Enviado especial ao Vaticano
O escritório ainda está a ser montado. No chão, encostados às paredes brancas, três quadros aguardam o dia em que serão pendurados: um retrato oficial do Papa Francisco e duas réplicas de fragmentos de um fresco do século XV de Melozzo da Forlì, com anjos tocadores de alaúde. Há uma estante, em grande parte ainda vazia. Na secretária de madeira escura, o computador fixo ainda não tem ligação à internet — e o bispo português D. Carlos Azevedo, o novo inquilino deste gabinete quase vazio a poucos passos da Praça de São Pedro, no Vaticano, serve-se temporariamente do computador portátil para trabalhar nas novas funções para as quais o Papa Francisco o nomeou há precisamente um mês.
Estamos nas instalações do Comité Pontifício para as Ciências Históricas, um dos muitos organismos que compõem a Cúria Romana (o governo da Igreja Católica a nível global, liderado pelo Papa) — mas o lugar está longe de se assemelhar aos ambientes de mistério e opulência popularizados nas ficções de Dan Brown. O edifício, em tons pastel como a maioria da cidade de Roma, é na verdade absolutamente banal, um dos muitos que compõem a enorme Via della Conciliazione, a grande avenida que desemboca na Praça de São Pedro. Na rua, ao lado da porta por onde se entra no mundo da Santa Sé, há cafés, lojas de recordações e um movimento de milhares de turistas, que se juntam por estes dias aos milhares de peregrinos que têm acorrido ao Vaticano para velar o corpo do Papa emérito Bento XVI, que morreu no último sábado aos 95 anos de idade.
D. Carlos Azevedo, de 69 anos, trabalha na Santa Sé desde 2011. Mas o antigo bispo auxiliar de Lisboa, que coordenou a organização da única viagem do Papa Bento XVI a Portugal, em 2010, chegou ao Comité Pontifício para as Ciências Históricas há apenas um mês. Durante a última década, trabalhou como delegado no Conselho Pontifício para a Cultura — organismo que foi extinto no ano passado quando entrou em vigor a nova constituição apostólica do Papa Francisco, que introduziu profundas reformas na organização da cúpula da Santa Sé, incluindo a aglutinação das áreas da Educação e da Cultura num único organismo, liderado pelo também português D. José Tolentino Mendonça.
Com a extinção do Conselho Pontifício para a Cultura, D. Carlos Azevedo não transitou para o novo organismo que une Cultura e Educação, mas foi transferido para o Comité Pontifício para as Ciências Históricas, um organismo cujas origens remontam ao final do século XIX e à ação do Papa Leão XIII, que também foi o Papa responsável pela abertura do Arquivo Secreto do Vaticano aos estudiosos. “Como, desde há muitos anos, trabalho na história e nas ciências históricas, acharam que a melhor colocação seria esta”, diz o bispo, quando recebeu o Observador no seu gabinete ainda incompleto, na manhã desta quarta-feira, o último dia do velório de Bento XVI, para falar sobre as suas memórias do Papa emérito.
Ouça aqui a entrevista a D. Carlos Azevedo em podcast.
“Recordo-me dele ainda como cardeal Ratzinger, quando estive ao serviço da mesa da presidência do Sínodo e ele era o relator desse sínodo”, conta D. Carlos Azevedo. Era o ano de 1980 e o Papa João Paulo II, eleito apenas dois anos antes, tinha convocado uma assembleia do Sínodo dos Bispos para debater a “família cristã”. Na altura, o jovem padre Carlos Azevedo, de 27 anos, estava em Roma a concluir o doutoramento em História da Igreja quando lhe foi pedido que ajudasse nas sessões do Sínodo. “Às vezes era preciso qualquer coisa, papel, isto ou aquilo. Estávamos ali ao serviço da mesa da presidência”, conta o bispo, que diz guardar as fotografias em que é possível ver o então cardeal Ratzinger, à altura arcebispo de Munique, “já com o cabelinho branco, mas com uma clarividência de linguagem, de conceitos escorreitos. Lia-se ali o correr do pensamento do seu discurso, de uma forma maravilhosa.”
Na altura, já via nele um potencial futuro Papa?
