A 3 de dezembro de 1991 inaugurava, em Palmela, uma pérola da indústria. O nome código do projeto que trouxe para Portugal um investimento da Ford e Volkswagen (mais tarde ficou apenas a Volkswagen) de 382 milhões de contos (atualizado aos dias de hoje daria qualquer coisa como 4 mil milhões de euros) foi, precisamente, Ostra, porque lá dentro estaria a pérola Autoeuropa, o maior investimento industrial em Portugal.
Uma pérola que mexe muito com a economia nacional. E que vai parar cerca de dois meses. A Autoeuropa atribui-se um peso no PIB (Produto Interno Bruto) português de 1,5%, pesando 4% nas exportações. Aliás, é o segundo maior exportador em Portugal, de acordo com dados do INE de 2022 e 2021, tendo mesmo sido o principal nos dois anos anteriores.
E, numa altura, em que as exportações estão a dar sinais de arrefecimento, a paragem da Autoeuropa pode até determinar um quarto trimestre sem crescimento (em cadeia) em Portugal. No segundo trimestre, o PIB português, face ao período de três meses anterior, estagnou e os riscos quanto aos dois últimos trimestres do ano já eram muitos, desde logo pelos ventos que sopram de alguns parceiros comerciais como a Alemanha. Agora acresce um outro fator: a Autoeuropa pode parar entre 11 de setembro e 12 de novembro devido à disrupção na produção de um dos seus fornecedores. Tudo por causa das cheias que afetaram a Eslovénia no mês de agosto.
As máquinas da Eslovénia que tão cedo não vão funcionar a todo o gás
Lama no chão, nas paredes e em cima das máquinas; ramos partidos. O cenário é caótico dentro da fábrica da KLS, em Ljubno, a casa que produz uma componente essencial aos motores dos automóveis que saem das portas da Autoeuropa. Em causa está uma peça semelhante a uma roda dentada, que é fornecida não diretamente à “pérola” de Palmela, mas aos seus fornecedores que produzem os motores. As imagens, divulgadas pelo esloveno Kanal A, mostram o rasto de destruição.
Ao site do canal, o 24ur, a empresa — cuja fábrica produz 60 mil rodas dentadas por dia — estima que as cheias de agosto tenham provocado danos de 100 milhões de euros e diz que tão cedo as máquinas não vão funcionar a 100%. Mirko Strašek, o CEO da KLS, acredita que parte da produção vai ser restabelecida em outubro, mas não de forma total. “Ainda estamos a limpar a fábrica, e não vai acabar tão cedo”, afirmou, esta semana. Dias antes, a 21 de agosto, Samo Mirnik, diretor-executivo, dava um horizonte ainda mais negativo: serão necessárias quatro a seis semanas para voltar a ligar as máquinas; mas entre seis a 12 meses até que a produção seja retomada na totalidade.
Numa tentativa de conter os danos, o grupo Volkswagen mobilizou para o terreno “equipas de apoio técnico”, segundo uma comunicação interna enviada na quinta-feira aos trabalhadores, a que o Observador teve acesso. No local, estarão várias dezenas de técnicos. A Volkswagen está, porém, também a “avaliar fontes de abastecimento alternativas” noutros países.
Autoeuropa suspende produção devido a falta de peças de fornecedor esloveno
A situação não afeta só Portugal e um porta-voz do grupo disse à Reuters que “durante setembro, é de esperar que nem todas as fábricas de componentes e de veículos consigam ser adequadamente abastecidas, pelo que é de esperar perdas de produção”.
Sem uma componente essencial para fazer andar os carros, a Autoeuropa decidiu suspender a produção e colocar trabalhadores em layoff, o regime do Código do Trabalho que permite reduzir parcial ou totalmente os horários e receber um apoio da Segurança Social para o pagamento dos salários. Na comunicação aos trabalhadores, a empresa informa que prevê que o regime vigor de 11 de setembro a 12 de novembro, durante nove semanas, um período que pode ser menor ou pior conforme o evoluir da situação. “A indicação que temos é que as nove semanas são o pior cenário“, indica ao Observador Rogério Nogueira, coordenador da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa.
