Passavam poucos minutos das oito da manhã quando a tese começou a correr entre socialistas: Pedro Nuno Santos ia aproveitar a reunião agendada com Luís Montenegro para propor ao líder do PSD a partilha da presidência da Assembleia da República, uma solução praticamente inédita na democracia portuguesa e semelhante àquela que é usada no Parlamento Europeu. A essa hora, no entanto, confrontados com aquilo que era, na altura, apenas um rumor, os sociais-democratas ouvidos pelo Observador atiravam-se ao ar: a proposta, a concretizar-se, era do plano do delírio, porventura inconstitucional, um absurdo. A resistência durou pouco tempo. Poucas horas depois, iriam mudar de opinião.
Segundo apurou o Observador, o grande arquiteto da solução foi mesmo Francisco Assis — mas foi Pedro Nuno Santos quem assumiu as despesas da casa. E foi preciso um esforço de aproximação entre Luís Montenegro e o líder socialista, que implicou que ambos cedessem pelo menos uns centímetros. Ainda na segunda-feira, à noite, os dois falaram ainda no plenário e combinaram encontrar-se presencialmente no dia seguinte para uma reunião — Luís Montenegro participou nela sozinho; Pedro Nuno Santos estava na sala com mais gente.
A primeira proposta dos socialistas era inaceitável para Luís Montenegro: além de ser uma presidência rotativa, o PS pretendia que ao fim de um ano José Pedro Aguiar-Branco renunciasse ao cargo para dar lugar ao candidato socialista — aceitar tal coisa, seria basicamente assumir que a legislatura só vai durar dois anos (como muitos apostam) e não os quatro supostos.
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Montenegro acabaria por recusar e propor que os presidentes do Parlamento ficassem no cargo por duas sessões legislativas, os tais dois anos e meio. Pedro Nuno Santos acabou por aceitar, mas houve um processo de convencimento de José Pedro Aguiar-Branco que demorou tempo e exigiu alguma dose de esforço. Segundo apurou o Observador, o antigo ministro da Defesa não queria aceitar esta nova circunstância e ficou desagradado com tudo o que estava a acontecer — de resto, tiveram de ser alguns dos seus colaboradores mais próximos a convencê-lo.
Durante algum tempo, no entanto, pairou a ameaça de novo impasse. Como inicialmente Aguiar-Branco parecia estar irredutível, e como o PSD chegou a considerar a hipótese de forçar novamente a votação do seu candidato, os socialistas ameaçaram manter a candidatura de Francisco Assis, o que seria sinónimo de nova votação inconclusiva — por essa altura, o Chega ainda não tinha apresentado a candidatura de Rui Paulo Sousa, mas era evidente para todos que não iria ceder.
A ideia acabaria assim por ser aceite pelos sociais-democratas, perante o cenário de impasse, minutos antes de o Chega avançar com o seu candidato próprio — o que, em rigor, só reforçaria a necessidade de acordo entre PS e PSD. Ainda assim, os socialistas quiseram mais tempo e acabaram por pedir um novo adiamento da votação, que passou para a parte da tarde, depois de inicialmente ter estado prevista para o meio-dia. O objetivo era reunir a bancada para comunicar a decisão e explicar o argumentário que os socialistas passariam a usar nas horas seguintes.
Assis não quis ficar preso, mas lugar será seu se o quiser
Com este plano em marcha, ficava pelo caminho a candidatura de Francisco Assis — sem garantias de que esta venha a concretizar-se daqui a dois anos. Desde logo porque, numa legislatura onde o perigo de instabilidade está comprovado e para a qual muitos antecipam uma morte prematura, um compromisso para 2026 pode não ser mais do que uma miragem. Depois, porque o próprio Assis não quererá sentir-se “aprisionado” no papel de candidato prometido, que lhe restringiria a liberdade de movimentos.
Assim, como o próprio Assis disse ao Observador esta tarde, “este é um entendimento entre os dois partidos; daqui a dois anos avaliaremos quem deve ser o deputado ou deputada em melhores condições para presidir à Assembleia da República”. Ainda assim, se Assis ainda estiver, nessa altura, disponível para assumir o compromisso, é agora assumido no PS que ninguém deverá colocar obstáculos: terá o caminho aberto e a legitimidade para isso. Ainda para mais, tendo sido o candidato mais votado nas duas rondas em que participou de improviso — aliás, muitos socialistas, quando ainda não estavam a par da solução proposta por Pedro Nuno Santos, defendiam que o socialista devia continuar em jogo até ao fim.
