob as suas ordens. Além disso, garantiu que nunca se reuniu diretamente com Georgescu, apenas com a sua equipa, para discutir um pedido que lhe foi feito para aumentar a segurança. Całus argumenta que o Ministério Público está à procura de envolvimentos diretos de Georgescu em qualquer uma destas duas investigações pendentes, que possam resultar numa acusação.
“Se [Georgescu] fosse acusado de crimes relacionados com eleições, ele seria impedido de concorrer novamente. Ficaria muito surpreendido se [os procuradores] não encontrarem uma forma qualquer de o travar de concorrer”, resume o investigador.
O “histerismo” com a interferência russa e os “problemas sistémicos” que pôs a nu
Apesar das duas investigações do Ministério Público próximas de Georgescu e das interpretações de especialistas, a verdade é que não há qualquer ligação inegável ao seu nome. Da mesma forma, o Kremlin continua a esquivar-se e a ripostar às acusações de interferência. Logo após as eleições, o porta-voz do Kremlin afirmou que não estava familiarizado com Georgescu ou as suas políticas. Desde aí, o romeno já repetiu, em entrevista à Sky News, que admirava a dedicação de Putin ao seu país, mas garantiu que não era “um fã”.
Moscovo não dá a entender ligações mais profundas que uma mera admiração não reciprocada. Cinco dias depois das eleições Dmitry Peskov voltou a afirmar que “o lado russo não interferiu nos processos eleitorais da Roménia”. “Não costumamos ter esse hábito”, acrescentou. Já o Presidente russo apenas se referiu à Roménia uma vez. “As autoridades não gostaram do candidato [que ganhou] e decidiram recontar os votos“, atirou Vladimir Putin durante um evento com cientistas, depois de ter sido questionado sobre o tema.
Já depois da desclassificação dos documentos, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russos voltou à defesa. “A campanha das eleições presidenciais da Roménia está a ser acompanhada de uma vaga sem precedentes de histerismo anti-russo“, afirmou a porta-voz Maria Zakharova. Acusou os políticos romenos de “reações rebuscadas” e o Ocidente de se “envolver em jogos”. E fê-lo novamente quando o Tribunal anulou as eleições, desta vez pela voz do ministro Sergey Lavrov: “Não queremos saber o que eles estão a fazer lá, a tentar justificar as suas maquinações“, declarou o chefe da diplomacia russa na passada sexta-feira. “Estou certo de que qualquer observador mais ou menos objetivo compreenderá perfeitamente todos estes jogos”, acrescentou.
Ainda assim, a União Europeia revelou-se preocupada com a capacidade de as novas tecnologias influenciarem a democracia. “Vemos os exemplos na Roménia, mas também noutras partes, de que os russos descobriram o código para influenciar eleições“, avaliou a nova Alta-Representante da UE para os Negócios Estrangeiros, Kaja Kallas. Nesse mesmo sentido, Bruxelas apertou o escrutínio ao TikTok, ordenando à aplicação que preserve todas as informações internas relativas às eleições presidenciais na Roménia, para que os dados possam ser avaliados.
Mas a mão da Rússia e do TikTok pode não ser a única explicação para a crise política na Roménia: “A Rússia até pode estar envolvida, mas se a Rússia é capaz de, apenas através do TikTok, promover um candidato desconhecido e num mês torná-lo vencedor da primeira volta, isso significa que há um problema muito enraizado, um problema sistémico no nosso sistema político“, argumenta Kamil Całus.
Cristian Pîrvulescu partilha desta visão e considera que o TikTok só canalizou posições já existentes e “criou um sistema favorável a extremismos”. E deixa um alerta: “Tal como em Portugal, o algoritmo do TikTok amplifica e facilita a radicalização”.