Era uma pessoa com uma qualidade intelectual rara, com esta capacidade de um grande amor à Igreja, que depois o levou a uma possibilidade de vir a ser Papa. Quando foi o acompanhamento, sobretudo dos anos finais, do Papa João Paulo II, em que praticamente era o cardeal [Angelo] Sodano, ele e o secretário que, todos os dias, reuniam e ajudavam nas decisões que era preciso tomar — quando o Papa, nos últimos meses, sobretudo, já não estava capaz —, isso não só lhe deu a dimensão da universalidade da Igreja, que ele já tinha fruto do cargo na [Congregação para a] Doutrina da Fé, mas ali de modo mais amplo, mais global, como depois, na sua homilia célebre aos cardeais, como decano do Sacro Colégio. Aí, viram que havia uma abertura para perceber o que era preciso para a Igreja naquele momento: e daí, depois, a sua eleição.
Acha que esses anos ao lado de João Paulo II, particularmente esses últimos anos em que João Paulo II já estava muito fragilizado, com poucas capacidades, foram essenciais para se perceber o potencial que Bento XVI viria a ter como Papa?
Penso que certamente deram uma mais-valia às suas capacidades intelectuais, juntando essa dimensão da consciência dos problemas gerais da Igreja. Aliás, aquela Via Sacra famosa, as referências aos problemas que a Igreja atravessava e a necessidade de purificação que tinha, tudo isso pesou. E também pesou na sua renúncia. Porque ele viu o que é que era o fim de um homem debilitado, porque o Papa não é só uma figura simbólica. É também um homem de governo. E, quando já não pode, alguém decide na vez dele. Esperemos que o Espírito Santo continue a iluminar as decisões de quem está a fazer as vezes do Papa.
Nos últimos tempos, nos livros de memórias e entrevistas, ele disse que uma das coisas que na renúncia dele tinham ficado mais claras foi a humanidade do Papa. Que o Papa é também um ser humano. Concorda?
Isso é uma marca que ele deixa, um dos maiores legados. Não é a dessacralização, como alguns vieram dizer, porque nenhuma pessoa é sacralizada pelo facto da ordenação de presbítero, de bispo ou até do pontificado. Mas é uma pessoa que está ao serviço e que carrega todas as potencialidades e também fracassos e deficiências. Não foi por acaso que o Concílio determinou que aos 75 anos os bispos devem pôr o lugar à disposição. Porque hoje, já com todos os cuidados médicos, talvez se pudesse dizer mais, mas alguns aos 75 devem deixar. Outros são prolongados porque ainda estão capazes e podem servir a Igreja noutros cargos, noutras missões. Mas, de facto, o debilitar das forças é uma inevitabilidade da condição humana — e reconhecer isso é um serviço à Igreja.
Aliás, esse sinal também já é dado nos cardeais, que deixam de poder votar aos 80 anos.
Sim, tudo isso são sinais dessa fragilidade, que alguns podem manter até mais tarde, mas outros, de facto, com uma data limite, são impelidos… Dizia-me uma vez o senhor D. Manuel Martins que pediu [a renúncia] aos 70 “porque aos 75 já posso pensar que sou imprescindível, aos 70 ainda tenho cabeça para ver que é melhor sair e dar lugar a outro”.
Bento XVI em Portugal: um palco de 300 mil euros, a cesta de ovos e as reuniões de segurança
3 de novembro de 2009. D. Carlos Azevedo, há quatro anos nas funções de bispo auxiliar de Lisboa, tinha acabado de falar numa conferência aos padres de Viana do Castelo, naquela cidade do Alto Minho, quando, no regresso a Lisboa, foi chamado à Nunciatura Apostólica, a embaixada da Santa Sé em Portugal, para uma reunião. Lá, encontrou o cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, o então bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, o núncio apostólico, D. Rino Passigato, e ainda um representante do Vaticano.
Em 2010, Bento XVI visitou Lisboa, Fátima e Porto. Recorde aqui a viagem a Portugal
A visita de Bento XVI a Portugal, em maio de 2010, já estava no horizonte da Igreja em Portugal — e D. Carlos Azevedo até já tinha sido nomeado por D. José Policarpo para coordenar o programa das pouco mais de 24 horas que o Papa alemão iria passar na cidade de Lisboa. Mas a tarefa que iria receber naquela reunião ia além disso: “Disseram que é preciso, é tradição, que haja um coordenador nacional. Eu deitei os olhos ao tapete a ver se não me caía, mas caiu-me.”
