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Nomeado para a arquidiocese de Braga em 1999, D. Jorge Ortiga é hoje o bispo católico em funções há mais tempo no país. Este ano, completou 75 anos e apresentou a renúncia ao Papa, como fazem todos os bispos ao chegar àquela idade limite. Nos próximos tempos, Braga deverá receber um novo arcebispo. Mas D. Jorge Ortiga, que tem sido um dos bispos mais interventivos da Igreja Católica portuguesa ao longo dos últimos anos, está longe de estar reformado.
Em entrevista ao programa Sob Escuta, da Rádio Observador, no paço arquiepiscopal de Braga, D. Jorge Ortiga lamenta que o debate político em Portugal seja demasiado frio, sem propostas concretas e sem conhecimento dos verdadeiros problemas dos portugueses. “Não sei até que ponto é que os nossos líderes portugueses conhecem a realidade do Portugal real, do concreto”, diz mesmo o arcebispo de Braga, salientando que a pobreza e as reformas dos idosos têm de estar no centro do debate para a próxima legislatura.
Embora prefira separar as águas entre a Igreja e a esfera política e as dicotomias entre a esquerda e a direita, D. Jorge Ortiga assegura que, “se consideram que esquerda é estar mais do lado dos pobres, dos marginais, dos excluídos, dos descartados”, então “a Igreja é de esquerda mais do que ninguém“. Mesmo que se afaste diametralmente da esquerda em muitos assuntos — como é o caso da questão da identidade de género. Sobre a polémica recente à volta do despacho que implementa a lei da identidade de género nas escolas, o arcebispo de Braga garante que todas as diferenças devem ser respeitadas, mas defende que não era necessário criar um despacho especificamente para o efeito: cada escola, se confrontada com uma determinada situação, deveria ter a autonomia para a resolver como entendesse melhor.
Sobre os abusos sexuais na Igreja Católica, meio ano depois da cimeira do Vaticano dedicada ao tema, D. Jorge Ortiga diz-se satisfeito com a forma como a instituição está a encontrar o caminho para resolver o problema. Em Braga ainda não chegaram denúncias — e na região norte ainda não houve necessidade de intervir relativamente aos bispos. E garante: “Ninguém na sociedade atual tem procurado eliminar estas situações como o Papa Francisco”.
D. Tolentino a cardeal: “Com apenas 53 anos, isto demonstra o reconhecimento das suas capacidades intelectuais, humanas, cristãs”
Começo por duas nomeações que conhecemos nesta última semana e que têm grande importância para a Igreja Católica em Portugal. Uma que foi recebida com relativa apreensão, uma outra com grande alegria. Começava por esta, a da nomeação de D. Tolentino Mendonça como cardeal. Que importância tem para a Igreja portuguesa?
É uma notícia que nos proporciona um sentimento de profunda alegria e ao mesmo tempo, também, trata-se de uma responsabilidade histórica. Ninguém ignora as qualidades do D. Tolentino Mendonça. Ele já se impôs — talvez a palavra exata seja esta mesma — no mundo artístico, do pensamento, da poesia e da ligação da Igreja, na sua pessoa, com o mundo da cultura. E foi talvez por isso mesmo que há um ano, mais dia menos dia, o Santo Padre o escolheu para lhe confiar um grande encargo em Roma, na biblioteca e no arquivo do Vaticano.
Ele há um ano ainda era padre, e num ano fica cardeal. Isto é representativo…
Por isso é que eu digo: há um ano, mais ou menos, o Papa escolheu-o para esse encargo, que já era de grande responsabilidade. Além de mais, com apenas 53 anos. Isto demonstra o reconhecimento das suas capacidades intelectuais, humanas, cristãs. Ele é não apenas nomeado, mas convidado para fazer parte deste colégio dos cardeais.
É uma pessoa próxima do pensamento do Papa Francisco. Isto integra-se também na ideia do Papa de renovar o colégio cardinalício nesse sentido?
O Papa teve oportunidade de o conhecer, uma vez que o ano passado o convidou para orientar o retiro do Papa e dos outros membros da Cúria Romana. O D. Tolentino Mendonça teve oportunidade de falar, de propor determinados temas para meditação, para reflexão e para oração. E com certeza que o Santo Padre o conheceu, e o conheceu profundamente, não apenas na vertente intelectual, mas também na linha das exigências de alguém empenhado na reforma da Igreja e consciente de que a reforma da Igreja terá de partir sobretudo de dentro.
