Numa altura em que as condições de habitabilidade dos imigrantes em Portugal voltaram à discussão, o diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM), António Vitorino, lembra que a pandemia deixou mais visível uma realidade que já existia. Os elevados casos de Covid-19 no concelho alentejano de Odemira expuseram as fracas condições em que muitos trabalhadores agrícolas imigrantes vivem, mas também outros casos de exploração laboral. Problemas que merecem a condenação do antigo comissário europeu para a Justiça e Assuntos Internos, que espera que “a situação [de Odemira] seja rapidamente resolvida para que não se voltem a repetir cenas como esta, que são, obviamente, embaraçosas”.
Entre 1995 e 1997, António Vitorino foi ministro da Presidência e ministro da Defesa Nacional, no governo de António Guterres. Começou na política pelas mãos da Juventude Socialista e foi deputado à Assembleia da República. Atualmente, é líder da principal organização intergovernamental que atua na área das migrações humanas, que há cinco anos passou a integrar o sistema da Organização das Nações Unidas.
[Ouça aqui a entrevista completa a António Vitorino:]
Situação de imigrantes em Odemira é “embaraçosa”, diz António Vitorino
Em entrevista ao Observador, António Vitorino comenta não só o caso de Odemira, como em que pé ficou a imigração em Portugal com a pandemia de Covid-19. Recusa atribuir responsabilidades sobre a situação no concelho alentejano, que “já existia”, ou comentar a atuação do Governo, defendendo que não comenta questões de política interna. No combate às redes de criminalidade organizada, o socialista pede mais fiscalização e cooperação das forças de segurança e comenta ainda a crise humanitária em Cabo Delgado, em Moçambique, e uma polémica relacionada com a eleição para diretor-geral da OIM, em 2018.
Que rasto deixou a pandemia em questões de imigração em Portugal? As condições dos imigrantes pioraram com a Covid-19?
Sem dúvida. As pessoas mais atingidas pela pandemia são as que apresentam situações de maior vulnerabilidade. Os imigrantes estão incluídos nessas situações, mas não são os únicos. Infelizmente, os efeitos económicos e sociais da pandemia não só estão a fazer-se sentir, como vão continuar a fazer sentir-se durante muito tempo. A Organização das Nações Unidas prevê que, em consequência da recessão económica provocada pela pandemia, cerca de 100 milhões a 150 milhões de pessoas, que tinham saído da pobreza, voltem a essa situação. É um número aterrador e, naturalmente, entre esses milhões contam-se muitos imigrantes, que são os primeiros a perder o posto de trabalho, a terem de regressar aos seus países de origem ou que muitas vezes ficam bloqueados no caminho, em virtude do fecho das fronteiras e das medidas de confinamento. O panorama é obviamente de enorme preocupação com o conjunto das sociedades, e com os imigrantes em particular.
Mas, olhando para o caso de Portugal, é fácil imigrar para cá? Somos um país amigo da imigração ou, por outro lado, sabemos que precisamos dessa mão-de-obra, mas dificultamos a vida destas pessoas, seja a nível de legalização ou de condições de vida?
Olhando para o passado recente e olhando para além da pandemia, Portugal é um país onde o crescimento líquido da população tem ficado a dever-se largamente ao fluxo migratório, ao equilíbrio migratório líquido positivo. Mas não é caso único, já que muitos países europeus estão exatamente nas mesmas condições. Portugal tomou no início da pandemia um conjunto de medidas importantes, semelhantes a outros países da Europa, no sentido de prolongar as autorizações de permanência no território nacional, mesmo para além do prazo de caducidade dessas alterações, em virtude das dificuldades dos imigrantes em acederem aos serviços públicos para renovarem as autorizações. Uma outra decisão que tem sido também muito elogiada internacionalmente é a de permitir o acesso aos serviços de saúde por parte dos imigrantes e eu creio que a situação que vivemos hoje em muitos países prova que, como diz o secretário-geral da ONU, para estarmos todos seguros, cada um tem de estar seguro. O que significa que os imigrantes têm de ter, também, acesso aos cuidados de saúde e, muito particularmente agora, acesso ao processo de vacinação em condições de igualdade de circunstâncias com todos os demais residentes no território nacional.
Portanto, os imigrantes em Portugal devem também ser vacinados contra a Covid-19 e acesso a cuidados médicos e outros direitos neste atual contexto de pandemia.
