“Olá, meu amigo. Só para ti. Já falamos“. A mensagem simpática, escrita pelo funcionário de um banco num e-mail dirigido a alguém de um banco rival, vinha acompanhada de vários anexos: folhas de Excel com spreads cobrados a clientes e análises de risco. Aquela era informação sensível – confidencial ou de difícil acesso público – que, aos olhos da Autoridade da Concorrência, é prova de que houve uma “prática concertada” que terá falseado o mercado de crédito em Portugal ao longo de mais de uma década (2002-2013).
O caso arrasta-se há anos na Justiça, esteve “parado” dois anos à espera de um parecer europeu, mas, nesta sexta-feira, 20 de setembro, deverá ser lida a sentença no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), em Santarém. A deliberação, marcada para as 14h00, será lida por uma juíza, Mariana Gomes Machado, que já considerou “impressivo” o teor e o conteúdo dos e-mails e contactos telefónicos que foram partilhados por funcionários de bancos rivais. Não é certo, porém, que haja condenação ou que as coimas aplicadas pela Autoridade da Concorrência (225 milhões de euros, no total) não sejam reduzidas.
Foi isso que os bancos pediram nas alegações finais que foram feitas nesta quarta-feira, no mesmo tribunal – coimas “meramente simbólicas” ou apenas “admoestação”. A argumentação de um dos bancos é que aquelas informações passadas entre bancos rivais se concentravam no mercado de crédito à habitação (e não o crédito às empresas e ao consumo) e aconteceram apenas ao longo de três anos (e não 12 anos, como alega a Autoridade da Concorrência), duas formas de tentar baixar o valor da eventual coima caso esta venha a ser confirmada pelo tribunal.
Quem são os bancos que a AdC multou em 2019?
↓ Mostrar
↑ Esconder
Em 2019, a Autoridade da Concorrência (AdC) aplicou uma coima global de 225 milhões de euros a 14 bancos pela prática concertada de troca de informação sensível nos créditos (habitação, consumo e a empresas) entre 2002 e 2013.
Neste processo, que teve origem num pedido de clemência apresentado em 2013 pelo Barclays, a AdC condenou a CGD ao pagamento de 82 milhões de euros, o Banco Comercial Português (BCP) de 60 milhões, o Santander Totta de 35,65 milhões, o BPI em 30 milhões, o Montepio em 13 milhões (coima reduzida em metade por ter aderido ao pedido de clemência), o BBVA em 2,5 milhões, o BES em 700.000 euros, o Banco BIC em 500.000 euros, o Deutsche Bank (cuja infração prescreveu em outubro de 2020) e a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo em 350.000 euros cada um, a Union de Créditos Inmobiliarios em 150.000 e o Banif (que não recorreu) em mil euros.
O Abanca, também visado no processo, viu a infração prescrever ainda na fase administrativa e o Barclays, que apresentou o pedido de clemência, viu suspensa a coima de oito milhões de euros que lhe foi aplicada.
O caso envolve 12 bancos, mas um dos quais (o Barclays) foi dispensado da coima por ter denunciado o conluio. São, por isso, 11 as instituições financeiras que contestam em tribunal a condenação que lhes foi aplicada.
Por outro lado, os bancos, de um modo geral, sempre disseram em sua defesa que o contexto do mercado de crédito naqueles anos era de grande concorrência e que, se efetivamente aquelas informações tivessem permitido falsear o mercado, então haveria evidências de que os clientes acabaram, mesmo, por pagar mais pelos créditos.
Nem a Autoridade da Concorrência nem o Ministério Público conseguiram provar isso, defendem os bancos – aliás, o advogado do Santander chegou a afirmar que a realidade prática era a inversa e que, na altura, o Banco de Portugal “andava louco” de preocupação com a baixa rentabilidade das instituições financeiras nacionais. Para este banco, o caso não tem “grande relevância real” e as trocas de informações eram “esporádicas” e, sobretudo, feitas por “antigos colegas que queriam poupar trabalho uns aos outros”, evitando terem de ir a simuladores e outros ‘sites’ buscar aqueles dados.
Porém, a acusação defende que não é necessário provar que os clientes foram prejudicados – basta provar uma restrição por “objeto” (ou seja, fazer algo com a intenção de prejudicar um qualquer valor, neste caso o valor da concorrência) e não é preciso provar que houve uma infração “por efeito”. E foi para esclarecer este ponto crucial que a Justiça portuguesa decidiu consultar o Tribunal de Justiça da União Europeia.
Tribunal de Justiça da UE invalidou um dos principais argumentos dos bancos
Em abril de 2022, a juíza Mariana Gomes Machado deu os factos como provados e considerou que os bancos trocaram entre si informações sobre preços e taxas (atuais e futuras) que não eram do domínio público ou que eram de difícil acesso e sistematização. Também ficou provado que os bancos partilhavam valores mensais de produção e que esta troca de informação, ocorrida num mercado relativamente concentrado, “facilitou o alinhamento” e permitiu o “estabelecimento de uma coordenação informal entre as instituições bancárias”.
