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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Na semana que passou, registaram-se dois eventos importantes na área do Euro. Na quinta-feira, Mario Draghi confirmou que o Banco Central Europeu (BCE) irá terminar, já em Janeiro, o programa de compra de dívida soberana. E, na sexta-feira, os líderes de governo dos países do Euro deram o seu apoio a um “reforço” do funcionamento da Zona Euro. De certa forma, as várias instituições tentam passar a mensagem de que, agora que a fase de emergência ficou para trás, a moeda única está preparada para evitar uma nova crise. Será mesmo assim? Os dados mostram que subsistem motivos para preocupação.
O BCE deu tempo aos governos
Ao longo dos últimos dois anos, os líderes europeus têm vindo a prometer uma grande reforma da Zona Euro. Depois da crise e de várias cimeiras e reuniões de urgência do Eurogrupo pela noite fora, estavam reunidas as condições para que se decidisse com calma e se conseguissem finalmente criar as condições para evitar uma crise futura. Ou seja, a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), os vários resgates e principalmente o programa de compra de activos do BCE deram tempo aos governos para poderem decidir sem pressão.
Ao contrário dos outros bancos centrais, o BCE demorou bastante tempo até expandir o seu balanço de forma expressiva. Mas, quando o fez, acabou por até ultrapassar a expansão da FED americana e até do Banco do Japão (Gráfico 1). Em Janeiro, termina o programa. Ainda assim, não abandona o mercado de dívida publica, já que o BCE irá continuar a reinvestir à medida que as obrigações que detém forem atingindo a maturidade. Desta forma, o BCE irá continuar com o maior balanço dos grandes bancos centrais durante o “tempo necessário”, como tem prometido Draghi. Por outras palavras, a política monetária fez a sua parte, e as yields das obrigações soberanas desceram, devendo os governos cumprir com a sua.
Uma reforma adiada pelo calendário eleitoral
Como sempre, o calendário das grandes decisões foi sendo condicionado pelas eleições nos vários Estados-membros. Primeiro, foram as eleições em França e na Holanda que, apesar do aumento do peso eleitoral da extrema-direita e dos populismos eurocéticos em ambos os países, acabaram por resultar em governos “pró-europeus”. Depois foram as eleições na Alemanha, onde a extrema-direita ganhou terreno e, ainda que mais uma vez o governo seja apoiado por uma grande coligação entre CDU e SPD, as negociações pós-eleitorais arrastaram-se por largos meses – durante esse período, o debate europeu ficou suspenso. Chegados a 2018, Alemanha e França acordaram um pacote ambicioso, que incluía um orçamento da Zona Euro, a criação de um mecanismo de estabilização macroeconómica e a conclusão da união bancaria.
No entanto, a par destes sinais positivos, surgiram duas más notícias, que adiaram novamente a tomada de decisão. Primeiro, a formação de um novo “clube” entre os países do Euro, a liga hanseática, que reúne um grupo de pequenos e médios países do centro e norte da Europa “liderados” pela Holanda, e que se opõe a um aumento da partilha de risco entre os Estados sem um aumento do controlo comum das finanças públicas dos Estados-membros. Segundo, as eleições em Itália, que resultaram num governo eurocéptico que junta dois partidos que, sendo ideologicamente opostos, partilham uma mesma postura anti-europeia.
Desta forma, e depois de uma cimeira em Junho de 2018 que protelou os principais anúncios para o final deste ano, surgiram nestas últimas semanas as grandes decisões que definirão o futuro da Zona Euro. No dia 3 de Dezembro, os ministros das Finanças da Zona Euro apresentaram a aguardada reforma da Zona Euro. E, no dia 14, os chefes de governo dos países da moeda única aprovaram as medidas que, segundo os discursos oficiais, irão sem grandes dúvidas fortalecer a Zona Euro e cumprir dois objectivos: (1) evitar uma nova crise existencial do Euro na próxima recessão; (2) contribuir para que o Euro se assuma cada vez mais como uma alternativa ao dólar no sistema monetário internacional.