Pode ser um sucessor do Papa Francisco?
Tudo é possível. Nós sabemos qual é o papel do colégio cardinalício. O colégio cardinalício é uma instituição que tem efetivamente muitos séculos e que tem dois grandes objetivos, ou duas grandes finalidades. Direi que em primeiro lugar é ser conselheiros. Um membro do colégio cardinalício é conselheiro do Papa. Cada um tem oportunidade de dar o seu parecer e as suas orientações, para que a Igreja se renove. Hoje, mais do que nunca, a Igreja tem um modo de ser e de agir que nós chamamos sinodal, isto é, caminhamos todos juntos. Mas uns mais próximos, outros menos próximos. Um cardeal é sempre um conselheiro, próximo e imediato, quase de confidência também, do Santo Padre, que depois tem também essa outra possibilidade de, num conclave, vir a ser eleito Papa. É uma possibilidade, com certeza, não podemos estar a fazer futurologia. É novo, não será para agora. Não sabemos também quando é que o Papa Francisco morrerá, quando é que será necessária uma nova eleição do Papa. Mas tudo, naturalmente, é possível. Só Deus é que o sabe. E aquilo que importa é que permitamos que a Igreja seja aquilo que é. Isto é, que se deixe orientar e dirigir pelo Espírito Santo. Não são os cálculos humanos que nos orientam, mas, sem dúvida nenhuma — e importa sempre sublinhar esse aspeto —, há aqui como que uma mão invisível que conduz os acontecimentos. Por isso, direi que o D. Tolentino é para nós, portugueses, um motivo de alegria, direi mesmo de orgulho para a Igreja portuguesa. Não esqueçamos que, para além do resto, são vários os cardeais que temos neste momento, e com certeza que depois Deus nos dará aquilo que achar mais conveniente.
Abusos na Igreja: “Para mim, um caso já seria demais”
Passo à outra nomeação de que lhe falava, a do novo núncio apostólico, ou embaixador da Santa Sé em Portugal. O italiano Ivo Scapolo, que vem do Chile, um país que foi muito afetado pela crise dos abusos no ano passado. Há algumas vítimas do caso do padre Karadima que dizem que o arcebispo Scapolo tinha conhecimento de que um bispo tinha presenciado alguns casos e que terá ajudado no encobrimento e na promoção desse bispo. É motivo de preocupação para Portugal ter este embaixador?
Em primeiro lugar, não será motivo para preocupação. Começo logo por essa afirmação categórica. Na verdade, nós não sabemos o que efetivamente aconteceu no Chile. Que aconteceram esses abusos, é do domínio público, é conhecido, não se pode negar, comprovado mais tarde pelo próprio Vaticano. O que é que aconteceu? Num determinado momento, parecia — assim o entendo — uma determinada situação, e ao fim e ao cabo era uma outra totalmente diferente. De tal modo que o próprio Papa terá reconhecido que foi mal informado.
E pediu desculpa.
E pediu desculpa, com certeza, numa atitude de coragem, como naturalmente este Papa já nos tem manifestado. O que aconteceu, não sei se terá sido qualquer ato de negligência do núncio apostólico. Não me parece. Porque se efetivamente tivesse acontecido algo de negligente, no sentido profundo da palavra, com certeza que o Papa lhe pediria um outro trabalho e não o colocaria novamente à frente da diplomacia, em Portugal ou em qualquer outro lugar. Porque nós sabemos que se há alguém que está empenhado na questão da luta contra os abusos sexuais, eu diria que é o Papa.
Mas os bispos portugueses pelo menos têm conhecimento de que algumas vítimas dizem que o arcebispo Scapolo tinha conhecimento dos abusos?
Será difícil, não sei. Como digo, não tenho conhecimento e por isso não posso de maneira nenhuma, não quero estar aqui a julgar, a formar qualquer tipo de juízo. Não sei se conheceria ou terá conhecido depois, e a solução veio posteriormente. O que é certo é que parece-me que não é isto que vai prejudicar o seu trabalho na nunciatura apostólica em Lisboa, com a responsabilidade que tem. Uma responsabilidade grande, particularmente na nomeação dos bispos e na presença do Papa em Portugal. E outros problemas que possam, porventura, surgir. Esta questão do abuso de menores é uma responsabilidade que está, sobretudo, confiada aos bispos.
Passam agora alguns meses desde o encontro no Vaticano, em fevereiro, que podemos dizer que foi um murro na mesa do Papa Francisco para começar a dar pistas para como a Igreja poderá resolver o problema dos abusos. Parece-lhe que hoje a crise dos abusos é um problema que já encontrou um caminho de resolução dentro da Igreja?