A empresa não referiu quantos trabalhadores serão abrangidos nem em que modalidade iria colocá-los — se no regime de redução do horário de trabalho, se no de suspensão (em que, na prática, há uma redução total do horário de trabalho). A comissão de trabalhadores também diz não ter esta informação e remete decisões para a reunião de segunda-feira com a empresa.
No layoff, os trabalhadores recebem apenas dois terços do salário (com um mínimo de 760 euros, o salário mínimo nacional, até um máximo de 2.280), sendo 70% desse valor assegurado pela Segurança Social e os restantes 30% pela empresa. A Autoeuropa poderia, porém, se o entendesse, garantir aos trabalhadores o restante terço do salário, de forma a que ninguém perdesse rendimento durante o período de suspensão. Foi, aliás, isso que fez em 2020, no início da pandemia, quando recorreu ao layoff simplificado. E é isso que os trabalhadores querem ver desta vez também.
Rogério Nogueira diz que “nem nos piores pesadelos” acredita num cenário em que os trabalhadores apenas levam para casa dois terços do ordenado durante dois meses. “Vamos dialogar conforme é apanágio da Comissão de Trabalhadores e da própria empresas. Estou convencido que iremos chegar a um entendimento, para que os trabalhadores, que não são culpados desta situação, não saiam a perder”, afirma, convencido de que a empresa tem condições para pagar os salários na totalidade. Na comunicação interna aos trabalhadores, a Autoeuropa garante que está a trabalhar com a comissão de trabalhadores “na melhor solução de minimização do impacto da suspensão da produção para todos os nossos colaboradores”.
Os dois dias anteriores ao layoff (9 e 10 de setembro) serão também de paragem, mas vão ser descontados como “down days parciais” e “de acordo com as necessidades de produção de cada uma das áreas”, informa a Autoeuropa. Este mecanismo dos “down days“, ou dias não trabalhados, foi acordado em 2005 entre empresa e comissão de trabalhadores, em troca de não haver aumentos salariais. A 1 de janeiro de cada ano, os trabalhadores adquirem 22 dias de “down days” que podem ser usados em situações de paragem de produção, nas quais a atividade pára e o salário fica garantido.
Este ano, já foram usados alguns dias perante a falta de componentes. Em 2022, por exemplo, foram gozados, em média, e de forma coletiva, 18 dias não trabalhados devido à escassez de semicondutores.
Rescisões de temporários em cima da mesa
Neste cenário, as rescisões de trabalhadores temporários ou precários estão em cima da mesa, mas o universo de abrangidos ainda estava a ser delineado esta sexta-feira, para apresentar à comissão de trabalhadores na segunda-feira. O Jornal Económico escreve, na edição desta sexta-feira, que em causa estarão 100 trabalhadores, um número que a empresa não confirma ao Observador.
Rogério Nogueira também indica que esse dado não lhe foi apresentado oficialmente. “Neste momento, não temos garantia de nada, nem assumimos esse tipo de situação. Iremos falar na segunda-feira com a empresa e só depois é que se irá assumir alguma coisa. É algo que tem de ser discutido com a Comissão de Trabalhadores. Certamente que vamos encontrar uma solução para essas pessoas”, frisa, ao Observador.
No balanço de 2022, a Autoeuropa refere que tinha, na altura 5.043 trabalhadores (na informação mais atualizada não chegam aos 5 mil), dos quais 115 estavam colocados através de agências de trabalho temporário.
Não é só a Autoeropa a sair afetada. Dela dependem várias empresas que a fornecem e que também antecipam paragens em setembro e outubro. Ao Observador, Daniel Bernardino, coordenador das comissões de trabalhadores do Parque Industrial da Autoeuropa (ou seja, dos fornecedores da Autoeuropa), refere que do universo de 19 empresas — que no total têm cerca de seis mil a sete mil pessoas — do parque, apenas cerca de “quatro ou cinco” não estão totalmente dependentes da Autoeuropa e, portanto, deverão conseguir manter-se, pelo menos algum tempo, sem terem de recorrer aos down days ou ao layoff.
É o caso da empresa em que o próprio trabalha, a Faurecia, com mais de 400 trabalhadores, que conseguirá aguentar pelo menos cinco semanas sem nenhum desses mecanismos. “Encontrou-se, dentro da diversidade de clientes que temos, várias funções”, incluindo a formação de trabalhadores. Mas se se atingirem as cinco semanas e a Autoeuropa continuar parada, “teremos de sentar-nos com a nossa direção e tentar encontrar um plano B”, afirma.