As viagens do Papa são habitualmente organizadas num esforço conjunto entre o Vaticano e a hierarquia eclesiástica do país visitado. No caso da viagem de Bento XVI a Portugal, entre os dias 11 e 14 de maio de 2010, era necessário escolher uma figura da Igreja portuguesa para ficar à frente dos trabalhos. Nessas funções, D. Carlos Azevedo teve de se multiplicar em reuniões no Ministério dos Negócios Estrangeiros, “com o chefe do protocolo, que na altura era o [José de] Bouza Serrano, com a segurança, seja do Vaticano seja a segurança portuguesa, com a Presidência da República, com o Governo e as entidades, com as autarquias onde o Papa vai, com as dioceses”.
Também foi preciso tratar da comunicação, sobretudo tendo em conta que se tratava de um Papa que, ao contrário do seu antecessor, João Paulo II, cativava menos as grandes multidões. Nas semanas antes da visita, D. Carlos Azevedo reuniu-se todos os dias, pelas 9h15, com os responsáveis da comunicação, para pensar no que dizer sobre o Papa. “Víamos o que é que se tinha dito no dia anterior e o que é que nós devíamos ir lançando de notícias para ir alimentando o interesse pela visita do Papa”, lembra D. Carlos Azevedo, mais de uma década depois da viagem.
Entre as principais missões do coordenador da viagem do Papa contava-se, no caso concreto da cidade de Lisboa, a angariação de fundos para a montagem do enorme palco no Terreiro do Paço onde Bento XVI celebrou a missa — e que foi orçamentado em 300 mil euros. “Dissemos que, se arranjarmos dez pessoas que dêem 30 mil, resolvemos isso, com amigos, que sabemos que são generosos”, recorda o bispo. “Com um deles, estava difícil encontrar um momento para nos encontrarmos e eu tinha Assembleia Plenária [da Conferência Episcopal] em Fátima, mas dispus-me a vir de Fátima a Lisboa para poder ter esse encontro, para ver se arranjava um dos principais colaboradores. Um homem do grande poder económico, da empresa que tinha. E ele disse-me: ‘Não, senhor D. Carlos, não sei se sabe, mas a distância de Fátima a Lisboa e de Lisboa a Fátima é a mesma. Eu vou a Fátima.’ E foi — e em 10 minutos resolveu-se e disse que colaborava. Portanto, até isso, e a uma senhora que uns dias antes foi levar uma cestinha de ovos à Casa Carmo, para cozinharem para o Papa. Portanto, desde coisas muito simples, a ligação afetiva que se foi criando foi fantástica.”
Além da logística, D. Carlos Azevedo teve também de escrever um conjunto de sugestões para os discursos do Papa em Portugal. Eram, essencialmente, “tópicos daquilo que era interessante que o Papa dissesse” no país, que Bento XVI aproveitou em larga medida. “Por acaso, guardei esses papéis para o meu arquivo. Lembro-me muito bem do discurso da despedida. Achei muito curioso, no aeroporto do Porto, quando ele se despediu, porque foi tal e qual o que tínhamos preparado. Até disse para o D. Manuel Clemente, que estava ao meu lado: ‘Tal e qual.’ Portanto, prever o que é que o Papa diria na despedida de Portugal, era preciso um bocadinho de imaginação, mas foi a preparação, toda a preparação.”
Houve um encontro com os agentes culturais no CCB e depois também em Fátima um encontro com a pastoral social. Escolher esses temas e esse itinerário foi da vossa responsabilidade ou o Vaticano já tinha essa intenção de realizar esse tipo de encontros paralelos?