Infelizmente, ainda que as medidas sejam teoricamente positivas, ficam na prática bastante aquém do necessário para cumprir qualquer um dos objetivos. Para além disso, neste acordo fica plasmado que se mantêm os grandes desacordos sobre uma maior partilha, quer dos riscos orçamentais quer dos riscos relacionados com o sector financeiro. Assim, à “boa maneira” europeia, praticamente todos podem reclamar vitória, já que no papel houve algum progresso mas, nas medidas consideradas mais polémicas, esse progresso foi apenas teórico – os detalhes não existem ou ficaram para ser definidos futuramente.
O bom e o mau numa reforma necessária
Em Junho, já se havia assinalado a necessidade de fazer uma verdadeira reforma da Zona Euro e sugerido uma lista de medidas a tomar: (1) completar a união bancária e definir um calendário que defina os passos para um fundo de garantia de depósitos comum; (2) alargar a intervenção do MEE, não só com o financiamento do fundo de resolução, mas também com a criação de uma linha cautelar mais alargada e com uma maturidade mais longa; (3) dar os primeiros passos para um orçamento ou um mecanismo de apoio económico comuns, com um calendário e âmbito claramente definidos. Quando se compara estas medidas com as conclusões da recente cimeira, sobressai que houve progressos nos três campos, mas ainda assim aquém do desejável e necessário.
Sobre a União Bancária, uma confirmação positiva e uma desilusão. Na parte positiva, o MEE torna-se o financiador (de último recurso) dos fundos de resolução. Esta medida já era dada como certa e não é mais do que reconhecer o erro cometido em 2013, quando ficou excluído desta função devido à desconfiança dos países do Norte quanto às potenciais necessidades de curto prazo de alguns países do Sul – algo que ficou claro com a resolução do BES em Portugal e com várias resoluções de bancos italianos. No entanto, não é totalmente claro como é que este financiamento será enquadrado. Ou seja, não é evidente quem é que fica devedor do MEE caso algum país tenha de recorrer a este recurso – o mais provável é que seja o Estado-membro a pedir o apoio e a assumir a responsabilidade, não sendo assim muito diferente dos empréstimos já disponíveis (como foi o caso do empréstimo a Espanha em 2013).
A desilusão é que foi empurrada com a barriga a criação de um fundo de garantia de depósitos europeu, algo imprescindível para que se crie uma verdadeira união bancária com risco partilhado. É certo que esse fundo é mencionado nas conclusões do Eurogrupo e da cimeira, mas também é referida a necessidade de continuar a melhorar a qualidade do balanço dos bancos, reduzindo os “ativos tóxicos” dos balanços dos bancos. Por outras palavras, só quando o nível de crédito em incumprimento e a qualidade geral dos ativos dos bancos da Zona Euro for semelhante é que se poderá começar a falar de um fundo de garantia de depósitos comum.
Sobre a reforma do MEE, há uma boa e uma má notícia. A notícia boa é que haverá linhas cautelares mais flexíveis. Nos comunicados refere-se que o MEE irá garantir um acesso mais imediato às linhas cautelares. Sendo que no caso das linhas disponíveis para países que cumprem o pacto de estabilidade, como é o caso de Portugal, esse acesso seria mais imediato. O diretor do MEE até referiu que irá ser estudado algo equivalente às linhas do FMI disponíveis para muitas economias emergentes e até para a Polónia durante a crise. No entanto, não há referência à alteração das maturidades das linhas atuais (apenas 6 meses) ou se de facto um país que cumpra o pacto de estabilidade e sofra um choque externo pode ter acesso imediato a esta proteção. É que, caso não haja um alargamento da maturidade destes instrumentos, esta será apenas meia boa notícia.
A má noticia, ainda que simbólica, é a (não) criação do Fundo Monetário Europeu. Durante os últimos anos, foi crescendo a intenção de transformar o MEE num Fundo Monetário Europeu. Esta mudança passaria por acrescentar ao MEE não só o financiamento dos fundos de resolução e alterar os seus instrumentos, mas também permitir uma intervenção mais rápida e alargar o seu papel na monitorização preventiva dos Estados-membros (algo que agradava a alguns países como a Alemanha, que tradicionalmente desconfia da imparcialidade da Comissão Europeia). Ou seja, o Fundo Monetário Europeu poderia alertar e intervir de um modo mais proativo do que nos moldes atuais, em que só o faz em caso de última necessidade e com o acordo de todos os Estados-membros.