Sinto-me muito confortado, sendo Igreja, e naturalmente também responsável por este problema. Porque me parece que a Igreja, conduzida por este Papa Francisco, mais do que nenhuma outra instituição, tem efetuado uma luta tremenda contra estes abusos. Ninguém na sociedade atual tem procurado eliminar estas mesmas situações…
Como o Papa?
Como o Papa Francisco.
O Papa mudou a lei do Vaticano, por exemplo.
É verdade. Mas nós sabemos como a questão dos abusos de menores é uma realidade, infelizmente, na Igreja, mas também noutras instâncias. Particularmente no âmbito familiar, mas também noutros âmbitos. No âmbito desportivo, no âmbito escolar. São situações que, efetivamente, se multiplicam. Diria mais ainda: a questão da pedofilia remonta quase às origens da humanidade. Agora, graças a Deus que acordámos para encontrar uma resposta a este grave problema com efeitos difíceis de calcular, particularmente nas vítimas. Mas não vejo ninguém no mundo inteiro que tenha lutado tanto e trabalhado tanto para que efetivamente este crime hediondo vá desaparecendo.
Em Portugal, em maio deste ano, os bispos decidiram criar comissões diocesanas para receber e avaliar eventuais denúncias de abuso sexual. Podia fazer um balanço de como é que isto tem sido feito aqui em Braga?
Dando continuidade àquela cimeira inédita, e ao mesmo tempo manifestando o compromisso que a Igreja tem em eliminar toda esta situação, foi feita uma sugestão de que em cada uma das dioceses existisse uma comissão, que seria essencialmente de acompanhamento para com as vítimas. Naturalmente, para acompanhar, primeiro é preciso discernir as diferentes situações. Tanto quanto nós sabemos, o compromisso de que quisemos pessoalmente, nós bispos de Portugal, constituir essas comissões foi um compromisso que nos levaria a concretizar essas comissões durante este ano de 2019. Penso que a concretização desta medida já está muito avançada.
E aqui em Braga?
Nomeadamente em relação a Braga. A comissão praticamente existe, já no sentido de conversa com pessoas. Há apenas um pequeno pormenor que ainda necessito de aperfeiçoar. E iremos procurar, naturalmente, dentro daquilo que poderá porventura vir a ser necessário… Até hoje, direi que não fez falta.
Não houve nenhuma denúncia na diocese?
Não. Até hoje não temos essas situações. Vivemos sempre com muita atenção aos diversos problemas. Eu, desde o princípio, quando surge toda esta problemática, fui dizendo com muita naturalidade que, para mim, um caso já seria demais. Não se trata tanto de números. Mas, se porventura surgir, temos de ser realistas, temos de enfrentar, assumir a nossa própria responsabilidade, levar naturalmente os sacerdotes ou outras pessoas da Igreja a assumirem essa mesma responsabilidade, e cuidarmos das vítimas. O caminho está traçado. Como dizia atrás, nenhuma instituição como a Igreja delineou uma estratégia, muito clara, orientada para a eliminação desta mancha. As manchas, na história da Igreja, sempre existiram. A mim não me alarma. Luzes e sombras sempre existiram na Igreja.
E perante essa ideia de que um caso já é suficiente para ser um escândalo e ser necessário agir, como é que olha para esta realidade em Portugal nos últimos anos? Há casos identificados?
Continuo a pensar da mesma maneira. Para mim, um caso já é demais. Se acontecer — e poderão ter acontecido, não quero estar aqui a fazer qualquer tipo de juízo do que aconteceu ou deixou de acontecer —, aquilo que para mim é uma grande certeza é que a Igreja, como ninguém, está empenhada a trabalhar para que efetivamente todo este problema desapareça. Isto, para mim, é que é a grande certeza. A grande preocupação é esta. O resto são responsabilidades que nós teremos de ir concretizando se os problemas surgirem, que espero que não surjam. Tudo isto serviu para consciencializar, para responsabilizar, e não acredito que os problemas aconteçam. Se acontecerem, sabemos o caminho, sabemos como é que havemos de fazer. Então, iremos agir.
As novas normas do Vaticano, que foram lançadas pelo Papa Francisco na sequência desta reunião, atribuem uma maior responsabilidade aos arcebispos metropolitanos, como é o seu caso, que é responsável pela maior província eclesiástica do país, tem as nove dioceses da região norte. Atribui uma responsabilidade — pode ajudar-nos a perceber melhor — de receção e encaminhamento de denúncias que possam surgir.
