Os clientes que peçam ao banco uma renegociação do crédito à habitação, de forma a mitigar o impacto da subida brusca das prestações, serão “marcados” como clientes com maior risco se, no processo de análise do caso, o banco determinar que aquela renegociação ocorre por “dificuldades financeiras”. A regulação europeia obriga a que os bancos estejam sempre atentos a sinais de degradação da capacidade financeira dos clientes e, caso haja uma renegociação nessa base, tal reconhecimento penaliza o capital das instituições – o que é algo que não será “esquecido” depois, caso seja preciso um novo crédito no futuro. E mesmo noutras instituições a marca ficará, “porque os outros bancos não são parvos”, diz um banqueiro ao Observador.
O Banco de Portugal veio há poucos dias esclarecer que não há qualquer “marcação específica” dos clientes que iniciem processos de renegociação de crédito ao abrigo da nova legislação apresentada pelo Governo em novembro. Mas essa é uma referência apenas à eventual marcação na Central de Responsabilidades de Crédito (CRC), a plataforma que é gerida pelo Banco de Portugal e pode ser consultada por todos os bancos (e pelas próprias pessoas) para saber informação sobre que créditos cada um tem. Quando se fala em “marcação”, porém, a história não termina aí.
Como o próprio Banco de Portugal reconhece, as renegociações de crédito que forem feitas ao abrigo da nova legislação serão integradas no Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), um regime que foi criado precisamente para evitar que situações de dificuldade financeira se transformem em casos de incumprimento. É por essa razão, por estar em causa uma legislação para pessoas que estejam a sentir dificuldades financeiras (e em possível risco de incumprimento), que banqueiros como Paulo Macedo, presidente da Caixa Geral de Depósitos, disseram logo em novembro que todos os créditos que forem renegociados ao abrigo deste regime serão considerados créditos em stage 2.
Essa classificação está ligada à forma como os bancos contabilizam o risco dos empréstimos que fizeram aos clientes e, também, é determinante para calcular os níveis de imparidades (provisões) e rácios de capital regulatório que os bancos têm de cumprir. Nas regras da Autoridade Bancária Europeia (EBA, na sigla anglo-saxónica), um crédito estar em stage 1 significa que não se deteta qualquer deterioração da condição financeira do devedor, stage 2 denota alguma degradação da capacidade de pagar e stage 3 refere-se a um incumprimento ou reestruturação já consumados.
Banca ameaça clientes. Renegociar prestação pode limitar acesso a novos créditos
Ao Observador, Nicola De Caro, vice-presidente sénior da agência de rating DBRS Morningstar, diz ter a “expectativa de que os bancos portugueses deem mais detalhes sobre as classificações e os impactos financeiros nas apresentações de resultados anuais, que se avizinham”. Porém, “de um modo geral, é previsível que vejamos algumas reclassificações passarem de stage 1 para stage 2, o que irá significar um agravamento do custo de crédito”, afirma a DBRS.
Para a agência de rating, um dos fatores mitigantes, nesta matéria, é que uma parte dos depósitos acumulados na pandemia sirva para dar “algum alívio” na amortização de dívida. Além disso, Nicola De Caro destaca as “melhorias” conseguidas pelo setor bancário português na redução do endividamento e do volume de créditos improdutivos que está nos balanços ao longo dos últimos anos.
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O Observador questionou fonte oficial da EBA para tentar obter mais esclarecimentos sobre a forma como os créditos renegociados terão impacto sobre o capital dos bancos, mas até ao momento não obteve resposta. O certo é que, ao passo que nas moratórias da Covid-19 a EBA criou um enquadramento específico para isentar os bancos de “marcação” (regulatória), neste momento não existe qualquer enquadramento europeu semelhante, para a situação atual.
“Classificação do crédito como reestruturado não é automática”, diz Banco de Portugal
Indo além do tema da CRC, que foi a matéria central do esclarecimento do Banco de Portugal, o supervisor tem no seu site uma página de perguntas e respostas onde salienta que nem sempre um crédito objeto de alterações contratuais (renegociação) tem de ser classificado como reestruturado em termos regulatórios.
“As exposições não devem ser tratadas como reestruturadas se o devedor não estiver a atravessar dificuldades financeiras“, diz o Banco de Portugal, esclarecendo melhor esta dupla-negativa com a nota de que “a classificação como reestruturado não é automática, dependendo sempre de uma análise casuística”.
Ora, embora não seja algo “automático”, o Banco de Portugal reconhece que essa classificação (como “reestruturação”) deve acontecer se o devedor estiver a atravessar dificuldades financeiras – que é aquilo para que serve o regime PARI. Foi precisamente para balizar situações de pressão sobre os orçamentos familiares que o Governo definiu alguns patamares percentuais que devem levar a uma renegociação dos créditos (como o patamar dos 36% da taxa de esforço).
O mesmo raciocínio está plasmado num parecer recentemente emitido pelo Banco de Portugal sobre uma proposta de lei apresentada pelo partido Livre, que queria expandir a legislação para que, por exemplo, os bancos fossem obrigados a disponibilizar taxa fixa no crédito à habitação. Num comentário entregue no Parlamento sobre as propostas do Livre, fazendo uma análise geral, o Banco de Portugal diz que “qualquer pedido de renegociação não isenta, do ponto de vista da gestão adequada do risco de crédito, as instituições de efetuarem análises casuísticas para aferir a possível alteração do perfil de risco do mutuário resultante de dificuldades financeiras“.