A maior parte da bancada só percebeu mesmo o que estava a acontecer quando ouviu a novidade, durante a reunião do grupo parlamentar. Mas rapidamente se consensualizou que a decisão era “inevitável”, como descreve um deputado: ou o PS deixava a situação “arrastar-se mais uns dias” ou tomava já a dianteira, assumindo a “responsabilidade” de acabar com o impasse.
Para Pedro Nuno Santos, a proposta passava a constituir-se como uma oportunidade para mostrar que tem “capacidade de iniciativa e liderança” para ultrapassar obstáculos, como viria dizer ao fim da tarde, quando acusou Montenegro de aparecer no encontro entre os dois sem nenhuma “solução” para apresentar. Por isso mesmo, os socialistas passaram o dia a frisar que a “iniciativa” foi deles — uma tentativa de marcar território que foi audível nos apartes que saíram da bancada socialista quando o nome de Aguiar Branco se viu finalmente aprovado (“O PS resolve!”).
A dança a três que vai marcar a legislatura
Faltava a segunda fase do plano, porventura ainda mais complicada do que a primeira: a partir de agora será preciso “separar bem” as coisas, como resume um deputado ao Observador. Ou seja: o PS tinha a consciência de que o Chega apareceria, como apareceu, imediatamente pronto a acusar o PS de se ter transformado na muleta do PSD, desejoso de se anunciar como líder da oposição. E é esse lugar que o PS não quer deixar vago, e muito menos ocupado pelo Chega.
Ainda antes de Pedro Nuno, foram dois nomes associados à ala mais centrista do PS — Eurico Brilhante Dias e Francisco Assis — que quiseram sair da reunião da bancada do PS para esclarecer aos jornalistas que o alinhamento circunstancial com o PSD, fruto da vontade de proteger as “instituições” e a “civilidade”, não daria o mote para qualquer entendimento programático ou de fundo.
O resto do dia do PS foi passado a tentar deixar clara essa separação: pelas publicações dos deputados nas redes sociais repetiam-se as mesmas expressões sobre um PS que “mostrou ser o adulto na sala” nesta circunstância, enquanto o PSD mostrava que nem consegue liderar, nem tem uma maioria estável à sua disposição. Mas isso não significa que haja qualquer consenso “programático” entre as duas forças, nem que vão passar a negociar políticas concretas.
Pedro Nuno Santos surgiria ao fim do dia, no Parlamento, para selar essas promessas: não pode haver “nenhuma confusão” quanto à posição que o PS assume relativamente ao PSD, garantiu; “O PS não será suporte de um governo da AD e é bom que isso fique claro para todos”, insistiu. Terá, previsivelmente, de ouvir o Chega a partir de agora a insistir no contrário, tendo como palco um Parlamento fragmentado e imprevisível.
Assim que foi conhecido o acordo, André Ventura chamou-lhe um figo. “Tendo havido um acordo entre PS e PSD, parece que fica evidente que só haverá um partido que fará oposição. Que será o Chega. O PSD escolheu com quem fazer verdadeiramente os seus acordos”, atirou Ventura, deixando no ar a ameaça de que irá votar contra o Orçamento do Estado para 2025 — o que obrigaria, necessariamente, Montenegro a ter de se entender com os socialistas.
No seu primeiro discurso nas novas funções, Aguiar-Branco não esqueceu a dificuldade que teve em ser eleito e a estranha circunstância em que está envolvido, sendo, na prática, um presidente da Assembleia da República a prazo. “Se há alguma coisa que aprendemos ontem é que não devemos desistir da democracia. Eu não desisto. Repensar o regimento para o que aconteceu ontem não se volte a repetir. A bem da democracia”, sugeriu.
Pelo PSD, apenas uma pessoa falou sobre o acordo — e depois de ter sido antecipado na reunião da bancada parlamentar do PS. Joaquim Miranda Sarmento, que é ainda formalmente presidente do grupo de deputados até à eleição de Hugo Soares, falou aos jornalistas, numa declaração sem direito a perguntas, para dizer que era preciso “ultrapassar o impasse” e “não deixar o Parlamento e o Governo ficarem parados”. Há problemas graves no país. Este impasse não serve os interesses dos portugueses”, sentenciou. Luís Montenegro permaneceu sempre em silêncio.