Têm de ter um tratamento de igualdade de circunstâncias, seguindo exatamente os mesmos critérios que se aplicam aos cidadãos nacionais, como o critério de idade ou das comorbilidades. Não se trata de criar nenhuma situação de privilégio para os imigrantes, mas de no planeamento nacional da vacinação, incluir também os imigrantes. Há poucas semanas, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou que todos os imigrantes presentes no território norte-americano seriam vacinados. Nos Estados Unidos, existem 11 milhões de imigrantes em situação irregular, isto é, que não estão legalizados à luz das regras aplicadas naquele país. E o Presidente norte-americano incluiu todos no plano de vacinação, sem exceção, independentemente do seu estatuto jurídico. Porque o vírus não distingue entre migrantes regulares ou migrantes irregulares. O vírus atinge todos e, para que nos consigamos proteger, em nome da saúde pública das comunidades de acolhimento e dos países de destino, é necessário que os imigrantes não constituam um grupo à parte, que depois gera focos de contaminação, como já tínhamos visto muitas vezes em muitos países e estamos agora a ver no caso português.
Já vamos a esse caso. Antes disso, considera então que é fácil imigrar para Portugal?
Imigrar nunca é fácil, é uma decisão pessoal e que muitas vezes deixa as pessoas divididas e há muitas motivações para imigrar — económicas, fugir da insegurança, da discriminação. Cada vez mais há pessoas que migram por questões climáticas. E, portanto, nunca é fácil essa travessia. Agora, a mensagem essencial é que a imigração legal tem de ser facilitada, porque esse é um instrumento muito importante de combate à imigração irregular, ao tráfico de seres humanos. E é isso que é verdadeiramente atentatório dos direitos humanos e da dignidade dos imigrantes. Portugal tem uma política de imigração que, neste momento, está a passar por um processo de transformação, está a negociar acordos bilaterais com alguns países de origem e que são particularmente importantes. Por outro lado, tem uma relação muito especial com os países de língua oficial portuguesa. É bom recordar que a maior comunidade imigrante em Portugal é brasileira e a terceira é cabo-verdiana. É importante que haja vias de imigração regular e legal de forma a impedir que os traficantes inescrupulosos e redes transnacionais de criminalidade organizada possam explorar os imigrantes, fazendo-os imigrar pela via irregular.
Mas há muitas queixas de que é muito difícil conseguir a legalização em Portugal por questões burocráticas.
Bom, acho que se perguntar a qualquer português sobre qualquer documento que queira obter, ele dir-lhe-á exatamente a mesma coisa. [Risos] Portugal é ainda um país muito burocrático. Mas devo dizer sinceramente que, pela minha própria experiência agora como cidadão português emigrado, acho que tem havido um progresso no sentido da digitalização de uma série de serviços fundamentais e penso que este novo Plano de Recuperação e Resiliência da União Europeia, que tem exatamente como um dos objetivos a digitalização, devia estender-se também ao processo de imigração. É possível fazer um caminho de desburocratização, de simplificação e sobretudo de digitalização dos processos legais de imigração para Portugal.
Odemira e as redes de tráfico humano
O elevado número de casos de Covid-19 em Odemira voltou a expor um problema que não é novo, nem é exclusivo a Odemira ou ao Alentejo — a exploração de imigrantes que trabalham essencialmente na agricultura e que vivem em casas com poucas ou nenhumas condições. Por que é que continuamos a falar deste problema passados tantos anos e sem ainda ter sido solucionado?
Este é, infelizmente, um problema que ocupa a minha vida quotidiana. Assisto a esta situação, que está agora a ocorrer em Portugal, em muitos países e ao mesmo tempo. Porque uma certa incapacidade de responder aos pedidos de imigração regular leva as pessoas em desespero de causa a optarem por vias irregulares de imigração. E a resposta é essa atividade criminosa, de tráfico de seres humanos ou de auxílio à imigração ilegal, muitas vezes colocando os imigrantes em situações de sobreexploração, retirando-lhes passaportes, privando-os sequer de poderem identificar-se, obrigando-os a trabalhar a ritmos e em setores completamente de desgaste, exploração laboral, mas também muitas vezes exploração sexual, sobretudo em relação às mulheres e às raparigas. E a resposta passa por vários planos. A OIM colabora com empresas multinacionais num conjunto de programas de recrutamento ético — identificar um conjunto de critérios que são assumidos pelas empresas quando recrutam imigrantes. E desde logo, à cabeça, é totalmente inaceitável que os imigrantes tenham de pagar para ter um posto de trabalho. É completamente inaceitável.
Mas em Portugal este problema já não deveria ter sido resolvido há mais tempo?
