Depois do banho de multidão que recebeu em Lisboa, a próxima viagem internacional do Papa Francisco não podia contrastar mais com a apoteótica Jornada Mundial da Juventude que reuniu cerca de 1,5 milhões de jovens em Portugal: no dia 31 deste mês, o líder da Igreja Católica viaja para a Mongólia, país asiático situado entre a China e a Rússia onde vivem apenas 1.500 católicos, apoiados por 77 missionários e um único bispo.
Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco tem defendido a necessidade de a Igreja abandonar a tentação do autocentrismo (e do eurocentrismo) e de ir ao encontro das periferias — todas elas, incluindo as geográficas, as existenciais e as humanas. O seu historial de viagens internacionais, que inclui múltiplos países onde o Cristianismo é uma minoria e onde nunca nenhum Papa tinha estado, é um sinal disso mesmo. Mas uma ida à Mongólia, um país que tem menos católicos do que muitas paróquias portuguesas, parece radical até para os padrões de Francisco.
O Papa parte de Roma às 18h30 do dia 31 de agosto e só aterra na capital da Mongólia, Ulaanbaatar, às 10h00 do dia 1 de setembro, após um voo de nove horas que será um desafio para a frágil saúde de Francisco. Por essa razão, o programa oficial inclui um dia inteiro de repouso após a viagem: só na manhã de 2 de setembro, 24 horas depois da aterragem, é que começam os compromissos públicos de Francisco na Mongólia.
Mas a viagem do Papa Francisco à Mongólia reveste-se de especial importância no momento atual: entalado entre a Rússia e a China, aquele histórico território com uma baixíssima densidade populacional é, na verdade, estratégico para que o Papa se mostre no terreno. Por um lado, Francisco continua a procurar contribuir com soluções diplomáticas para o fim da guerra na Ucrânia; por outro, prosseguem os esforços do Vaticano para manter uma relação estável com a China, país em que durante anos coexistiram duas Igrejas Católicas: uma oficial, apoiada pelo regime comunista e com bispos nomeados pelas autoridades chinesas, e outra clandestina, fiel a Roma e ao Papa, duramente perseguida pelo regime. Em 2018, Vaticano e Pequim, que não têm relações diplomáticas desde 1951, assinaram um acordo histórico com o objetivo de pôr fim àquela situação — mas o acordo já foi violado por Pequim e são muitos os críticos que acusam o Papa Francisco de vender a Igreja ao regime comunista.
Por todas estas razões, como escrevia recentemente a Associated Press, a simbólica viagem do Papa Francisco à Mongólia vai ser atentamente observada por Moscovo e por Pequim — ainda que o programa oficial inclua apenas visitas de cortesia às autoridades mongóis, encontros ecuménicos e inter-religiosos, encontros com os agentes pastorais que atuam na Mongólia e uma missa numa arena desportiva que deverá ser o ponto alto da passagem de Francisco pela Mongólia, que termina no dia 4 de setembro.
País com 1.500 católicos recebe Papa pela primeira vez
O anúncio de que o Papa Francisco visitaria a Mongólia no final do verão foi oficialmente feito no início de junho, quando o porta-voz do Vaticano confirmou que o líder da Igreja Católica tinha aceitado o convite do Presidente mongol, Ukhnaagiin Khürelsükh, para visitar o país; em abril, durante o voo de regresso a Roma após a viagem apostólica à Hungria, Francisco já tinha falado da possibilidade de visitar a Mongólia.
A atenção do Papa Francisco à Ásia Central também já tinha ficado patente em setembro do ano passado, quando o líder católico se deslocou ao Cazaquistão para participar no VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais — onde se esperava que Francisco pudesse ter um encontro bilateral com o Patriarca de Moscovo, Cirilo I, líder da Igreja Ortodoxa Russa e um dos principais aliados de Vladimir Putin, para discutir com ele uma proposta de paz para a guerra na Ucrânia. No entanto, Cirilo I acabaria por cancelar a deslocação.
Nessa ocasião, o jovem cardeal italiano Giorgio Marengo, um missionário que está na Mongólia há mais de 20 anos e que é atualmente o responsável máximo pela Igreja Católica na Mongólia, dizia ao portal de notícias do Vaticano que, “na Mongólia, o Santo Padre goza de muita admiração devido ao seu compromisso com o diálogo e com a promoção de uma cultura de paz e fraternidade”. Marengo é o prefeito apostólico de Ulaanbaatar (uma prefeitura apostólica é uma comunidade católica ainda em formação, que ainda não é formalmente uma diocese).
