Pela primeira vez em vários anos, o nome anunciado pelo secretário permanente do Comité do Nobel não foi o de um estranho. Com uma carreira de quase 50 anos e um currículo que inclui alguns dos mais importantes prémios literários, Annie Ernaux é, dirão alguns, uma escolha óbvia. A francesa era, aliás, há muito apontada como uma possível vencedora pelos seus livros de inspiração pessoal sobre temas como o género e a classe, o que acabou mesmo por acontecer. Não é habitual — de todos os Nobel, o da Literatura é aquele que é mais difícil de prever. Talvez por isso, serão poucos aqueles que esperavam ver esta quinta-feira o nome da romancista francesa nas manchetes dos jornais de todo o mundo.
A própria Annie Ernaux foi apanhada de surpresa. Por altura do anúncio do Nobel em Estocolmo, o secretário permanente Mats Malm informou que não tinha ainda sido possível falar com a escritora francesa. Quando um jornalista sueco conseguiu finalmente chegar à fala com a laureada, Ernaux, espantada, perguntou-lhe se tinha a certeza de que tinha vencido. O telefone tinha passado a manhã a tocar, mas a escritora, imersa no trabalho, não o tinha atendido. “É uma grande honra (…) e uma grande responsabilidade”, disse à estação de televisão sueca SVT.
A Academia Sueca justificou a atribuição com a “coragem e acuidade clínica” com que Ernaux “descortina as raízes, estranhamento e constrangimentos coletivos da memória pessoal”. Desde o início da carreira, que a romancista francesa tem explorado as suas próprias memórias e experiências pessoais para abordar os temas que lhe são caros, como a existência marcada pelas “disparidades em relação ao género, linguagem e classe”, com as quais teve contacto logo na infância, passada numa pequena aldeia pobre do norte de França. A abordagem autoficcional valeu-lhe algumas duras críticas, mas foi também o motivo que a levou a conquistar um lugar de destaque no panorama literário francês — a voz de Ernaux é a dela própria e, por isso, é única.
Caminhando entre a literatura, a sociologia e a história, como a própria afirmou em várias entrevistas, Annie Ernaux construiu apara si um lugar único, a partir do qual conseguiu alcançar um público vasto que se revê nas suas experiências e emoções, que são abordadas com uma franqueza e clareza de linguagem que pode passar por frieza. Essa linguagem simples e limada surge em oposição à “opacidade” do presente e também das memórias: “O que queres clarificar é a verdade prevalecente (…). Isto está sempre a faltar: a falta de compreensão da nossa experiência no momento em que temos essa experiência”. A passagem, retirada de Mémoire de fille, pode servir para resumir a obra de Annie Ernaux.
Da Normandia para Estocolmo: o caminho “longo e difícil” de Annie Ernaux até ao Nobel
Annie Ernaux nasceu a 1 de setembro de 1940. Cresceu numa pequena aldeia na região da Normandia, no norte de França, onde os pais tinham um café e uma mercearia, num ambiente “pobre, mas ambicioso”. Os pais, de origem simples, conseguiram através de trabalho árduo conquistar uma vida sem dificuldades para si e os seus filhos. Ernaux voltou a esse passado “rural” em alguns dos seus trabalhos, no seu livro de estreia, Les armoires vides, mas sobretudo em La place, o seu quarto romance e o seu maior sucesso até então — o romance foi galardoado com o Prémio Renaudot.
A Academia Sueca descreveu La place, publicado em 1983, como um “retrato desapaixonado” do pai da autora, “e do meio social que fundamentalmente o formou”. “O retrato permitiu-lhe desenvolver uma estética contida e motivada eticamente, onde o seu estilo foi forjado com firmeza e transparência”, elevando a outro nível “as palavras imaginárias da ficção” partindo da prosa autobiográfica, um termo que Ernaux recusa. A voz narrativa é “neutra e, na medida do possível, anónima. Porém, Ernaux inseriu reflexões sobre a sua escrita, nas quais se distancia da ‘poesia da memória’ e defende ‘une écriture plate’: uma escrita simples que é solidária com o seu pai e que evidencia o seu mundo e a sua linguagem”.
O conceito de “écriture plate” está, segundo explicou a Academia Sueca, relacionado com o novo romance francês da década de 1950 e com aquilo a que o escritor e filósofo francês Roland Barthes chamou “o grau zero da escrita”.“Contudo, também existe uma importante dimensão política na linguagem de Ernaux”, apontou ainda a Academia. “A sua escrita é sempre ensombrada por um sentimento de traição contra a classe social da qual ela parte. Ela disse que escrever é um ato político, que abre os olhos para a desigualdade social. Para isso, ela usa a linguagem como ‘uma faca’, como lhe chama, para cortar os véus da imaginação. É através desta ambição violeta e, ao mesmo tempo, casta, que ela revela a verdade.”
O caminho de Annie Ernaux até ao Nobel da Literatura foi “longo e difícil”, descreveu a Academia Sueca. A autora deu-se a conhecer em 1974, quando publicou Les armoires vides, um romance autobiográfico sobre a juventude na Normandia e o trauma do aborto ilegal, tema a que voltou vários anos depois, em L’événement (O Acontecimento, na tradução portuguesa). Ernaux, que trabalhava com professora de Francês, escreveu Les armories vides em segredo — o marido não gostava que escrevesse e desprezava seu o trabalho literário.