Este problema é conhecido há bastante tempo e passa em primeiro lugar por esta cooperação no desmantelamento das redes, porque estas redes não são só portuguesas. Obviamente que têm pontos de entrada e de apoio em Portugal, mas são muitas vezes redes transnacionais. São redes que operam a partir dos países de origem onde se faz o recrutamento. E, portanto, a cooperação entre as polícias e os sistemas judiciários no desmantelamento destas redes é fundamental e é de reconhecer infelizmente que o número de casos de tráfico de seres humanos que são levados aos tribunais, e que são efetivamente investigados e condenados, é ínfimo por comparação com o número das situações de que nós temos conhecimento. Em segundo lugar, é preciso haver os mecanismos humanos e técnicos necessários para que a autoridade reguladora do mercado de trabalho faça a verificação das condições de prestação laboral, respeito pelos horários, pelas condições de higiene e de segurança no trabalho, tal como para qualquer trabalhador português. E, em terceiro lugar, as autarquias locais têm um papel muito importante, porque estão na linha da frente, no contacto com estas populações imigrantes. E o que nós vemos um pouco por todos os lados onde esta situação se verifica é que muitas vezes os serviços de primeira linha, designadamente os sociais, os serviços de saúde, de segurança social, foram planeados para uma determinada dimensão populacional sem incorporarem os imigrantes. E claro que quando uma pessoa quer ir a um centro de saúde e vê na fila, à sua frente, dez imigrantes, e que a capacidade de resposta do centro de saúde não era a mesma que era há três meses, tem a tentação de culpar os imigrantes e é profundamente injusto. O que é preciso é que os Estados e as autoridades se adaptem à pressão populacional, incorporando nos seus métodos de planeamento a presença dos imigrantes. Incluindo, do ponto de vista habitacional. As imagens que nós temos visto são absolutamente inaceitáveis, sob todos os pontos de vista. Mas, sobretudo, são um atentado à dignidade humana dos imigrantes.
Dizia que é preciso mais fiscalização. As autoridades competentes e os próprios sucessivos governos em Portugal têm ignorado este problema? É falta de vontade? Falta de fiscalização apenas? De quem é que é a culpa de este problema continuar a acontecer e de agora voltar a ser tão falado por causa do caso de Odemira?
Os problemas que têm a ver com a fiscalização das condições de higiene e segurança no trabalho não são exclusivos dos imigrantes. A conclusão que há a tirar é que é necessário reforçar estes instrumentos. E que é preciso que esses serviços de fiscalização tenham também em linha de conta esta realidade que a pandemia tornou mais visível, mas que estava lá já antes da pandemia. Mas agora, como aparece associada a um foco de infeção que atingiu cerca de 100 pessoas, se os números que eu vi estão corretos, isso significa que os serviços de fiscalização também têm de adaptar a sua metodologia de trabalho e de inspeção a estas novas realidades que estão a surgir e que são cada vez mais relevantes, que é o trabalho sazonal. Porque estas pessoas não estão presentes sempre no mesmo local de trabalho, fazem hoje a apanha da uva, amanhã de frutos vermelhos, depois da pera… Têm um sistema de circulação que obriga a que haja uma colaboração muito estreita entre os serviços de inspeção laboral e as autarquias locais, que são quem deteta na primeira linha a presença e as necessidades dos imigrantes.
Mas os governos também têm falhado na atuação sobre estes casos? Este Governo?
Eu não faço comentários sobre… É a quarta tentativa que faz. [Risos] Eu aprecio a sua persistência, mas como dirigente máximo de uma organização mundial não tenho de fazer apreciações sobre as políticas dos governos. O que destaco é a necessidade de tomar em linha de conta estes problemas e encontrar as melhores soluções. Da parte da OIM, o que nós dizemos a todos os Estados-membros é que temos uma longa experiência em lidar com estas situações, infelizmente porque elas se arrastam ao longo do tempo, são muitas e em vários sítios do mundo. Podemos contribuir e apoiar os Estados a desenvolver as suas capacidades próprias para enfrentar este tipo de situações que, obviamente, são situações que nenhum Estado pode tolerar.
Mas deixe-me insistir num ponto. O atual Governo tinha conhecimento da situação em que vive esta comunidade imigrante que trabalha nas explorações agrícolas em Odemira. Não só aprovou em 2019, em Conselho de Ministros, uma lei que reconhece essa falta de condições de habitabilidade para estes imigrantes, como a própria legislação permitiu a existência de alojamento destas pessoas em contentores. Além disso, o Executivo terá sido avisado, no ano passado, pelo próprio presidente da Câmara Municipal de Odemira, que já falava numa “bomba relógio”. Tendo em conta estas informações, não deveriam ser também daqui retiradas consequências? Políticas, por exemplo?