“Diria que esta região do mundo tem uma história, uma tradição de coexistência e de colaboração pacífica. Talvez a presença do Santo Padre represente uma espécie de intensificação da importância deste processo, mesmo na sociedade, na sociedade mais alargada destes países”, afirmou ainda Marengo, referindo-se à generalidade dos países da Ásia Central, associados numa única federação episcopal. Agora, Francisco vai mesmo à Mongólia, um dos países menos católicos do mundo, que viveu até ao início da década de 1990 como estado-satélite da União Soviética sob um pesado regime comunista.
Em declarações recentes à agência Reuters, o cardeal Marengo — que aos 49 anos é o mais jovem membro do Colégio Cardinalício — recordou como lá chegou há mais de duas décadas. Nascido em 1974 em Itália, este padre que pertence à congregação dos Missionários da Consolata e que se doutorou em missiologia em Roma, foi enviado para a Mongólia pela primeira vez no ano 2000, tornando-se o primeiro Missionário da Consolata no país, que tinha passado uma década no conturbado processo de transição para uma economia de mercado após a queda do regime comunista.
“Montámos duas gers”, recordou Marengo, referindo-se às tradicionais tendas circulares usadas pelos nómadas da estepe mongol. “Uma para a oração e outra para atividades com crianças. As pessoas da zona começaram a entrar e a ver aqueles estrangeiros engraçados a rezar em mongol. Disseram-nos: ‘Sentimos que havia alguma coisa de especial nesta ger.’”
Mais de duas décadas depois, a Mongólia tem hoje uma minúscula comunidade católica que ficou “emocionada” quando soube que, pela primeira vez na história, um Papa vai visitar o país (chegou a estar agendada uma viagem de João Paulo II em 2003, mas o Papa polaco não pôde realizá-la devido ao agravamento do seu estado de saúde, e enviou um cardeal em sua representação para consagrar a primeira catedral mongol e para ordenar o primeiro bispo da comunidade). “A reação tanto da comunidade católica como da comunidade local mais alargada foi de grande admiração e de alguma emoção. Está gradualmente a tornar-se mais evidente o quão importante e significativa vai ser esta visita”, disse ainda o cardeal Marengo, que considerou que a viagem de Francisco à Mongólia vai ser revigorante para um povo que sofreu “70 anos de um duro regime comunista”.
Ainda segundo a Reuters, cerca de 60% dos 3,35 milhões de habitantes da Mongólia identificam-se como religiosos. Entre estes, a esmagadora maioria — 87,1% — são budistas. Seguem-se os muçulmanos, com 5,4% da população, ao passo que 4,2% seguem as práticas xamânicas. Só 2,2% se identificam como cristãos, com a Igreja Católica a ser uma minoria até dentro da pequena franja cristã do país: são uma comunidade de 1.500 fiéis, organizados em apenas nove paróquias.
Uma viagem com simbolismo geopolítico
Ao contrário do que aconteceu nos primeiros dias de agosto em Lisboa, o programa do Papa Francisco na Mongólia será relativamente leve — pelo menos no que toca aos compromissos oficiais. Para o primeiro dia estão agendadas uma série de visitas de cortesia de poucos minutos cada, incluindo: uma cerimónia de acolhimento, uma visita ao Presidente mongol, um encontro com a sociedade civil e o corpo diplomático, uma reunião com o líder do parlamento e outra com o primeiro-ministro, e ainda um encontro com o clero e os missionários da região. No dia seguinte, apenas surge no programa um encontro ecuménico e inter-religioso e a celebração da missa na arena desportiva. No terceiro dia, o Papa inaugura uma nova instituição sociocaritativa na capital mongol, antes de regressar ao aeroporto para o longo voo que o levará de regresso a Roma.
Contudo, há uma dimensão simbólica que permite outra leitura desta viagem do Papa Francisco: durante quatro dias, o Papa Francisco estará num território especial, situado entre a Rússia e a China, dois pólos de tensão a que o Vaticano tem prestado uma atenção particular nos últimos meses.