Quando a Gallimard, uma das mais importantes editoras francesas, aceitou publicar o romance, Philippe ficou furioso. “Se és capaz de escrever um livro em segredo, és capaz de me trair”, disse-lhe. O casamento terminou pouco depois da publicação de La femme gelée, o terceiro romance da autora, que fala sobre os seus problemas conjugais e as dificuldades da maternidade, e Ernaux não voltou a casar. Desde o início que a escritora procurou inspiração na sua própria vida.
“Os Anos” e o muito esperado reconhecimento internacional
Annie Ernaux alcançou a fama em França com a publicação de Passion simple (Uma Paixão Simples), em 1991, sobre o caso que manteve com um diplomata casado. O livro irritou a ala mais conservadora da sociedade francesa, que se indignou com a forma como a escritora descreveu de forma simples e honesta o desejo feminino, mas conquistou o grande público, com a linguagem franca e sem pudor. De acordo com o The New York Times, o romance vendeu 20 mil cópias nos primeiros dois meses no mercado francês. Em entrevista ao mesmo jornal, em 2020, Ernaux disse que tanto homens como mulheres lhe confessaram que gostavam de ter escrito o livro.
Em 1996, a autora publicou La honte, um livro sobre o qual é “impossível falar”, como a própria explicou. “Um livro que torne impossível suportar o olhar dos outros.” La honte é uma espécie de continuação do retrato do pai de Ernaux em La place, que procura explicar a súbita raiva que ele sentiu contra a sua mãe numa determinada altura das suas vidas. “O que torna a experiência insuportável é a vergonha enraizada nas condições de vida humilhantes”, referiu a Academia Sueca no seu site.
“Quando Annie Ernaux escreve, a questão da dignidade ou da falta de dignidade é tema de debate. A literatura fornece-se um espaço para expressar sobre o que é impossível de comunicar através do contacto direto com os outros. Para Ernaux, antes da iniciação sexual, a vergonha é o último traço da identidade pessoal.”
Quatro anos depois, foi a vez de L’événement (O Acontecimento). O romance, recentemente publicado em Portugal, segue a história de uma mulher que se vê obrigada a viver com o trauma de um aborto que realizou ilegalmente em 1963, quando a interrupção voluntária da gravidez era ilegal em França. A história, escrita na primeira pessoa e novamente inspirada nas experiências pessoais da escritora, é um poderoso testemunho sobre o sofrimento, a justiça e a condição feminina, que é também o tema de L’occupation, no qual Ernaux dissecou a mitologia social do amor romântico.
Em 2016, Annie Ernaux publicou Mémoire de fille, um livro de memórias em que relata o seu envolvimento sexual com uma mulher no verão de 1958, quando tinha 18 anos. O romance, “a peça que faltava no puzzle autobiográfico de Ernaux”, como apontou o The New York Times, demorou tanto tempo a ser escrito porque o evento foi demasiado traumático — o caso fez com que a escritora se sentisse envergonhada e levou a que desenvolvesse um transtorno alimentar e depressão. O livro foi elogiado pela crítica e por outros autores, como o romancista francês Édourde Louis, que o descreveu como uma “explosão” que o fez entender “quão subversiva uma autobiografia pode ser”.
Apesar da longa carreira literária, foi só com a publicação em inglês de Les anées (Os Anos) em 2018 que o talento literário de Ernaux foi reconhecido fora de França. A tradução inglesa foi nomeada em 2019 para o International Booker Prize. Na crítica publicada no jornal The Guardian, Lauren Elkin escreveu que há muito que Ernaux devia ser reconhecida no Reino Unido como uma das mais importantes escritoras contemporâneas francesas, mostrando-se esperançosa que a tradução de Les anées servisse para isso mesmo — o que acabou por acontecer.
Estendendo-se por um período que vai desde 1941 a 2006, o romance relata a história de uma mulher e de um país, França, transitando entre o registo coletivo e o pessoal para “captar a inefável passagem do tempo”, descreveu Elkin, que o classificou como “uma obra-prima da memória da vida francesa”. Les anées, que foi publicado em Portugal este ano, acabou por não ganhar o International Booker Prize (o galardão foi para Corpos Celestiais, de Jokha Alharti), mas venceu em França o Prémio Marguerite Duras. Em Itália, foi galardoado com o importante Strega, um sinal de como a obra de Ernaux, apesar de pessoa, é também universal.
“Achamos que é importante que o trabalho do laureado [com o Prémio Nobel da Literatura] tenha uma consequência universal, que consiga chegar a toda a gente e, nesse aspeto, acho que a mensagem é que isto é literatura para toda a gente”, considerou esta quinta-feira de manhã o presidente do Comité do Nobel, Anders Olsson, referindo-se à escritora. “Annie Ernaux acredita manifestamente na libertação da força da escrita. O seu trabalho é intransigente e escrito numa linguagem simples, limada. E quando, com grande coragem e acuidade clínica, revela a agonia da experiência da classe, descrevendo a vergonha, humilhação, inveja ou incapacidade de ver quem somos, alcançou alguma coisa admirável e duradoura.”