Daniel Bernardino também acredita que neste universo de empresas possa haver rescisões, “sobretudo de contratos precários ou a termo incerto”. “O que dizemos às administrações é que tenham em atenção que no regime de layoff simplificado, usado durante a pandemia, estes trabalhadores ficaram protegidos. Porque não haveriam de ficar agora também?”, questiona.
O layoff que está previsto no Código do Trabalho, porém, não oferece essa proteção: durante os 30 ou 60 dias seguintes ao fim do layoff, o empregador não pode cessar o contrato de trabalho dos trabalhadores abrangidos pelo regime. Há três exceções a esta proibição: quando o empregador cessa uma comissão de serviço, um contrato a termo ou despede por facto imputável ao trabalhador.
E quais os passos agora? A empresa tem de comunicar, por escrito, à comissão de trabalhadores ou, na sua falta, à comissão intersindical ou comissões sindicais da empresa representativas dos trabalhadores a abranger a intenção de reduzir ou suspender o trabalho, de forma fundamentada e incluindo o número de trabalhadores a abranger. A comissão de trabalhadores diz ainda não saber o número de abrangidos.
Cinco dias após essa comunicação as partes negoceiam para a obtenção de um acordo. É elaborada uma ata com as matérias acordadas e as matérias em que há discordância. Só depois é que a empresa comunica, por escrito, a cada trabalhador a modalidade de layoff que decidiu aplicar, mencionando expressamente o fundamento e as datas de início e fim da medida.
Paragem prejudica produção que podia já não atingir as metas traçadas
O ano de 2019 trouxe à Autoeuropa um recorde de produção. Saíram da fábrica de Palmela mais de 250 mil carros. Bater esse recorde este ano é agora uma miragem. Mas no relatório de gestão que acompanha as contas de 2022 da Autoeuropa, a que o Observador teve acesso, os valores já apontavam para um valor abaixo desses números e, mesmo nesse caso, a empresa já alertava para a eventualidade de não os conseguir alcançar.
Para o ano de 2023, a previsão da produção é de aproximadamente 220 mil carros, abaixo do nível alcançado em 2022. A redução deve-se principalmente à continuação da escassez de componentes e aos indícios de recessão ou fraco crescimento das principais economias europeias, que são o principal destino dos veículos produzidos.”
Em 2022, a produção, segundo números que a empresa tem no seu site, atingiu os 230 mil veículos. Ainda assim é indicado, nesse relatório, que para os próximos quatro anos a previsão de produção é de cerca de 900 mil unidades. A evolução nos anos que vão chegar está, ainda assim, dependente dos investimentos que estão já a ser efetuados para a nova geração do T-Roc, o carro produzido em Palmela. A Autoeuropa indicou ao Público que a partir de 2025 será feito na fábrica um automóvel híbrido, o que vai implicar um investimento de 600 milhões.
No relatório de gestão referente a 2022, a Autoeuropa indica que “continua a preparar o lançamento da nova geração do mesmo modelo [T-Roc], com início de produção previsto para dezembro de 2025. Estão previstos investimentos significativos em 2023 e nos próximos anos para suportar este último lançamento, assim como o programa de descarbonização da fábrica”.
A quebra de produção na Autoeuropa já aconteceu em anos anteriores. Primeiro com a pandemia e em 2022 também com a falta de componentes, o que levou a empresa em janeiro deste ano, já com a situação mais regularizada, a produzir mais veículos para parque (ficam estacionados). No final do primeiro mês do ano, havia 6.756 unidades em parque, que em março já tinham saído todos. “Tal como já sucedeu em 2022 e embora implique um incremento de custos, a produção de veículos para parque é uma solução viável para fazer face à escassez de peças, dentro dos limites estabelecidos pela casa-mãe e desde que o retrabalho não coloque em risco a qualidade do produto final”.
Não foi referido se neste caso da disrupção do fornecimento da empresa eslovena a Autoeuropa tem intenção de recuperar a produção perdida no resto do ano ou arranque de 2024.