É impossível olhar para a viagem de Francisco àquele país sem ter em mente a “ofensiva de paz” que o Papa tem atualmente em curso. São conhecidos os esforços que o Papa Francisco tem desenvolvido para pôr fim, pela via diplomática, à guerra na Ucrânia. Logo em março de 2022, duas semanas depois da invasão russa ao território ucraniano, o Papa Francisco deslocou-se pessoalmente à embaixada da Rússia junto da Santa Sé para um encontro inédito em que expressou preocupação pela guerra (e terá, segundo algumas fontes, falado por telefone com o próprio Vladimir Putin, embora essa informação nunca tenha sido oficialmente confirmada). Nos meses seguintes, enviou até à Ucrânia dois dos seus principais diplomatas e tentou sempre, através da via privilegiada que tem aberta com o Patriarca de Moscovo, fazer chegar um apelo de paz a Putin. Por essa razão, nos seus discursos públicos, o Papa Francisco foi cauteloso, evitando uma condenação explícita da Rússia — que só chegaria algum tempo depois, quando os esforços diplomáticos se revelaram infrutíferos.
Ainda assim, a diplomacia do Vaticano (que foi responsável, por exemplo, pelo restabelecimento de relações entre EUA e Cuba em 2014) não tem parado de trabalhar nos bastidores com vista à resolução do conflito na Ucrânia.
O esforço mais recente é aquilo a que o Papa Francisco já chamou uma “ofensiva de paz”. Em maio deste ano, Francisco confiou no cardeal italiano Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana, a missão de desenvolver contactos de alto nível em nome do Vaticano para encontrar uma solução para a guerra. Em junho, Zuppi foi a Kiev para se reunir longamente com as autoridades ucranianas. No mesmo mês, deslocou-se a Moscovo para reuniões com assessores de Putin, que não terão chegado a bom porto. No mês seguinte, o cardeal italiano foi recebido pelo Presidente dos EUA, Joe Biden, em Washington. O próximo destino de Zuppi será precisamente Pequim.
A possibilidade de o enviado papal ir a Pequim já tinha começado a circular nos meios de comunicação católicos no final de julho: estando o Vaticano empenhado em alguns pontos concretos da paz na Ucrânia, incluindo as trocas de prisioneiros entre Kiev e Moscovo e o regresso à Ucrânia das quase 20 mil crianças que terão sido deportadas à força para a Rússia, o enviado de Francisco procura a ajuda concreta dos Estados Unidos e da China, dois países cujas diplomacias poderão facilitar estes processos — os EUA pelo lado ucraniano e a China pelo lado russo.
No início de agosto, numa entrevista à revista católica espanhola Vida Nueva, o Papa Francisco confirmou o rumor. “O cardeal Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha, está a trabalhar a fundo como responsável dos diálogos. Já foi a Kiev, onde se mantém a ideia de uma vitória sem optar pela mediação. Também esteve em Moscovo, onde encontrou uma atitude que poderíamos qualificar como diplomática por parte da Rússia. O avanço mais significativo que se conseguiu tem a ver com o regresso das crianças ucranianas ao seu país. Estamos a fazer tudo o que está nas nossas mãos para conseguir que cada familiar que reclama o regresso dos seus filhos possa alcançá-lo.”
Acrescentou o Papa: “Estou a pensar designar um representante de forma permanente que sirva de ponte entre as autoridades russas e ucranianas. Para mim, no meio da dor da guerra, é um grande passo. Depois da visita do cardeal Zuppi a Washington, a próxima escala prevista é Pequim, porque ambos têm a chave para baixar a tensão do conflito. Todas estas iniciativas são aquilo que denomino ‘uma ofensiva de paz’.”
A presença de Francisco na Mongólia será, por isso, observada atentamente a partir de Pequim e de Moscovo. Como recorda a Associated Press, aquele país asiático tem desenvolvido grandes esforços ao longo dos últimos anos para afirmar a sua independência, quer em relação a Moscovo (com que ainda mantém ligações da era soviética, nomeadamente dependendo da Rússia para praticamente toda a energia que recebe), quer em relação a Pequim (que, como grande potência regional, compra mais de 90% das exportações de carvão e cobre da Mongólia, um dos principais elementos da economia do país).
Ao mesmo tempo, o Papa Francisco tem tentado estabelecer canais de comunicação estáveis e viáveis tanto com Pequim como com Moscovo — quer devido à procura de resolução para a guerra na Ucrânia, quer no sentido de assegurar condições de vida dignas aos cerca de 10 milhões de católicos que vivem na China, onde a Igreja Católica foi historicamente perseguida.
