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Jaime Marta Soares não conseguiu ficar imune ao cartaz que encontrou à beira de uma estrada. “Miranda do Corvo, capital nacional da chanfana.” Parou o carro, indignado: “Minha nossa Senhora… de Fátima”. Não sabia se estava a evocar o nome da santa ou da presidente da Câmara de Miranda do Corvo. Marta Soares tinha fundado a Confraria da Chanfana na terra de onde é natural e cujos destinos liderou durante 37 anos. Ainda por cima, era o seu prato favorito. Não conseguiu engolir aquilo. “Temos de mandar fazer um outdoor. Mas tem de ser gigante”, pensou. Restava uma dúvida: “Se pusermos capital europeia da chanfana, ela pode pôr capital mundial”. Então, e porque “a rivalidade move montanhas”, tomou a decisão de deixar Fátima sem margem para superá-lo. Ficou: “Vila Nova de Poiares, capital universal da chanfana”.
Marta Soares quis pôr aquela terra no mapa, até pela gastronomia. Vila Nova de Poiares era um dos seus centros de poder mas longe de ser o único. Em todos, foi polémico e zero consensual. Ele sabe-o. Parece até gostar. Não foge às palavras sobre si mesmo. Sabe-se um homem duro, às vezes “não é flor que se cheire”, como confessou nas mais de quatro horas de conversa com o Observador. É assim em todos os ofícios e são muitos. Alguns ainda mantém, como o de presidente da Liga dos Bombeiros. O dia começa necessariamente cedo, antes das 7h da manhã, quando começa a ficar “em pulgas porque o trabalho reclama”. E acaba tarde. Mais tarde ainda desde há cinco meses, quando estalou a guerra aberta que culminou com a destituição de Bruno de Carvalho da presidência do Sporting. Este período está prestes a acabar, com as eleições marcadas para este sábado. Marta Soares está ansioso: “Só com uma paixão louca pelo clube se aguenta o que tenho passado. Agora só quero que este pesadelo acabe”.
De jogador refilão a árbitro disciplinador
O tempo era o dos campos pelados, das botas que tinham travessas em vez de pitons, dos calções que pareciam saias de senhora. De Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano; isso mesmo, os Cinco Violinos. Jaime Carlos Marta Soares era um miúdo de 11 anos que corria os estádios da região de Coimbra, de mão dada com o pai, para ver o Sporting jogar. Às vezes saltava-lhe para as cavalitas para ver melhor. Vir a Lisboa era um luxo a que poucas vezes a família se podia permitir. Mas quando o clube se deslocava à zona centro era matemático. “Aquilo era um regalo. Com Peyroteo e companhia, eles ganhavam sempre. Era uma loucura, um deslumbramento”, conta Marta Soares, por entre as recordações dessa paixão partilhada com os pais, fanáticos pelo clube, ou “sportinguistas daqueles mesmo tiffosi“, como lhes chama.
Assim ficou ligado ao Sporting. E assim o clube passou para os quatro filhos. Também para os netos. Quer dizer, houve dois que escaparam à doutrina familiar. “Ficaram-me atravessados, porque passaram para o inimigo”, conta Marta Soares. “O pai é um lampião dos diabos e raptou-me os miúdos. Distraí-me, pronto. Mas os que são do Sporting compensam: são mais fortes, mais avantajados e os outros têm que baixar um pouco a bola”, dispara, entre gargalhadas.
Com tanta paixão, estava mesmo a ver-se que Marta Soares haveria de, também ele, dar uns chutos na bola. Posição? Guarda-redes — também dentro das quatro linhas gostava de apagar fogos. Vestiu a camisola do Poiares, onde tudo começou, do Condeixa e do Lousanense, que lhe permitiu subir dos distritais à segunda divisão — o mais longe a que chegou. Bem, o mais longe mesmo foram os 20 dias que passou à experiência no Sporting, por intermédio de um conhecido de Vila Nova de Poiares que era cunhado do ‘magriço’ Carvalho, guarda-redes dos leões.