Pela leitura que fiz dessas orientações, essa responsabilização do metropolita é apenas uma responsabilização se surgir algum problema relacionado com algum bispo. Nós sabemos que no mundo esse problema já aconteceu, aqui ou acolá.
O encobrimento.
O encobrimento da parte do bispo. Se efetivamente surgir um problema da parte de um bispo, o metropolita tem essa responsabilidade de iniciar todo o processo, e de levá-lo a uma conclusão. Não é nada de se intrometer nas questões de outra diocese, é pura e simplesmente a própria Igreja que, no desejo sincero que tem de acabar com esta situação, levanta também a hipótese, que poderá porventura acontecer, e que não aconteceu entre nós, de um bispo também ter caído nessa mesma situação. Então, quem terá de organizar o processo — não estamos agora aqui a descer a pormenores — é a parte do metropolita.
Isto ajuda a responsabilizar mais os bispos? Havia a ideia de que os bispos investigam os padres, mas quem investiga os bispos?
Evidentemente, e reconhecer também que se surgir alguma coisa os bispos não são postos de lado. Isso para ver o pormenor e a responsabilidade que a Igreja assumiu, da parte do Papa. Não excluir absolutamente ninguém, não ter privilégios para ninguém, não tentar encobrir absolutamente ninguém. Seja quem for. Surge um problema, ele terá que ser investigado em primeiro lugar, com todo o processo que é mais ou menos conhecido do público.
Em Portugal nunca houve nenhum caso em que um bispo fosse chamado à responsabilidade?
Até hoje, evidentemente que não. Absolutamente nada. Como digo, o facto de estar nas orientações… São orientações da parte da Santa Sé, que mostram o interesse que ela mesma tem em olhar para todos e não ter privilégios, não encobrir absolutamente ninguém. É um bispo, é um arcebispo, é um cardeal, seja quem for, como membro da Igreja, terá de sujeitar-se a todo um processo de discernimento. E, depois, também com as consequências inerentes a este processo.
O senhor arcebispo de Braga é neste momento o bispo há mais tempo em funções numa diocese. Assinala agora 20 anos à frente da diocese…
É verdade. Tenho já quase 32 anos de bispo. Onze ou doze como auxiliar e 20 como bispo de Braga, completados no dia 18 de julho deste ano.
Os debates internos: “Esta ideia de classificar uns bispos como progressistas e outros como retrógrados não me parece que seja muito justa”
E já vamos fazer um balanço destes anos aqui em Braga, mas voltando a este tema dos abusos: já são mais de três décadas em reuniões da Conferência Episcopal. Como é que, no seu entender, evoluiu em Portugal a discussão entre os bispos sobre o tema dos abusos? No início, se calhar, nem era um tema.
Nós encaramos tranquilamente essa discussão, como tantos outros problemas. O ambiente que respiramos na Conferência Episcopal é um ambiente muito fraterno. Direi que não há grupos, não há correntes…
Não há divisões?
Não há divisões. Evidentemente que há pontos de vista diferentes, e perante determinados problemas somos capazes de discutir, somos capazes de apontar os pontos de vista.
Há progressistas e conservadores em Portugal?
Não vejo muito. Às vezes a comunicação social classifica alguns mais como progressistas, outros menos. Mas não vejo… Temos ideias, ideias diferentes, mas aquilo que é fundamental é o ambiente de colaboração, de diálogo muito sincero, muito franco, que existe entre nós. Abordamos os problemas, chegamos a uma conclusão, corrigindo os documentos, votando quase sempre por unanimidade. Nem sempre acontece. Mas isto significa um clima de muita liberdade, e também de muita consciência perante a Igreja. Esta ideia de classificar uns bispos como progressistas e outros como retrógrados não me parece que seja muito justa. Há uns que falam mais, outros que falam menos, uns que têm ideias mais atualizadas, outros menos. Mas isso é inevitável, como em qualquer outro grupo. O importante é que fazemos convergir, interessamo-nos por procurar o melhor caminho, e não temos receio de o descobrir. Se há qualquer coisa com a qual não concordamos, dizemo-lo com toda a sinceridade, e mesmo que porventura não passe fica registado numa ata e andamos para a frente.
Este ano completou 75 anos de idade.
75 anos em março.
Significa que é o limite canónico, entregou a resignação.