Foi proposta conjugada, porque tivemos várias reuniões. O Dr. Alberto Gasbarri era o encarregado geral da dimensão de toda a visita — ia eu e ele no carro da frente, sempre nos circuitos que o Papa fazia, para tomar qualquer decisão que fosse preciso de momento, mas tudo correu sem percalços, porque foi extraordinário o profissionalismo da segurança, toda a gente que colaborou foi excecional. Por isso, conseguiu-se fazer uma visita muito harmoniosa e serena. Mas, para essa organização, nós sugerimos que houvesse determinados encontros. Eu gostava até que o encontro não fosse no Centro Cultural de Belém, mas fosse em Mafra. O Papa gostava muito de música e os seis órgãos estavam a ser restaurados — e, por acaso, foram inaugurados no dia 15 de maio. Mas depois o senhor patriarca disse que era um bocado longe para a deslocação. Pela autoestrada, chegava-se lá num quarto de hora, 20 minutos, com polícia à frente, mas acharam melhor que fosse o Centro Cultural de Belém. Claro que foi uma aventura. O Patriarcado de Lisboa é que organizou esse encontro da cultura. Aquilo tinha X lugares e queríamos que estivessem todos cheios, de maneira que mandámos o convite e mandámos uma data de resposta limite — e tínhamos ainda uma outra série de nomes, segunda versão, para mandar se houvesse lugares vagos. Para que estivessem representados, não só gente da cultura católica, mas também das outras confissões religiosas, de outras sensibilidades, e a gente mais significativa. Na altura, também pedi ao Dr. Tolentino para dar sugestões de nomes e de pessoas. Andámos os dois a ver se estava coberto, um pouco, o leque da cultura. Não ser só de Lisboa, ser de todo o país — toda essa gestão de nomes, que foi um trabalhão que tivemos.
E fazia sentido, tendo em conta o perfil mais académico do Papa. Acha que foi um encontro bem sucedido?
Foi muito bem sucedido. E a reação das pessoas, mesmo de outras sensibilidades, foi espetacular. Teve um cunho não só ecuménico, mas também inter-religioso, e com uma adesão e um gosto — encontrava as pessoas ainda alguns anos a seguir e lembravam-se daquele encontro. Acho que foi um encontro marcante. A escolha do Manoel de Oliveira também foi [para] escolher alguém que estivesse um pouco acima — sabemos que há muitas invejas académicas. Foi uma boa escolha.
Teve de coordenar também a questão da segurança, dos protocolos. Como é que funciona o protocolo em torno de uma viagem de um Papa? Vai uma comitiva muito grande, as exigências de segurança são muito grandes?
A comitiva do Papa não era grande. Não me lembro já de quantas pessoas eram, mas não era grande. E essas pessoas vão sempre. Têm de ir nos helicópteros quando há deslocação de um lugar para o outro, ou de carro, em Lisboa, nos vários lugares.
E essas pessoas quem são? A segurança privada, os secretários?
O Papa leva alguns cardeais, o secretário de Estado, depois ele escolhe alguém do país que trabalhe aqui para ir com ele — penso que foi o cardeal Saraiva Martins na altura —, mas [a comitiva] não é grande. Depois, vão os seguranças propriamente ditos, seja dos Gendarmes, seja da Guarda Suíça, que não vão vestidos conforme estão aqui, mas todos de fato e gravata, e que acompanham, esses aí sempre ao lado do carro quando ele se desloca e nos vários lugares. Fazem uma grande harmonia entre a polícia de segurança de Portugal e os que vão do Vaticano, têm todas as regras, tudo previsto. É curioso, por exemplo, até a questão dos microfones: eles dizem qual é que deve ser a graduação, porque o Papa tem a voz muito débil, a intensidade do microfone. É tudo programado com as minudências, está tudo avisado desde os mínimos detalhes. A experiência enorme que o Vaticano tem das visitas e, depois, o profissionalismo das reuniões, muitas, que tivemos no Ministério dos Negócios Estrangeiros para ultimar as pequenas coisas.
Imagino a quantidade de reuniões com a polícia. Qual era o ambiente dessas reuniões, o que é que se debatia?
Nós tentávamos o mais possível que, nos sítios onde passasse o Papa, a questão de ter gente, a hora a que era… Lembro-me de me terem caído as lágrimas — eu sou fácil, sou choramingas — quando o carro saiu do aeroporto de Lisboa e depois tinha muita gente na rua. Eu sugeri que ele não fosse a grande velocidade para a Nunciatura, mas fosse devagar, porque ia ter gente e essa minha insistência foi bem sucedida. Comovi-me ao ver as escolas e colégios católicos, vieram pessoas, que estavam ali a saudar o Papa logo desde que ele chegou, da saída do aeroporto.