Esta ideia parece ter desaparecido do debate e não há qualquer referência a esta mudança do MEE. Não é surpreendente, pois eram conhecidas as resistências de outras instituições. Desde logo do BCE, que tem o monopólio da palavra “monetário” na Zona Euro. Mas também da Comissão Europeia, que não quer abdicar do papel de monitorização orçamental e macroeconómica dos países do Euro ao abrigo do tratado orçamental e do pacto de estabilidade. Por último, esta alteração não era também bem vista por alguns países: a França, Itália e Espanha sempre foram a favor desta alteração, mas sem grande perda de poderes da Comissão Europeia, ao passo que a Alemanha e Holanda sempre preferiram começar por discutir a redução do papel da Comissão na monitorização orçamental.
Do que se lê nos documentos oficiais, o MEE estará mais envolvido na monitorização económica e orçamental mas, no caso de países que não tenham recorrido a programas de assistência, este envolvimento apenas será feito nos casos em que as autoridades e a comissão considerem relevante. Ou seja, no papel será possível, mas na pratica será improvável.
Sobre o mecanismo de estabilização macroeconómica, fica a maior desilusão. Existe, de facto, a intenção de criar um orçamento exclusivo para os Estados-membros do Euro – algo impensável há alguns anos. No entanto, isso será incluído no orçamento comunitário e terá o mesmo tipo de regras. Ou seja, não será um instrumento ou mecanismo próprio dos países da moeda única, com capacidade para acomodar choques económicos (em linha com o acordado entre França e Alemanha).
Este ponto é uma desilusão por dois motivos. Primeiro, é uma oportunidade perdida para completar verdadeiramente a união orçamental, criando um instrumento comum que pode ser utilizado numa recessão sem ser ligado a um resgate com condicionalidade e com fundos controlados pelos credores – e, por isso, só usado em último recurso. Segundo, demonstra que afinal a “liga hanseática” consegue ser uma força de bloqueio. É que existia um consenso entre as várias instituições (Comissão Europeia, MEE, FMI e até BCE) quanto às vantagens de construir algo deste género. E estas instituições até apontaram caminhos e deram exemplos de como o fazer. Não ter acontecido é algo com significado político.
Conclusão? Grandes falhas estruturais mantêm-se
É verdade que, tal como diz o Presidente do Eurogrupo, pela primeira vez, os países do Euro dão alguns passos em frente e quebram alguns tabus, desta vez sem ser numa altura de crise. Ainda assim, os resultados ficam muito aquém do necessário e foi preciso (novamente) uma maratona negocial para atingir este desfecho. Agora, mesmo depois do acordo entre os chefes de governo, falta ainda fazer parte importante do trabalho. A alteração do tratado do MEE será apresentada em Junho do próximo ano (depois das eleições europeias) e tem de ser aprovada por todos os Estados-membros, algo que pode ser complicado tendo em conta a grande instabilidade política que graça por toda a Europa.
O contexto de 2019 não será o mais favorável para estes avanços. Os sinais negativos já se começaram a manifestar. Com Angela Merkel de saída e a Alemanha a preparar a sua sucessão num ambiente cada vez mais eurocéptico, com a França a tentar garantir alguma estabilidade política a troco (mais uma vez) de um incumprimento das regras europeias, com a Itália a tentar quebrar as regras (ainda que moderando a sua posição), com a Espanha também a dar todos os sinais de instabilidade. É difícil esperar grandes surpresas positivas no próximo ano. Até as medidas agora decididas dificilmente serão completamente implementadas, principalmente tudo o que implicar alterações de tratados, já que abrirão a porta a outras discussões que todos querem evitar.
O balanço é agridoce. A Zona Euro está sem dúvida em melhor posição face à que estava em 2010, mas os desafios futuros são também maiores. Existem agora instituições que garantem apoio em caso de crise e há também um banco central mais proactivo e sem reticências em intervir no mercado. No entanto, as grandes falhas estruturais mantêm-se e poderão abalar as economias europeias. Quando surgir a próxima crise (porque é inevitável que eventualmente surja), os níveis de dívida pública serão bastante superiores ao que eram em 2010 e, principalmente, o ambiente político e de apoio a um aprofundamento da construção europeia ficou menor. Por tudo isto, é razoável concluir que a Zona Euro está mais preparada, mas ainda assim corre o sério risco de passar por novas crises existenciais já na próxima recessão.