Significa que no dia 5 de março já entreguei a minha renúncia, e agora estou à espera que o Santo Padre escolha e nomeie um arcebispo para Braga.
Mas tem a expectativa de ser reconduzido aqui na diocese mais dois anos, como às vezes acontece?
Não, não. Aquilo que acontece na Igreja é que nós pedimos e depois o Santo Padre, através da nunciatura, organiza um processo. Alguns são mais rápidos, outros menos rápidos, e demoram o tempo que demoram. Não se estipula um prazo. Pode ser um ano, podem ser dois. Da minha parte, enquanto Deus me der vida e saúde, procurarei fazer com muita alegria e muita responsabilidade o papel que o Papa me confirmou. Naturalmente que não enveredando em compromissos para o futuro, tenho consciência disso. Não estou em gestão. É naturalmente a entregar a vida como ela é, com todas as minhas capacidades e consequentemente com os meus defeitos. Mas evidentemente também não vou estar a inibir-me de fazer isto ou de fazer aquilo. É esta a linha de continuidade que todos nós temos, sempre assim fizemos e continuaremos a fazer.
A lei da identidade de género: “Seria suficiente que, onde acontecesse um caso, a direção do estabelecimento escolar resolvesse essa situação”
Há um tema que gerou grande polémica nas últimas semanas e no qual a intervenção da Igreja Católica foi essencialmente informal. Resumiu-se a algumas pessoas assumidamente ligadas à Igreja, alguns grupos religiosos, alguns artigos de opinião na imprensa. A Conferência Episcopal, discretamente, voltou a publicar no site uma carta pastoral dedicada à “ideologia de género”, publicada em 2013. Falo do despacho que regulamenta a implementação da lei da identidade de género nas escolas. Porque é que a Igreja é contra esta legislação?
Nós sabemos que a doutrina da Igreja é muito clara e alicerçada no princípio da natureza. E se nós olharmos para a natureza podemos dizer, de um modo simples, que Deus criou-nos homem e mulher. Criou-nos diferentes, e diferentes em termos de uma complementaridade orientada para a geração. Geração no sentido de gerar filhos. Isto é aquilo que nós consideramos como estruturante. Se quisermos, também, o princípio de uma antropologia que nos parece que não é apenas católica, cristã, mas que é uma antropologia que abrange as sensibilidades diferentes. Esta possibilidade, agora criada, de os indivíduos se autodeterminarem através das suas inclinações pessoais, escolhendo livremente a sua orientação sexual…
Considera que é uma escolha? Ou é uma característica inerente à pessoa?
Não sou médico, não poderei pronunciar-me. Outrora, com muita facilidade se dizia que era um desvio, outros diziam que era uma doença — porque o problema também não é de agora, não nasceu agora. Parece-me que a palavra mais exata é esta da autodeterminação, no sentido em que o indivíduo se sente no direito, separando um bocadinho a natureza da cultura. Qualquer coisa na natureza é uma coisa que está devidamente identificada naquilo que é, e a cultura é fruto de fatores diferentes. Dantes era assim, agora poderá ser feito de outra maneira. Este conflito entre natureza e cultura poderá conduzir-nos a esta situação.
Neste caso concreto, o despacho pronunciava-se essencialmente sobre a questão da identidade de género. Existem pessoas que não se identificam com o sexo com o qual nasceram, o sexo biológico. Concorda com isto, não?
As pessoas podem não se identificar, perfeitamente. Como digo, aceito. Houve um tempo em que, naturalmente, as coisas eram consideradas de outra maneira. Aceito essas situações. Dizem as estatísticas, tanto quanto eu sei pela comunicação social, que no país serão umas 200 pessoas que não se identificam com o seu próprio sexo.
Entre os alunos.
Exatamente, pensando na realidade da escola. Essa estatística vi-a nesse contexto. Ora, o que é que neste despacho suscitou alguma polémica? Não sei até que ponto seria necessário um despacho. Aliás, surgiu logo uma petição pública, e por aquilo que eu vi imediatamente atingiu cerca de 34 mil pessoas que subscreveram esta petição, dizendo que não concordavam. Quando se fala de ideologia, às vezes dá mesmo a impressão que é uma ideologia que se quer semear na criança desde pequena. Não apenas olhar para os casos concretos, mas uma ideologia que se vai naturalmente comunicando a todos, às crianças e aos adolescentes.
Mas chama “ideologia” porque considera que é uma forma de doutrinação?