Pedro Braz Teixeira, do Fórum para a Competitividade, em declarações ao Observador, aponta precisamente para a incógnita sobre a eventual recuperação da produção perdida para estimar o impacto da paragem na economia portuguesa. “É preciso saber se vai ter recuperação parcial ainda no quarto trimestre ou eventualmente no próximo ano“, afirma. Isto para dizer que seria mais grave se a paragem acontecesse por falta de procura, que seria “uma perda não recuperável, mas tudo indica que há procura e acredito que vão tentar recuperar”. O que, no entanto, poderá acontecer só no próximo ano, com efeito nos números deste ano, em particular nas exportações.
Exportações nacionais já não estão famosas
As vendas da Autoeuropa seguem praticamente todas para exportação. Das 230 mil unidades produzidas em 2022 um total de 99,2% foram para o mercado externo, segundo informações da própria empresa. Parar dois meses a produção do T-Roc vai significar vender menos para fora. A Autoeuropa tem um peso de 4% nas exportações, isto se tivermos em conta os números de 2022.
Já este ano, de acordo com dados do INE, as exportações automóveis (considerando todos os veículos automóveis, reboques e semi-reboques) representam 12,6% (até junho) do total das vendas de bens para o exterior, o que significa que um espirro na Autoeuropa pode significar uma constipação nas exportações nacionais e num momento em que precisam de fôlego. No segundo trimestre do ano, as exportações tiveram uma queda, em cadeia, de 0,6%. Em termos homólogos cresceram, mas a um ritmo baixo. No segundo trimestre deste ano as exportações de bens cresceram 0,8% face ao mesmo período do ano passado. Um comportamento anémico que pode ficar comprometido com a paragem na Autoeuropa.
“Dois meses [de paragem] sobre 12 é muito relevante“, reforça o economista Abel Mateus, em declarações ao Observador. Pode mesmo significar, se não for recuperado, um impacto de cerca de 15% nas vendas ao exterior da Autoeuropa. E um impacto de 1-2% nas exportações globais de bens do país.
Com este desacelerar das exportações, que pode também acontecer aos serviços, o crescimento do quarto trimestre de Portugal pode ficar, mesmo, comprometido, já que o consumo privado, que deu o impulso que a economia precisava no segundo trimestre, deverá ter um comportamento diferente à medida que se esgotam as poupanças que ainda estavam nas carteiras das famílias.
Abel Mateus acrescenta, ainda, alguma incerteza à volta da Autoeuropa, se não por esta paragem motivada por um fornecedor, pelo menos por não ter o vislumbre total do seu futuro, nomeadamente com a eletrificação do setor automóvel. Para já sabe-se que em Palmela será produzido um híbrido.
Mas o impacto da paragem de dois meses na Autoeuropa não se resume à fábrica da Volkswagen. É que à sua volta foi montado um parque de fornecedores que garantem componentes à entidade. Alguns trabalham em exclusivo para a Autoeuropa e, sendo operadores, em alguns casos, pequenos ficar sem um dos principais clientes, ainda que de forma temporária, pode implicar problemas de tesouraria e liquidez. “A grande questão é com todo o cluster e ecossistema que vive à volta da Autoeuropa“, salienta o economista Pedro Brinca, apontando para o facto de poderem ser situações “mais frágeis”.
O chamado cluster automóvel pesa, hoje, cerca de 3% do PIB nacional, tendo, em 2019, segundo dados da Deloitte, gerado um volume de negócios de 15.900 milhões de euros e uma riqueza (VAB), direta e indireta, de 6.400 milhões de euros.
A importância da Autoeuropa é espelhada pelas visitas que a fábrica de Palmela vai recebendo de governantes. Aliás, foi mesmo aí que, em 2020, António Costa acabaria por lançar a recandidatura presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa.
Um ano depois voltavam, juntos, à Autoeuropa para anunciar o investimento de milhões, no momento em que a companhia apagava 30 velas. Marcelo acabaria por dizer, nessa ocasião, que era testemunha da forma empenhada como o primeiro-ministro tem apoiado a Autoeuropa”.
Para Abel Mateus é preciso mais do que isso. São precisas mais duas ou três ‘autoeuropas’, mas “não vejo este Governo minimamente preocupado com isso”.