E essas reuniões, sempre com representantes da Guarda Suíça e o Vaticano?
As reuniões com os representantes daqui são poucas, mas essas são determinantes — e depois tenta-se aplicar aquilo que foi dito aqui. Quando o Papa chega, a que horas chega, ao minuto, tudo é previsto. O carro anda mais devagar, ou anda mais depressa. Às vezes o Gasbarri mandava a polícia que ia à frente ir mais depressa para chegar à hora. Tudo isso é ali acompanhado para que tudo decorra com a ordem prevista.
Em Portugal, Bento XVI voltou a sorrir
Quando o Papa Bento XVI aterrou em Portugal, em maio de 2010, já a sua imagem enquanto académico frio e distante, por contraste com João Paulo II, se tinha consolidado numa grande quantidade de católicos. Mas 2010 também era um momento especialmente complexo para a Igreja Católica: os escândalos de abusos sexuais de menores que tinham vindo a público na Irlanda em 2009 e 2010 tinham manchado uma instituição que há vários anos se vinha debatendo com episódios daquela crise. A situação na Irlanda foi de tal ordem que Bento XVI se viu obrigado a escrever uma duríssima carta sobre os abusos, ainda hoje muito citada quando se escreve a história desta crise.
Cientes de que Bento XVI tinha uma imagem pública pouco simpática, os organizadores da viagem decidiram que a comunicação seria uma prioridade. “Nós tentámos, no grupo de comunicação, nos encontros que fizemos com bloguistas, fizemos um encontro em Fátima de formação de jornalistas, para dar-lhes a imagem global do Papa, porque sabíamos que havia que dar um verdadeiro rosto do Papa — porque havia muita má informação sobre a figura que ele tinha, sobre a sua dimensão”, recorda D. Carlos Azevedo. Mas Bento XVI foi “uma revelação”.
“O afeto que ele manifestou e o afeto do povo por onde ele passou foi, todos hoje consideram, uma lufada de esperança que trouxe a Portugal”, lembra o bispo: “O carinho que a população manifestou fez com que o Papa também começasse a reagir. Ele ia com um semblante um pouco pesado, fruto de tudo aquilo que era um momento difícil aqui em Roma, acabou por tornar-se em sorriso. Os próprios colaboradores diziam: ‘Já não víamos o Papa assim tão bem disposto e a sorrir há muito tempo.'”
A surpreendente boa disposição do Papa Bento XVI em Portugal revelou-se, por exemplo, no caminho para o CCB, onde se ia reunir com o mundo da cultura. “A chegada ao Centro Cultural de Belém demorou um bocado, o Papa não chegava, porque mandou parar o carro para saudar uma criança. Aí vemos que houve aqui uma conjugação de acolhimento do povo com uma ternura e uma proximidade do Papa”, lembra D. Carlos Azevedo. Mas foi em Fátima, no momento em que Bento XVI colocou a rosa de ouro junto da imagem de Nossa Senhora, que foi possível ver a “grande ternura” do Papa. “Aquele momento dele a olhar para a Senhora de Fátima, entregar a rosa de ouro, mas depois ficar ali de mãos postas, é de uma ternura filial fantástica”, recorda.
“O Papa prestou um serviço à inteligência da fé como já não víamos há muito”
Até meio da tarde desta quarta-feira, cerca de 160 mil pessoas já tinham passado pela Basílica de São Pedro para a última homenagem ao Papa emérito Bento XVI, cujo corpo está em câmara ardente no altar da basílica desde segunda-feira. Em frente, na Praça de São Pedro e na longa avenida que ali vai desembocar, há uma agitação adicional em relação a um dia normal no Vaticano: filas orientadas por vedações, controlos de segurança acrescidos e muitos peregrinos e turistas de semblante carregado.