Evidentemente. É isso mesmo. Quando falo em ideologia do género, vejo não apenas um pensamento, não apenas um respeito por alguém que efetivamente não se sente bem na situação, e que naturalmente terá de ser respeitado. Por exemplo, nesta situação deste despacho. Para mim, o mais natural é que surgisse uma orientação muito simples: que cada diretor de um estabelecimento escolar, se tiver diante de si um problema, ele mesmo o resolva. Aliás, estou convencido de que mesmo antes desse despacho já era isso que acontecia.
Este despacho dá-lhes um quadro legal.
Mas antes do despacho, e por aquilo que eu li, alguns diretores de estabelecimentos escolares, perante um problema que tinham, já o tinham resolvido. A questão das casas de banho já a tinham resolvido. Já tinham criado um espaço. E não foi necessário um despacho, no sentido de quase dizer — e sei que o sentido do despacho não é este — que era obrigatório ter um espaço, casas de banho…
Porque é que lhe parece que muitos grupos ligados à Igreja Católica, incluindo alguns padres, interpretaram o despacho como abrindo a possibilidade de cada aluno escolher a casa de banho a que queria ir, quando o despacho, de facto, não diz isso?
Não tive oportunidade de ler o despacho no seu conteúdo, mas por aquilo que tive oportunidade de ver, e o perigo está precisamente aqui, nisso que acabou de dizer, de, ao fim e ao cabo, criar em todas as escolas espaços e condições. Quando me parece que seria pura e simplesmente suficiente que, onde acontecesse um caso, a direção do estabelecimento escolar resolvesse essa situação. E que o devia resolver com muita naturalidade, respeitando a tal autodeterminação, a tal identidade própria de cada um, onde se sente melhor. Encontrar uma solução e resolver esse problema. Isto é que me parece que seria o mais adequado e o mais justo. E não criar esta ideia de que em todos os estabelecimentos é necessário criar condições para isso. Não me parece que seja o mais adequado.
Imagine que era diretor de uma escola católica em que um destes cerca de 200 alunos estudava. Qual seria a abordagem?
Era isso que eu faria. Parece-me que nós temos de respeitar. Hoje nós estamos num tempo em que a questão das minorias, e a realidade da inclusão — hoje fala-se muito da inclusão e nem sempre somos capazes de respeitar, de deixar-nos levar pelas exigências dessa inclusão —, e se isso mesmo acontecesse era necessário incluir essa criança, esse jovem, esse adolescente. Encontraria uma solução para que isso fosse possível, num ambiente de muita normalidade, de muita transparência, de muita serenidade, sem estar a criar problemas.
Falando de minorias, não sei se teve conhecimento de um caso recente, dos últimos meses, nos Estados Unidos. Um bispo disse a uma escola católica que estava sob a sua jurisdição que teria de despedir um professor que era assumidamente homossexual. E que, se não o despedisse, ou se renovasse o contrato com ele no ano seguinte, perderia os apoios, até monetários, feitos àquela escola. Faria isto?
Não tenho conhecimento. Evidentemente que a Igreja tem uma doutrina muito clara sobre a homossexualidade. A mesma coisa de respeito pela situação dessa diferença, mas também não concordando, dentro daquilo que nós falámos, da diferença e da complementaridade que, em termos de uma antropologia, me parece que são os dois princípios e as duas ideias que teremos de inculcar.
Mas uma escola católica pode ter um professor homossexual, mesmo que seja um professor de matemática, por exemplo?
Não lhe posso dizer, mas creio que neste momento talvez não seja… Nós temos os nossos princípios e os nossos valores, mesmo um próprio professor que quer dar aulas numa escola católica deve saber que a escola católica tem o seu estatuto, e dentro do seu estatuto tem de dar uma formação de harmonia com os valores e com a doutrina em que acredita.
Política: “Neste Governo houve, pelo menos, a boa vontade de procurar lutar para que saíssemos de uma crise”
Estamos a poucos dias do arranque da campanha eleitoral para as legislativas de 6 de outubro. Que expectativas tem para o debate político que se vai fazer, e que já tem vindo a ser feito?
Em primeiro lugar, gostaria que fosse um debate construtivo e positivo. Na maior parte das vezes, os debates são confrontos, são antagonistas que estão uns contra os outros, e nem sempre há esta preocupação por, através do diálogo, fazer propostas claras e inequívocas, propostas orientadas para o bem do país. E a partir do diálogo as diferenças enriquecem. Isto é muito importante. Às vezes parece-nos que uns têm de ganhar e outros têm de perder. E quem ganha tem que exultar com essa vitória.