Eu já lhe respondi que não interfiro nas situações de política interna. A OIM tem 174 Estados-membros. Está a ver se eu fosse interferir na vida política interna de cada Estado-membro, não faria outra coisa. A minha mensagem é pela positiva. É dizer que este caso não é inédito. Nós conhecemos o problema, nos seus traços fundamentais, e tem três grandes dimensões: saúde pública, luta contra o tráfico de seres humanos e violação dos direitos humanos dos imigrantes, e ainda criar as condições para garantir condições dignas de prestação laboral e de vida.
A Polícia Judiciária e as entidades competentes estão a investigar mais casos idênticos a este de Odemira, e de tráfico de seres humanos e escravatura. Acredita que existam mais casos de imigrantes a viver e a trabalhar em Portugal nestas condições? Podem vir a ser destapados mais casos destes? Isso preocupa-o?
Estas redes criminosas são transnacionais e há que dar não só prioridade à investigação destes casos, mas também à troca de informações, pelo menos a nível europeu, sobre a operação destas redes. Isto não são fenómenos restritos a um país, são fenómenos que ligam vários países. As notícias que têm saído mostram que estes trabalhadores vêm da Índia, do Nepal, da Tailândia, muitos vêm da Europa central e de leste. E, como é evidente, sem ligações a redes que operam nesses países, este tráfico não podia ocorrer. Por isso, é necessário que haja um empenhamento das forças de polícia e das forças de segurança e dos serviços de informações na cooperação internacional para identificar estas rotas que são exploradas por específicas redes de criminalidade organizada.
Falávamos há pouco das queixas permanentes sobre a dificuldade de conseguir a legalização em Portugal. Este problema não acaba também por potenciar estes casos de que falamos, de exploração de imigrantes e falta de condições em que vivem? Se fosse mais simples o processo de legalização para os imigrantes poderem trabalhar e terem, por exemplo, um contrato de trabalho, se calhar algumas pessoas não se sujeitavam àquilo a que se sujeitam.
Tem havido um esforço de simplificação, mas se eu bem percebi das notícias, muitas vezes estas redes também operam no sentido de forjar contratos de trabalho, forjar processos fictícios de regularização. Portanto, não se trata só de simplificar os procedimentos administrativos de regularização. Sabemos que, há uns tempos, havia um atraso na concessão de autorizações de permanência em território nacional e daí que tenha sido importante que o Governo tenha decidido prolongar automaticamente os pedidos pendentes, mesmo aqueles sobre os quais ainda não tinha incidido nenhuma decisão definitiva. Não só para permitir a situação regular da permanência destas pessoas no território nacional, como até permitindo o acesso destas pessoas aos serviços de saúde, para que no meio de uma pandemia elas tenham as condições de acesso a estes serviços. Todas as simplificações são bem-vindas desde que não se prejudique a integridade do sistema que existe de autorização e regularização da permanência no território nacional, de forma a não abrir espaço para a atividade destas redes criminosas.
De que forma é que a União Europeia pode intervir nestes casos das condições em que vivem muitos imigrantes? Qual é que deve ser o papel do bloco europeu e também o papel da comunidade internacional?
Este é um elemento fundamental das políticas de integração nos países de acolhimento. A Comissão Europeia publicou recentemente uma comunicação com um conjunto de princípios e objetivos em matéria de integração e de inclusão social dos imigrantes nas sociedades de acolhimento. Neste caso, o processo de inclusão social é um processo micro, não é um processo macro. Ou seja, o sucesso da integração dos migrantes nas sociedades de acolhimento joga-se no local de trabalho, no local de residência, na presença dos seus filhos, no sistema escolar português, joga-se no acesso aos serviços e cuidados de saúde. É aí que se ganha ou se perde a batalha da inclusão social e da integração dos imigrantes nas sociedades de acolhimento. Eu espero que essa comunicação da Comissão seja traduzida em planos de ação a nível nacional, em linha com os objetivos do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular, que foi adotado pelas Nações Unidas e de que a OIM é a coordenadora de uma rede internacional que permite acompanhar e apoiar os Estados na aplicação desses valores e princípios de inclusão social dos imigrantes nas sociedades de acolhimento.
E este caso surgiu e esteve em destaque poucos dias antes da Cimeira Social Europeia, que decorreu no Porto. Que imagem é passada por Portugal na Europa com este caso de Odemira, também numa altura em que Portugal tem também atualmente a presidência do Conselho da União Europeia?