Em declarações à Associated Press, o editor do portal de notícias católico Asia News, Giorgio Bernadelli, lembrou que o Papa Francisco deverá sobrevoar o espaço aéreo chinês durante a sua viagem à Mongólia (em vez do espaço aéreo russo, por a Rússia se encontrar em guerra), e que, de acordo com a tradição papal, deverá enviar um telegrama de cortesia às autoridades chinesas devido a esse sobrevoo. Se, na maioria dos casos, estes telegramas incluem apenas cordialidades genéricas, é possível que a mensagem enviada a Pequim tenha algum subtexto para interpretar, assinalou Bernadelli.
Tendo em conta a pequena dimensão da Igreja Católica na Mongólia, existe uma grande probabilidade de a viagem de Francisco à Mongólia reunir muitos padres, bispos e cardeais de toda a Ásia Central — já que a Conferência Episcopal da Ásia Central inclui também países como o Cazaquistão, o Quirguistão e o Uzbequistão. Isto significa também que Francisco terá ali uma oportunidade para falar diretamente para toda uma região do mundo onde a Rússia ainda exerce uma enorme influência.
Todo este contexto tem tornado a viagem de Francisco à Mongólia especialmente apetecível do ponto de vista mediático: todas as palavras que o Papa Francisco proferir durante aqueles dias poderão ter importantes interpretações geopolíticas, sejam direcionadas à Rússia, sejam direcionadas à China. À Associated Press, Giorgio Bernadelli destacou também a relevância da inauguração de uma instituição de solidariedade social na Mongólia, a “Casa da Misericórdia”, um acontecimento que deverá mostrar como a Igreja Católica pretende consolidar a sua presença numa região do mundo que lhe é especialmente desfavorável (tendo em conta a herança ateísta do tempo soviético e o facto de a esmagadora maioria dos habitantes daquela região seguirem religiões orientais) e deixar bem claro que vai continuar a atuar na Ásia.
Papa na Mongólia com os olhos na China
Mas a viagem de Francisco à Mongólia também vai servir para levar o Papa Francisco às proximidades da fronteira com a China, um país a que Francisco tem dado uma atenção muito particular durante o seu pontificado. Além de aproveitar o telegrama que enviar às autoridades chinesas para deixar uma mensagem contundente sobre a presença da Igreja na China, é possível que o Papa Francisco aproveite os seus discursos na Mongólia para também chamar a atenção para a situação dos católicos na China.
Trata-se de um país com uma relação especialmente complexa com a Igreja Católica. Como o Observador explicava neste detalhado artigo, é necessário recuar até à proclamação da República Popular da China por Mao Tsé-tung, em 1949, para compreender as raízes desta difícil relação. Nessa altura, Mao implementou um regime comunista e ateu, caracterizado pela perseguição às comunidades religiosas, à ocupação dos templos e à expulsão de múltiplos líderes religiosos do país. O regime chinês viria a perceber que era um erro procurar erradicar definitivamente todo o fenómeno religioso e optaria, depois, por outra via: institucionalizar as religiões, criando “associações patrióticas” destinadas a regulamentar, a partir do governo, a vida das cinco religiões autorizadas (Confucionismo, Budismo, Taoismo, Islão e Cristianismo).
Essa pretensão esbarrou com um princípio fundamental da vida da Igreja Católica: a unidade em torno do Papa, em Roma. Ou, como o regime chinês o via, a interferência efetiva de um estado estrangeiro — o Vaticano — num importante aspeto da vida social chinesa. Um aspeto central preocupava as autoridades chinesas: a nomeação dos bispos católicos ser da exclusiva responsabilidade do Papa, o que impedia efetivamente o regime chinês de colocar nas instituições religiosas pessoas da sua confiança.
Simultaneamente, a questão de Taiwan afastou ainda mais Vaticano e Pequim: é que a Santa Sé é, ainda hoje, um dos poucos estados do mundo que reconhecem diplomaticamente o território de Taiwan, o que a impede de ter relações diplomáticas formais com a China. Isto deve-se à “política de uma China” seguida por Pequim, que recusa manter relações diplomáticas com qualquer país que reconheça Taiwan. Em 1951, Pequim e Vaticano romperam as relações diplomáticas e, desde essa altura, nunca as reataram, o que tem tido graves implicações para os cerca de 10 a 12 milhões de católicos chineses. Há décadas que os católicos chineses vivem divididos entre duas Igrejas: a “Igreja oficial”, liderada por bispos nomeados diretamente pelo regime chinês, e a “Igreja clandestina”, com padres e bispos nomeados pelo Vaticano, mas sem autorização governamental e alvo de forte repressão por parte do regime.