Contudo, nessa deliberação de 2022, a juíza decidiu suspender a instância e remeter um pedido ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) para que este se pronunciasse sobre se os factos constituem restrição de concorrência por objeto, por não ter ficado provado se a troca de informação teve ou não efeito sobre os consumidores.
Em finais de julho, mais de dois anos depois, veio a resposta. O TJUE admitiu que a troca de informações mantida pelos bancos durante mais de uma década “pode constituir uma restrição à concorrência por objeto” e que “basta que essa troca constitua uma forma de coordenação que, pela sua própria natureza, seja necessariamente (…) prejudicial ao correto e normal funcionamento da concorrência”.
Segundo o TJUE, para que um mercado funcione em condições normais, “os operadores têm de determinar de forma autónoma a política que tencionam seguir e têm de permanecer na incerteza quanto aos comportamentos futuros de outros participantes”.
Após esta interpretação do tribunal europeu, cabe agora ao Tribunal da Concorrência decidir se os factos são ou não uma “restrição por objeto” – geralmente os tribunais nacionais seguem o entendimento do tribunal europeu – e decidir as coimas a aplicar aos factos provados (se se mantêm ou são revistos os valores da Autoridade da Concorrência).
Antes das alegações finais, porém, cinco bancos (CGD, BCP, Santander, BPI e BBVA) apresentaram pareceres jurídicos que sustentam que os prazos de prescrição no processo de contraordenação já foram ultrapassados. Em particular, os bancos acham que deve contar para a contagem dos prazos o tempo (mais de dois anos) em que se esteve “suspenso”, à espera da opinião do Tribunal de Justiça da União Europeia, que só chegou no final de julho (de 2024).
Para Paulo Vieira, o procurador do Ministério Público que está a trabalhar neste caso, os pareceres chegaram “na 25.ª hora”, o que é “pouco compreensível” e dá pouco tempo para que possam ser rebatidos. Ainda assim, “a prescrição ainda não ocorreu”, defendeu o procurador.
O advogado da CGD pediu a palavra para dizer que, no caso do banco público, “o objetivo não é evitar contraditório” mas acautelar que esses pareceres podem ser juntos ao processo mesmo que em fase de recurso da sentença de primeira instância e disse que o requerimento deste banco não é só sobre prescrições mas também sobre questões de direito.
Após troca de ideias com advogados dos bancos, a juíza decidiu admitir os pareceres e que esses farão parte de eventuais recursos e que aí haverá lugar ao contraditório. Seja qual for a decisão do tribunal, as partes ainda podem recorrer para instâncias superiores (Tribunal da Relação, Supremo Tribunal de Justiça e, até, Tribunal Constitucional).
Além de coima da AdC, bancos também enfrentam ações populares
Além dos bancos, na quarta-feira também fizeram alegações a Autoridade da Concorrência e o Ministério Público. O regulador defendeu que a opinião do TJUE foi “cristalina” e transmitida de forma “assertiva”, pelo que o tribunal tem condições para confirmar as multas.
O Ministério Público considerou que este processo demonstrou que a partilha de informação entre os bancos teve efeitos no mercado “com clientes prejudicados”, ao pagarem preços no crédito mais elevados, e que, ao mesmo tempo, a partilha de informação permitiu aos bancos “dar créditos com maior segurança” por conhecerem a posição competitiva dos concorrentes.
Banca duplica lucros com menos 5.600 trabalhadores do que tinha em 2019
O procurador aludiu aos “ótimos resultados” dos bancos, desde logo em 2023, para defender que na generalidade as multas da Autoridade da Concorrência são adequadas e devem ser confirmadas pelo tribunal. “Esperamos que este processo venha a contribuir para o reforço da reputação do setor bancário no seu todo, através da visibilidade pública das suas condutas passadas, do papel fundamental da intervenção dos reguladores e do sistema judiciário, das condutas corretivas, entretanto, implementadas”, disse o procurador Paulo Vieira.
Em paralelo, a justiça portuguesa aceitou há poucos meses a quinta de cinco ações populares interpostas por uma associação de defesa do consumidor europeia, a Ius Omnibus, que reclama mais de 5.000 milhões de euros aos bancos, acusando-os de terem lesado milhões de clientes nos juros dos créditos. Os bancos inicialmente em causa eram 14, mas como Banif e BES foram objeto de medidas de resolução, a ação é sobre 12 bancos.
Ainda assim, o valor exigido inclui danos feitos por BES e Banif porque considera a Ius que a responsabilidade dos bancos é solidária. Os bancos em causa são Abanca, BBVA, BPI, BCP, Banco Santander Totta, Banif, Barclays Bank (cuja denúncia deu origem à investigação da AdC), Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, Montepio Geral, Deutsche Bank e Unión de Crédito Inmobiliarios. Os bancos dizem, em sua defesa, que os dados partilhados eram públicos, acessíveis a qualquer um e, até, poderão ter beneficiado os clientes, em vez de os prejudicar.