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© Hugo Amaral/Observador

© Hugo Amaral/Observador

Afinal, somos mesmo todos Charlie?

Como seria se o Charlie Hebdo fosse um jornal português? Há espaço em Portugal para abordagens mais ousadas? O humor português é disciplinado e "mariquinhas", acredita quem o faz.

Às 11h30 da manhã de quarta-feira, 7 de janeiro, dois homens entravam na redação do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, França, e assassinavam a tiros de metralhadora dez membros da publicação, entre eles alguns dos mais destacados cartoonistas franceses. Menos de uma hora depois já ecoava pelo mundo a mensagem “Je Suis Charlie”, criada por um jornalista da revista parisiense Stylist.

O tweet onde surgiu, pela primeira vez, a mensagem e o design do “Je suis Charlie”

O choque do ataque fez com que a imagem rapidamente se tornasse viral. Sucederam-se fotografias de dirigentes e jornalistas. Sucederam-se artigos de opinião. Parecia, de facto, que éramos todos Charlie. Mas as dúvidas sobre a certeza da afirmação começaram a surgir logo no dia do ataque ao jornal. Em Portugal, o toque de partida foi dado por Rui Sinel de Cordes.

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Dono de um humor negro e cáustico que até já levou a Entidade Reguladora para a Comunicação Social a aconselhar a SIC Radical a não emitir episódios do programa que apresentava, Sinel de Cordes usou o Facebook para denunciar a atitude de muitos humoristas e produtores, agora defensores do Charlie, que “censuram estilos e temáticas” e se regem pelos interesses do “público acéfalo”.

 

“A solidariedade é sempre bem-vinda, compreensível e admirável”, explica o humorista ao Observador. Só que, diz, esse sentimento não pode servir de chapéu para tudo. “O que me revoltou na semana passada foi a falsa solidariedade de alguns agentes culturais em Portugal – os mesmos que há anos são a cara da censura”. Os tais que consideram o humor de Sinel de Cordes demasiado negro e ofensivo para ser lucrativo.

Como quase tudo na cultura e na vida, a criação de humor em Portugal está muito sujeita a condicionalismos económicos. Por um lado, os humoristas autocensuram-se: “as pessoas têm de pagar contas ao fim do mês e quando habituam um patrão ou um público a um determinado registo, é natural existir receio de partir algum prato”, comenta Sinel de Cordes. Por outro, os responsáveis por conteúdos apenas querem apostar em cavalos que saibam vencedores.

Rui Zink, um guru do humor português, tem exemplos disso para contar. Há uns anos, tentou publicar um livro com cartoons de José Vilhena do período de 1974 e 1975, mas “não havia um editor interessado naquilo [e o projeto] ficou em águas de bacalhau”. Mas não é preciso ir tão longe: Zink queixa-se de que não há quem receba muitos dos trabalhos que faz. “Não havia espaço para onde enviar aquilo”, diz acerca de um texto que escreveu recentemente. “Acabei por concluir que valia mais publicar o texto no Facebook. O que me chateia é ver que ninguém está disposto a pagar uma quantia para que eu escreva, desenhe ou seja o que for”. Isso e o facto de não haver hoje em Portugal praticamente nenhum jornal satírico ou revista de humor.

"Uma boa piada vale mais do que a cautela. Se eles não aguentam uma boa piada, que se fodam"
Rui Zink

Vilhena, o pai disto tudo

Apesar dos cartoons provocadores e do humor sem tabus e fronteiras, “o Charlie parecia uma canção das Doce comparado com o Hara-Kiri”, o irmão mais velho do semanário francês atacado na semana passada. O comentário é do mesmo Rui Zink, que no nosso país só encontra “meia dúzia de coisas” assemelhadas ao Charlie Hebdo: algumas capas da revista K; a revista Pornex; algumas intervenções de Alberto Pimenta; a revista humorística Inimigo (não confundir com o Inimigo Público) e o trabalho de José Vilhena. “O resto é sempre muito domesticado”.