Esta situação levou a que, ao longo dos últimos anos, diferentes papas tenham considerado que o restabelecimento de relações formais com a China deve ser uma das prioridades diplomáticas do Vaticano. Mas tal nunca foi possível: o Vaticano recusou sempre reconhecer a validade da Igreja patriótica chinesa, e Pequim reiterou sempre que tem de ter uma palavra a dizer na escolha dos bispos chineses.
O Papa Bento XVI foi um dos primeiros a dar um passo em frente rumo a uma possível conciliação, determinando em 2007 que os sacramentos celebrados pelos bispos nomeados pelo regime eram válidos — ainda que esses clérigos não estivessem em plena comunhão com Roma. A determinação de Bento XVI tinha essencialmente em vista os católicos chineses, para que pudessem receber os sacramentos de modo válido independentemente de frequentarem uma Igreja “oficial” ou uma “clandestina”.
O maior avanço nestas relações foi dado em 2018, quando, sob a liderança do Papa Francisco, Vaticano e Pequim chegaram a um acordo provisório para a nomeação dos bispos chineses que, em teoria, poria um ponto final à existência de duas hierarquias paralelas. As negociações secretas implicaram algumas concessões da parte da Santa Sé, que foram mal vistas por muitos dentro da Igreja: um dos primeiros sinais foi a ordem, chegada de Roma, para que dois bispos “clandestinos”, ou seja, fiéis a Roma, renunciassem aos seus lugares para serem substituídos por bispos aprovados pelo regime. Francisco foi acusado de estar a vender a Igreja a Pequim — mas o Vaticano avançou na mesma para a negociação de um acordo provisório destinado a reduzir o atrito com Pequim e a facilitar a vida aos católicos na China.
O acordo foi alcançado em setembro de 2018, sem que os seus detalhes tenham sido totalmente tornados públicos, embora o Vaticano tenha sempre assegurado que o acordo, embora não fosse o ideal, garantia uma maior harmonia nas relações com Pequim e assegurava que o Papa tinha a última palavra na nomeação de um bispo. Apesar das muitas críticas de que foi alvo, o acordo permitiu manter uma certa estabilidade entre Pequim e o Vaticano (que continuam sem relações diplomáticas) e, em tese, acabou com a existência de duas hierarquias paralelas na Igreja Católica na China.
Contudo, as relações voltaram a azedar em novembro de 2022, quando o Vaticano publicou um duro comunicado a dar conta de que tinha sido surpreendido pela nomeação de um bispo para o cargo de “bispo auxiliar de Jiangxi” — uma diocese que não é reconhecida como tal pela Santa Sé. Segundo o comunicado, a nomeação “não ocorreu em conformidade com o espírito de diálogo existente entre a parte do Vaticano e a parte chinesa e com o que está estipulado no Acordo Provisório sobre a nomeação dos bispos, de 22 de setembro de 2018”. O Vaticano acusou também as autoridades chinesas de terem exercido “longa e forte pressão” para a nomeação daquele bispo — e exigiu que “episódios semelhantes não se repitam”.
Pela primeira vez, o Vaticano acusava publicamente a China de não cumprir o infame acordo de 2018, o que voltou a criar um clima de grande tensão entre a Igreja Católica e o regime chinês — uma tensão que se prolonga até hoje.
Ao mesmo tempo que o Vaticano procura, através da viagem do cardeal Matteo Zuppi a Pequim, assegurar o apoio chinês nos esforços de paz na Ucrânia, a viagem do Papa Francisco à Mongólia servirá também como uma demonstração de presença da Igreja Católica na Ásia. Simultaneamente, o Papa Francisco anunciou em Lisboa que a próxima Jornada Mundial da Juventude vai acontecer em Seul, na Coreia do Sul, em 2027 — uma outra forma de o Papa assegurar que a Igreja Católica Romana está presente na Ásia e não pretende recuar na sua universalidade. As intervenções de Francisco na sua viagem asiática serão, por isso, para analisar com todo o cuidado sob vários ângulos.