“Era um sonho estar ali. Pensava que estava noutro mundo, noutra galáxia, nem acreditava. Lembro-me da defesa, com o Lino, o Lúcio, o Hilário… O Lúcio tinha um pontapé… eu habituado aos chutos a dez quilómetros à hora em Poiares. Ali eles apareciam-me a 100 à hora!“. Apesar do deslumbramento, os tempos em Alvalade não foram fáceis. Damas começava a despontar entre os postes leoninos e era preciso muito pedigree para rivalizar com um dos maiores de sempre. Além disso, a formação não tinha sido feita a preceito — trabalhar com o pai era a prioridade, os estudos vinham nos intervalos e os treinos acabavam em último na lista. “Nunca pude treinar como queria por causa dos negócios. Depois, cheguei lá na transição dos 17 para os 18 anos, já não era júnior, e nessa idade tinha que ser muito bom para ficar. Com o Damas a aparecer então, não foi fácil ter lugar“.
Na carreira de futebolista, que terminou aos 32 anos, já Marta Soares era presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares, as memórias atropelam-se umas às outras: desde as boleias dadas aos companheiros de equipa no seu carro, que era sempre o último modelo BMW — afinal, “trabalhava muito e lá ia juntando umas verbazitas” — às amizades que se formaram no balneário, em especial com um roupeiro do Lousanense, que lhe deixava sempre os calções mais branquinhos do que os outros jogadores.
Mas há uma memória em particular. Marta Soares orgulha-se de nunca ter sido expulso nos muitos anos de futebol, “embora fosse refilão, mas um refilão simpático”, diz. “Não estou para aqui a gabar-me, porque, como costumo dizer, não sou flor que se cheire. Mas talvez pela minha irreverência, sentido de humor e facilidade de fazer amigos criava um bom ambiente”. Foi preciso sair do futebol para ser expulso pela primeira (e única) vez. Confuso?
Tudo aconteceu quatro anos depois de Marta Soares ter deixado os relvados. O Poiares ficou sem guarda-redes, um castigado e os outros lesionados e o presidente pediu-lhe que voltasse a calçar as chuteiras e dar uma perninha pelo antigo clube. Marta Soares fez um treino para desenferrujar e abraçou o desafio. Mas havia um problema: já não tinha força para colocar a bola em jogo. Por isso, era um defesa central que vinha dar o pontapé de baliza — curiosamente, “era o meu presidente na Assembleia Municipal”, conta Marta Soares. “Pus a bola na marca, ele vinha para chutar e, de repente, o árbitro veio direito a mim e mostrou-me o amarelo. Eu virei-me para ele e perguntei: ‘Oh senhor árbitro, o que é que está a fazer? Mas está-me a dar amarelo porquê?’ E ele pimba: deu-me o vermelho. Nunca tinha sido expulso na minha vida. Estava a fazer aquilo desde o início do jogo, não era para queimar tempo. As lágrimas caíam-me pela cara abaixo como se eu fosse um miúdo”, recorda. O episódio teve desenvolvimentos dias depois. “Uma pessoa disse-me que, em Coimbra, num grupo de amigos no café, estava lá o árbitro a gabar-se de ter expulsado o presidente da Câmara. Não era o guarda-redes do Poiares! O grande orgulho dele era ter expulsado o presidente da Câmara“.
A par da carreira de futebolista, ainda jogou andebol — chegava a treinar quatro horas por dia, somando as duas modalidades. Começou nos campeonatos militares que aconteciam entre os vários quartéis e acabou mesmo por saltar para a primeira divisão nacional com a camisola do Salatinas — “equipa formada pelos dissidentes da Académica e que era a mais representativa da cidade e do distrito”, explica. Pelo meio, ainda se dedicou ao basquetebol durante quatro anos, enquanto cumpriu o serviço militar.