Vilhena é considerado uma lenda no meio humorístico pelos milhares de cartoons que desenhou e pelos incontáveis livros que publicou, mas sobretudo pelo estilo que trouxe ao desenho português. Logo em 1974, num país ainda pouco habituado à liberdade, José Vilhena editou a revista Gaiola Aberta, com muitos cartoons políticos e eróticos que viriam a tornar-se imagem de marca.

“Com um traço inimitável, novas tonalidades, um sentido de humor notável, pleno de oportunidade, com uma
capacidade de risco admirável, jogando com os segundos sentidos, mais do que com os primeiros (…), o prazer do leitor depende em grande parte da partilha desse subentendido”, escreve sobre a revista Álvaro Costa de Matos, coordenador da Hemeroteca Municipal de Lisboa. As mesmas ideias haviam, aliás, já sido defendidas por Rui Zink, na tese de mestrado que dedicou a Vilhena, em 1988, e à qual Álvaro de Matos vai buscar inspiração.

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Algumas capas da Gaiola Aberta

 

“Já não tinha a polícia política a importunar-me e pude desenvolver um tipo de humor mais aberto”, explicava o desenhador em 2003 ao Correio da Manhã. “Mas ainda houve pessoas que, por viverem um bocado o espírito do Estado Novo, ficaram muito aborrecidas com determinadas piadas e processaram-me. Creio que foram sempre aquelas sem nível ou humor, que viram nisso uma oportunidade de ganhar mais dinheiro.”

Antes do 25 de abril era frequente a PIDE apreender-lhe os livros que editava e chegou mesmo a estar detido por três ocasiões. Depois da revolução, Vilhena foi inúmeras vezes à barra dos tribunais para responder pelos desenhos que fazia. Chegou a ser processado pelo principado do Mónaco e, à data da entrevista de 2003, tinha ainda contas a resolver com a Justiça. Hoje, com 87 anos, a saúde não lhe permite falar com o Observador.

"Estamos cada vez mais mariquinhas com os conteúdos"
Rui Sinel de Cordes

A necessidade e a dificuldade dos limites

O que aconteceu então ao espírito que entrava pela casa dos portugueses todas as quintas-feiras à noite, nos anos 1990, quando a recém-criada SIC exibiu A Noite da Má Língua? Ou quando a mesma SIC, uns anos mais tarde, deu espaço a Levanta-te e Ri, 0 programa que lançou diversos dos humoristas atuais? Esse espaço foi invadido por gente mais séria.

Há 20 anos, na Má Língua, não havia tabus, barreiras ou limites. Quase tudo era permitido. Era “um programa só de pessoas a falarem e a dizer disparates” que “conseguiu [cativar] pessoas de todos os quadrantes”, diz Rui Zink, que tinha assento permanente no estúdio. “Uma boa piada vale mais do que a cautela. Se eles não aguentam uma boa piada, que se fodam” era o pensamento que perpassava pelo painel de comentadores: Rui Zink, Miguel Esteves Cardoso, Manuel Serrão, Luís Coimbra e, mais tarde e em substituição deste, Rita Blanco.

“Nós não tínhamos medo das consequências e não servíamos nenhum interesse. Conseguíamos ser todos caricaturas de nós próprios”, afirma Zink. O que mudou então? É que muitos têm um defeito: “estarem sempre conscientes do que dizem”, o que tira a piada a este tipo de programas.

“Estamos cada vez mais mariquinhas com os conteúdos”, comenta, por sua vez, Rui Sinel de Cordes. Mas a opinião é unânime às pessoas ouvidas pelo Observador. Também para Augusto Cid, cartoonista, o humor feito em português está “mais contido e mais controlado”, isto porque, acredita, há uma preocupação com a subtileza que não havia na Má Língua, no Charlie ou no Levanta-te e Ri. Neste programa, por exemplo, “diziam-se piadas sobre figuras públicas que destruíram carreiras”, lembra Sinel de Cordes. ” Hoje, oiço diretores de programação afirmar que piadas do género são ataques pessoais e discursos de ódio.”