É isso que lhe tem parecido o debate político recente em Portugal?
Infelizmente, acho que os nossos debates políticos são demasiado frios. Nem sempre são propostas de ideias, não são verdadeiros programas. Não sei até que ponto é que os nossos partidos são capazes de elaborar programas muito concretos e depois são capazes de o propor. Uma coisa é ter um bom programa, outra coisa é ser capaz de o propor. E uma terceira é termos pessoas capazes de ouvir, de querer conhecer esses programas.
Que problemas devem estar no centro do debate político para estas eleições e para a próxima governação?
Em primeiro lugar, parece-me que é a questão da dignidade humana. Todo e qualquer ser humano é possuidor de uma dignidade irrecusável, a que importa estar atento. Esta dignidade — falámos já de algumas minorias, são pessoas —, mas temos depois muitas outras. A questão do desenvolvimento social, a questão ainda hoje da pobreza neste nosso país. Era bom conhecer a realidade da pobreza. A pobreza que se conhece nas cidades — e nós sabemos que essa pobreza existe —, mas a pobreza também nas nossas aldeias. Esta dignidade que também está um pouco ausente deste mundo rural, onde a desertificação se impôs, onde temos alguns portugueses como que perdidos, quase abandonados, e que também merecem essa atenção e essa solicitude. São poucos, dão poucos votos, mas são portugueses e são pessoas.
E por darem poucos votos parece-lhe que os líderes políticos não têm estado atentos a esses problemas?
Não sei até que ponto é que os nossos líderes conhecem a realidade do Portugal real, do concreto. Não digo das grandes cidades, mas precisamente dessas zonas mais isoladas, onde efetivamente também há portugueses. Foi por isso que, quando me fez a pergunta, coloquei em primeiro lugar a questão da dignidade humana e a dignidade para todos. Não aceitando que haja portugueses de primeira e portugueses de segunda. São todos portugueses. E a todos devemos proporcionar melhores condições para poderem viver. Passa por muitas coisas. Pelas reformas, que hoje essas pessoas têm, a maior parte pessoas idosas, reformas que são quase ridículas. Necessitaria de se mostrar que se reconhece que essas pessoas gastaram a sua vida, trabalharam, deram o seu contributo à sua maneira, porventura numa agricultura rudimentar, mas que se sacrificaram, labutaram quotidianamente. E que merecem, nesse aspeto das reformas, ter o mínimo para uma velhice feliz. Esta questão da dignidade humana, penso que é um princípio que devia estar presente em todos os partidos, e os partidos nos seus programas deviam mostrar as suas diferenças. Diferenças que são capazes de conduzir a um respeito mais consistente dessa mesma dignidade humana.
Que avaliação faz deste Governo que agora termina o seu mandato, o Governo da chamada “geringonça”? Como é que a Igreja e os católicos olham para este Governo de esquerda que, ao que tudo indica, poderá ter um bom resultado eleitoral?
Nós inculcamos sempre o dever de votar. É um dever, que corresponde também a um direito. Ao mesmo tempo, ter consciência do voto nas eleições, depois o resultado é aquilo que é. Poderei ter as minhas convicções, poderei lutar por elas, mas depois de um ato eleitoral terei de aceitar os resultados. Aquilo que a Igreja sublinha sempre é o respeito pela autonomia. Esta separação entre a parte eclesial e a parte política. Não queremos imiscuir-nos na política. Houve um tempo em que se trazia para a ribalta pública a questão de padres na política, um caso ou outro já aconteceu, mas o que é certo é que são dois mundos diferentes, que eu considero complementares, dentro daquilo a que a Igreja chama, na sua doutrina social, o princípio da subsidiariedade. Cada um fazer a sua parte, dentro de uma colaboração que deve existir. Para mim, o que é fundamental é que sejamos capazes de respeitar.
Mas há partidos e políticas que se aproximam mais das visões da Igreja do que outros.