No mesmo parecer, o Banco de Portugal deixa claro que, “dessa análise, poderá resultar, em particular nas situações em que o devedor se depara com dificuldades para respeitar os seus compromissos financeiros, a marcação do crédito como reestruturado”. Essa marcação pode não ser feita na CRC, porque a CRC apenas tem duas categorias (“renegociação regular” ou “renegociação por incumprimento”), mas tem impacto a nível regulatório.
“Houve várias indicações de que os bancos estavam a dizer aos clientes que os créditos iam ser marcados como reestruturados na CRC. E isso não é verdade, de facto, por isso é que o Banco de Portugal decidiu – e bem – fazer este esclarecimento“, diz João Santos Carvalho, sócio de Direito Bancário e Financeiro da SRS Legal. Porém, acrescenta o especialista, “o esclarecimento do Banco de Portugal quanto à CRC não é completo, porque não refere o tema dos requisitos prudenciais e do capital dos bancos”.
É certo, diz o advogado, que “esta é uma matéria que, em primeira linha, interessa aos bancos e não tanto aos clientes”. “Mas, perante a instituição, a entrada em PARI, obviamente, poderá ter uma consequência na análise do risco de crédito que é feita daquele cliente“, afirma João Santos Carvalho.
Banco pode ter de registar incumprimento se renegociação levar a perda significativa
A mera passagem de stage 1 para stage 2 tem implicações para a situação prudencial do banco. Como explicou ao Observador um especialista em reporte de risco bancário, quando um crédito está em stage 1, o risco de incumprimento é calculado apenas para os 12 meses seguintes (o que significa um ponderador de risco muito baixo) mas ao passar para stage 2 o banco é imediatamente obrigado a aplicar naquele crédito um risco de incumprimento ao longo de toda a vida do crédito, que pode contemplar várias décadas – o impacto no capital é drasticamente agravado.
Mas o cenário pode ser ainda pior para os bancos, nessa perspetiva, porque as regras da EBA obrigam o banco a reportar aos reguladores que houve uma reestruturação por incumprimento quando a renegociação efetuada resultar numa perda superior a 1% em relação ao valor que o banco esperava receber daquele crédito.
Outro advogado especialista nesta área, António Payan Martins, sócio de Direito Bancário e Financeiro da CMS, explica que há fatores de “ponderação” que aqui entram em jogo. “Não resulta do enquadramento legal em vigor, e dependerá da ponderação das instituições e do guidance específico do Banco de Portugal, saber se a solicitação de renegociação pelo mutuário será por só si o trigger [gatilho] da referida apreciação casuística ou terão se ser tidos em consideração outros elementos em concreto, como por exemplo ocorrer incumprimento nas prestações de capital e juros”.
Mas Payan Martins salienta que, “em caso de reestruturação, aplicam-se as disposições relevantes, designadamente o artigo 178.º do Capital Requirements Regulation (CRR), de acordo com as instruções da EBA, pelo que em caso de os bancos terem perdas superiores a 1% não deixarão de estar obrigadas a marcar o crédito reestruturado como em incumprimento”.
É o próprio Banco de Portugal que explica isto mesmo, numa passagem do parecer sobre a proposta do Livre. “Uma eventual reestruturação não afasta o reconhecimento do crédito como estando em incumprimento ao abrigo do artigo 178.º do CRR, o qual poderá verificar-se, por exemplo, nas situações em que a reestruturação se traduza numa perda económica para a instituição superior a 1%, apurada nos termos das Orientações da EBA (EBA/GL/2016/07)”.
Por outras palavras, um cliente que atinja os patamares de risco definidos pelo Governo e, nesse contexto, passe a manifestar dificuldade financeira em pagar as prestações devido à subida das taxas de juro, os bancos terão de “marcar” internamente o crédito e o cliente (por se ter comprovado uma situação financeira degradada). Porém, além disso, o regulador europeu (EBA) determinou uma forma concreta de calcular o valor do crédito antes e depois da reestruturação – e se a diferença de valor para o banco for superior a 1%, então o banco tem de reconhecer um incumprimento (e não apenas uma mera reestruturação).
“Marcado” num banco, cliente vai a outro? “Os bancos não são parvos…”
Que impacto é que isso terá, na prática, para os clientes? Num caso em que o cliente volta a precisar de um crédito alguns anos mais tarde, as implicações diretas dessa “marcação” podem não ser as mais decisivas, diz João Santos Carvalho, da SRS Legal: “Não é a reestruturação por si só que faz com que possa haver uma análise mais negativa sobre o devedor. Mas os factos que este alega, ou seja, o facto de a taxa de esforço ter subido para 40% ou 45%, por exemplo. Factos como estes são suscetíveis de serem tidos em conta na análise de risco de crédito do cliente”.
Por outro lado, um banqueiro contactado pelo Observador descreve esta questão de forma sucinta: “a marca fica sempre no histórico do banco sobre o seu cliente, como alguém que assinou um contrato de financiamento e, numa situação em que as taxas de juro subiram para níveis dentro do normal e previsível, teve de reestruturar” e, dessa forma, impôs uma situação prejudicial para o banco (do ponto de vista regulatório e do seu capital).
Mas, não ficando visível na CRC nada além de uma “renegociação regular”, até que ponto pode o cliente contornar a “marcação” no seu banco dirigindo-se, simplesmente, a outra instituição financeira? “Claro que pode, mas o outro banco também vai ver aquela renegociação na CRC [mesmo que dita regular] e vai perguntar o que foi aquilo. Os bancos não são parvos…“