A subtileza do humor é algo que, para Cid, é fundamental. “Quando as coisas não são feitas com algum nível ou subtileza, acabam por morrer”, diz, admitindo que não era fã d’ A Noite da Má Língua. Também, aliás, não é apreciador do estilo do Charlie Hebdo. “Houve uma altura em que se julgava que era permitido tudo porque estávamos em liberdade”, comenta. Deve então haver limites ao humor? “Não faz sentido. É muito difícil definir uma linha-limite.”

No caso específico do desenho caricatural, Cid considera que “está no ADN do cartoonista ser contundente, e se vê o seu trabalho ser ameaçado, a tendência é carregar no traço”, o que contraria qualquer ideia de imposição de limites. Mas eles existem, nem que seja na cabeça dos próprios desenhadores: os jornais não querem arriscar processos e multas elevadas, por um lado; os cartoonistas não se querem ver arrastados por esse turbilhão, por outro. Resultado: contenção.

3 fotos

Os três livros apreendidos a Cid

Poucos anos depois do 25 de abril, em plena era democrática, Augusto Cid viu três dos seus livros serem apreendidos: “Eanito, el estático”, “O Superman” e “O último Tarzan”. Todos traziam na capa uma caricatura de Ramalho Eanes. “Não havia ainda preparação política para um certo tipo de humor”, justifica Cid, que diz ter sido “vítima de estar um bocadinho à frente”. Hoje, o cartoonista não acredita que lhe fosse apreendido qualquer livro, mas não esconde que está a tratar da próxima obra “com pinças”. É sobre José Sócrates.

“Há tabus neste país”, diz Cid. Exemplos? “Deus e Camarate. Os Governos não gostam, os editores não deixam passar”. Foi Camarate que lhe trouxe mais problemas. “Eu utilizei o humor e vi alguns desenhos serem processados. Há muita hipocrisia, de facto, neste país. Continuamos num país que fala muito de liberdade, mas…”

Liberdade, mas…

“Quando alguém começa: ‘eu acredito na liberdade de expressão, mas…’, eu paro de ouvir.” O escritor Salman Rushdie comentava assim, esta quinta-feira, a atitude que começou a surgir na boca de muitas pessoas, em todo o mundo, nos dias que se seguiram ao ataque ao Charlie Hebdo. O jornal não poupa ninguém: muçulmanos, católicos, fascistas, todos os grupos e credos são alvo da pena afiada. E a opinião generalizada parece ser a de que ninguém deve ser poupado.

“É o mesmo que dizer ‘Acho que não se deve bater numa mulher, mas…'”. Rui Sinel de Cordes está habituado a entrar a matar, a fazer humor ofensivo “para quem se possa ofender”, como explicava ao P3 em 2012. O espetáculo que tem neste momento na estrada chama-se “Isto era para ser com o Sassetti”, uma referência ao pianista desaparecido em 2012 que lhe valeu uma chuva de críticas no Twitter e Facebook. É algo que não o perturba e não o faz perder a crença de que os portugueses são um povo com sentido de humor. “Muito, até. Especialmente, se esse humor não nos disser respeito.”

Rui Zink irrita-se com esse ‘mas’, “o artifício retórico mais usado por 90% dos opinadores” e que disfarça, na sua perspetiva, a incapacidade de rir do próprio umbigo. “Toda a gente gosta de rir dos outros, mas o humor existe quando nos rimos de nós próprios”. Era isso que se fazia na Má Língua, era isso que Vilhena também conseguia fazer, era (e é) o que também perpassava pelos cartoons do Charlie Hebdo.

Afinal, em Portugal somos mesmo Charlie? Uma publicação deste tipo era possível? “Tenho algumas dúvidas”, comenta Cid. Rui Sinel de Cordes, pelo contrário, acha que sim, que havia espaço. “Mas tinham de estar preparados para problemas. Muitos problemas.”

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