Com certeza. Mas, em primeiro lugar, respeitar. Em segundo lugar, nós temos o dever e a obrigação de acompanhar. E se a Igreja tem uma tarefa que nós dizemos que é de anunciar, com toda a clareza falamos do Evangelho e dos valores que esse mesmo Evangelho traz consigo, que são valores que correspondem a um tipo de sociedade que a Igreja especifica na sua doutrina social. Se nós temos de anunciar, a Igreja tem também o dever — e infelizmente nós não o fazemos sempre que devemos — de denunciar. Uma coisa é anunciar, outra coisa é denunciar. E tudo aquilo que vai contra a dignidade da pessoa humana deve ser denunciado. E a Igreja deveria ter essa coragem de, em determinados momentos, denunciar. Creio que a Igreja foi pioneira em muitas coisas. Por exemplo, na questão laboral. Na situação de alguns trabalhadores, hoje já um pouco ultrapassada, a Igreja levantou a sua voz para aqueles que não tinham voz. Recordo, por exemplo, a questão do trabalho infantil, que hoje não sei se existe ou se não existe. Foi a Igreja… A Igreja não sou eu, a Igreja não são os bispos, não são os padres. Somos todos nós. Graças a Deus, nós temos cristãos empenhados no mundo laboral, e o problema do trabalho infantil foi levantado precisamente por um grupo ligado à Igreja, que depois se desenvolveu e já atingiu os resultados que atingiu.
E que méritos encontra neste último Governo?
Acho que houve, pelo menos, a boa vontade de procurar lutar para que saíssemos de uma crise. Embora, quando se fala desta crise, penso que ela não poderá ser uma crise pura e simplesmente económica, o que às vezes parece. Acho que há demasiada preocupação pela vertente económica e às vezes não se olha para a questão dos valores, que são capazes de vir efetivamente dar o sentido da verdadeira economia. A economia é fundamental, mas existem outras realidades. O Papa diz que a economia, só por si, mata. E muitas vezes mata. Ficamos obcecados e nalguns momentos este Governo dá impressão que estamos obcecados pela questão do défice, e não olhávamos para tantas outras situações. Penso que a Igreja o foi fazendo. Às vezes temos de confessar uma certa ausência neste debate político. Trazer para a praça pública alguns assuntos e alguns problemas que sejam capazes de permitir, como comecei por dizer, a tal vida digna para todos. Numa ocasião, disse que temos partidos a mais e política a menos. Não sei se é verdade, se não é verdade. Não sei até que ponto é que os nossos partidos têm verdadeiramente esta consciência da política, a política como bem estar da pólis, da cidade, do cidadão. Depois isto vê-se no carreirismo, nas influências, às vezes na corrupção.
Dizia há pouco que a Igreja não se deve imiscuir nas questões dos partidos, da esquerda e da direita. Pedia-lhe que interpretasse a frase do sociólogo francês Dominique Wolton, que escreveu um livro de conversas com o Papa Francisco sobre filosofia. Ele diz que o Papa Francisco, “do ponto de vista da política e da sociedade, é mais de esquerda“. A Igreja, para estar próxima dos pobres, deve ser mais de esquerda?
Eu não sei o que é que se possa considerar de esquerda. Tenho uma certa dificuldade em saber o que é a esquerda e a direita. Se consideram que esquerda é estar mais do lado dos pobres, dos marginais, dos excluídos, dos descartados, creio que a Igreja é de esquerda mais do que ninguém. Quem é que cuida desses marginais? Marginais em termos de ordem social, que estão à margem da sociedade. Quem é que cuida mais deles? Estou convencido que somos nós, Igreja. A Igreja tem todo um conjunto de instituições que vivem pura e simplesmente para cuidar desses marginalizados, desses excluídos, desses descartados da sociedade. É como as crianças, é como os idosos, é como os doentes.
E, tendo em conta isso, não o preocupa ver uma Igreja que no âmbito do debate político é frequentemente associada a um conjunto de batalhas que parecem ser as de sempre? O aborto, a eutanásia, o casamento homossexual, por exemplo. Há outras batalhas que a Igreja devia abraçar em público?
Para mim, acho que há outras batalhas que a Igreja deveria abraçar, e que abraçou, só que nem sempre a comunicação social lhe dá aquele relevo que efetivamente deveria dar. Esta questão das minorias étnicas, o que acontece agora com a questão dos refugiados. Evidentemente que a Igreja não pode resolver por si esses problemas. Mas a Igreja também está a acolhê-los. O Papa Francisco está sempre alertando para essa realidade, falando do cemitério do Mediterrâneo, de outras situações, coisas gravíssimas, a que nem sempre se presta a devida atenção. E, como lhe digo, a história da Igreja, no passado e a atual, é uma história de compromisso com a parte social. Temos tantas instituições maravilhosas, dirigidas e orientadas essencialmente por voluntários. Há tanta gratuidade da parte dos católicos em dirigir essas associações, porque é pelas associações que se dá resposta aos diversos problemas.