Por um lado, tem em matéria de integração dos imigrantes um registo histórico muito positivo. Em vários indicadores, Portugal aparece sempre no topo das tabelas e não é apenas uma maneira de apresentar as políticas públicas…
… Mas este caso concreto de Odemira não acaba por eventualmente influenciar a imagem de Portugal?
Tem a ver também com a maneira como a sociedade portuguesa reage em relação aos imigrantes. Se vir bem, a ideia de repulsa pelas situações que nos foram descritas foi muito partilhada no conjunto da sociedade portuguesa. Os portugueses acham que os imigrantes têm todo o direito a serem tratados com dignidade, com respeito e com condições de segurança. E, nesse sentido, espero que esta situação seja rapidamente resolvida e que outras situações que possam existir possam ser alvo também da atenção das autoridades públicas, para que não se voltem a repetir cenas como esta a que nós assistimos e que, obviamente, são cenas embaraçosas.
Cabo Delgado e a acusação de compra de votos
Em relação à questão de Cabo Delgado: como diretor-geral da Organização Internacional das Migrações, tem estado em contacto com as autoridades moçambicanas? O que é que lhe têm dito?
Nós temos uma equipa de quase 260 pessoas neste momento em Cabo Delgado. Não foram para lá depois dos incidentes de Palma, nós estamos lá desde há mais de dois anos, desde o furacão Idai. Como consequência das alterações climáticas e dos furacões na província de Cabo Delgado, temos há quase dois anos 200 mil deslocados. A insegurança e os ataques terroristas levaram mais cerca de 500 mil pessoas a deslocarem-se, e, neste momento, esse número está muito próximo de 800 mil deslocados no conjunto da província de Cabo Delgado. Este ataque mais recente a Palma levou cerca de 40 mil pessoas, até este momento, a deslocarem-se em direção à cidade de Pemba. Estamos na primeira linha, juntamente com outras organizações internacionais e organizações não-governamentais, para responder às necessidades imediatas humanitárias. Para isso estamos sempre em contacto com as autoridades moçambicanas. A OIM libertou um financiamento da nossa capacidade própria, mas que é muito insuficiente para responder a este número significativo de deslocados. Fizemos juntamente com o sistema das Nações Unidas um apelo ao financiamento internacional, que infelizmente, neste momento, só está garantido a cerca de 10% das necessidades, o que nos causa enorme preocupação sobre como é que vamos continuar a apoiar este número tão significativo de pessoas em Cabo Delgado.
E precisamente sobre esse financiamento anunciou no dia 23 de abril, na rede social Twitter, 1,2 milhões de dólares do mecanismo de financiamento de emergência da OIM para ajudar “milhares de pessoas” que continuam a fugir de Cabo Delgado. Esse dinheiro já chegou ao terreno?
De certeza. Esse dinheiro é uma conta corrente. Nós trabalhamos juntamente com o Programa Ambiental Mundial e com a Unicef nos campos onde as pessoas precisam desse apoio. Esse dinheiro traduz-se em alimentação, higiene e saneamento, que no meio de uma pandemia é uma enorme prioridade, mas são situações transitórias. Temos de criar vias de solução, porque estas pessoas não podem ficar eternamente deslocadas, vivendo em condições extremamente precárias e difíceis. Para esta terceira dimensão, 1,2 milhões que libertámos é apenas uma gota de água no oceano e necessitamos de que o conjunto da comunidade internacional preste atenção ao que se passa em Cabo Delgado, que aliás é algo que não é novidade.
Para terminar, pergunto-lhe sobre a sua eleição para o cargo de diretor-geral da OIM, em 2018. A revista Sábado avançou no início de abril que, na altura da eleição, o Governo português terá pago a estadia na Suíça a um diplomata de São Tomé e Príncipe, em troca de um voto em si para o cargo que exerce atualmente. Já negou essas acusações, garantindo que a sua campanha não foi “andar a comprar votos”. O que lhe pergunto é: porque é que o Governo pagou essa estadia ao diplomata, se é que o fez?
Sobre isso só lhe posso dizer aquilo que disse, segundo o velho princípio de que quem não se repete contradiz-se. Só me posso repetir.
Mas, estando o seu nome em causa, procurou saber junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros, por exemplo, o que é que se passou? Se de facto o Governo pagou ou não essa estadia em troca de um voto?
Tanto quanto eu sei, o Ministério dos Negócios Estrangeiros já tomou posição sobre essa matéria. Essa é uma questão que diz respeito ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Mas não tentou entender o que se passou? Não tomou diligências junto do Governo português e do próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros para perceber pelo menos o que aconteceu?
Não vale a pena insistir, porque vou dar-lhe sempre a mesma resposta. [Risos]