Mas há um outro lugar da cidade de Roma onde a morte de Bento XVI se faz sentir com ainda mais eloquência: as montras das livrarias. Em várias livrarias por onde o Observador passou, é possível encontrar em grande destaque dezenas de obras de e sobre Joseph Ratzinger, um dos maiores teólogos e pensadores do século XX. A partir do seu gabinete no coração da Igreja Católica, a poucos metros das filas de peregrinos, o bispo D. Carlos Azevedo, ele também um homem da Igreja que dedicou grande parte da vida à academia, salienta o papel fundamental de Bento XVI na conciliação da fé e da razão.
Quando vinha para aqui, para vir ter consigo, passei por uma livraria e reparei que na montra da livraria todos os livros eram de Ratzinger/Bento XVI. Imagino que, além do pico de atenção que há agora por estes dias, também possamos especular que a obra literária que ele deixa seja um dos seus principais legados enquanto pensador e teólogo. Tendo em conta tudo o que foi a vida de Bento XVI, parece-lhe que o Vaticano é também um lugar para os intelectuais?
O Papa prestou um serviço à inteligência da fé como já não víamos há muito. É fundamental que a Igreja seja capaz de dizer que a fé e a razão não são inimigos. O Papa extravasou todas as expectativas de uma capacidade de raciocinar iluminada pela palavra de Deus, para responder às questões complexas da cultura contemporânea. E ele encontrou uma linguagem acessível e, ao mesmo tempo, sem descontos. Não foi no pronto-a-pensar da moda, mas transmitiu com acessibilidade o mistério de Deus e o mistério da fé. Seja em momentos difíceis por que passou, seja evocando a história — como, por exemplo, em Auschwitz, em 2006, quando ele lá foi e disse “grito a Deus para que isto nunca volte a acontecer”. É um homem que sente o peso de toda uma história que a Igreja atravessou, mas também, olhando para o futuro, será um profeta que continuará a ser lido. Os seus escritos são um legado fundamental para quem quer ter acesso à fé. A sua trilogia sobre Jesus sabemos que será um clássico durante muito tempo — e alguns não-crentes aderiram à fé ao ler esse livro. Lembro-me de um português, famoso, que era não-crente e que chegou a pedir-me para vir visitar o Papa. Eu falei com o [Georg] Gänswein, e estava mais ou menos, mas depois ele começou a adoecer, com um cancro, e o médico já não o deixou vir a Roma.
Perfil. Bento XVI, o teólogo rebelde que transformou a Igreja
Apesar de tudo, foi talvez esse carácter de académico, intelectual, professor, que contribuiu para aquela ideia de uma pessoa mais distante. Ele conta que foi pároco de uma paróquia durante muito pouco tempo na vida dele. A minha pergunta é se isso se reflete no modo de ser Papa — e se o Vaticano, a Santa Sé, é um lugar para os académicos. Qual o lugar que os académicos podem ter nestas funções, que depois têm muito de pastoral.
Ele demonstrou que a pastoral não é o imediatismo dos abraços. Que a pastoral é o serviço da inteligência — e que isso também é pastoral. Ser pastor não é meramente o afeto e a proximidade, mas é a riqueza de conteúdo daquilo que se transmite, que é capaz de falar a todos. E isso penso que é uma mensagem que é fundamental que permaneça. O Papa João Paulo II também o fez, ao seu modo. Não era nitidamente um académico, mas era um homem com grande capacidade intelectual, e portanto a sua mensagem foi também muito atenta a essa vertente. E é fundamental que ela exista, porque nós somos também razão — e o diálogo entre a ciência e a fé, entre a religião e a política, faz-se também com inteligência e com uma mensagem que possa ter em conta as ciências naturais, as ciências humanas. Porque, senão, nós não conseguimos corresponder a uma grande faixa que hoje tem grande formação humana e intelectual — e são ouvintes, e podem ser até aderentes, do Cristianismo.
E que procura perceber o lugar da fé nesse mundo?
Exatamente. E transformar o Cristianismo em algo de fascinante para a cultura contemporânea foi um grande papel do Papa Bento XVI.
E essa lucidez intelectual também pode ter contribuído para a decisão que ele tomou em 2013 de renunciar?
Eu disse que foi a coerência. Na altura, foi o meu comentário. Ele, no fundo, com este gesto, manifestou a coerência da sua lucidez e do seu serviço à Igreja, desprendido de si próprio. E isso é uma coragem fantástica.