Muitos anos mais tarde, Marta Soares resolveu voltar ao futebol, mas agora do outro lado — do lado da arbitragem. “Aí a coisa era muito diferente”, recorda. “Se os árbitros eram mais ou menos condescendentes comigo, eu não era com eles porque sabia as manhas todas do futebol. Era um bocado duro, disciplinador”. Esta carreira não durou mais de três anos, até Marta Soares pensar que “não tinha vida para aquilo porque um dia ainda levava pancada num campo qualquer”.
Houve um episódio que o deixou a oensar sobre o assunto. “Um dia, estava eu a apitar um jogo em Coimbra e dei um cartão amarelo aos 35 minutos a um jogador importante, um ponta de lança craque do distrito. A seis minutos do fim, fez uma falta à maneira dele — pensava que era o maior do mundo — e eu mostrei-lhe o segundo amarelo e rua. Quando estava com o cartão vermelho no ar, ele passou perto de mim, roubou-me o cartão e fugiu para o balneário. Fui atrás dele, agarrei-o e ele teve de me dar o cartão“, relata Marta Soares. Podia ser o fim da história, mas não. Houve invasão de campo. “Corri para o meio campo e a GNR protegeu-me. Aí vieram à tona as amizades que fiz, porque havia indivíduos do clube da casa à pancada uns com os outros, uns contra mim e outros a meu favor. Por eu ter jogado naqueles clubes, eles criaram amizade por mim. Quando fui para os balneários, os jogadores das duas equipas fizeram alas para eu passar, para que ninguém me tocasse”, acrescenta. Mas o episódio teve um impacto devastador. “Estava agora sujeito a uma coisa destas… com o meu feitio estava disposto a apanhar uma carga de porrada que nunca mais me endireitava. Então cheguei a casa e disse à minha mulher: ‘Arruma esta roupinha toda, as insígnias, tudo, que aqui o teu Jaiminho nunca mais vai apitar um jogo de futebol’. E assim foi”.
Da criança que dava ordens ao comandante que se sentia “um bombeiro de terceira”
O pai que o levava ao estádio pela mão era o mesmo que lhe dava “galhetas” quando chegava a casa, com marcas de cinza na cara a contar-lhe com entusiasmo as aventuras nos fogos. Aos 11 anos, Jaime Marta Soares já comandava. Hoje reconhece que era um “puto arrebitado”. Aos primeiros sinais de fumo, ia atrás (ou à frente) dos bombeiros profissionais para lhes ensinar os melhores caminhos. “Não vão por aí…”, recorda, imitando o tom paternalista com que o dizia . E eles — “repito: bombeiros profissionais” — não iam. Nascido ali, Jaime conhecia bem os terrenos e não largava os bombeiros. Chegou a ficar cercado pelo fogo mas fugia “com tanta pressa” que não chegava a ficar em perigo.
Os sustos que foi apanhando ditaram-lhe parte da carreira e deixaram-lhe o “bichinho” (que passou para todos os filhos e alguns netos). Respeitava as chamas ao ponto de se sentir “atraído” por elas. “O fogo era um adversário mas eu gosto de lutar contra coisas difíceis”, confessa. Quando foi criado um corpo de bombeiros na vila, inscreveu-se logo. Tinha 19 anos mas já alguma experiência e, por isso, foram-lhe atribuídas responsabilidades: “Eu é que fazia a chamada das presenças”, explica. Ainda hoje não sabe se foi por mérito ou porque viam “alguma coisa” nele, mas depressa passou a ajudante de comando e ganhou “logo muito respeito pelos colegas”. Era “quase como um segundo comandante” porque só existia um.
A 2 de julho de 1976, torna-se primeiro comandante. Os habitantes comentavam: “Olha, aquele gajo é presidente e comandante”. Mas Marta Soares respondia: “Costumava dizer que o presidente só não fazia asneiras porque antes de tomar qualquer decisão falava com o comandante dos bombeiros”, recorda, a rir-se, mas garante que se sentia mesmo diferente no “relacionamento com os bombeiros enquanto comandante ou presidente.” Luís Pires de Sousa, que viria a substituir Jaime, recorda uma “pessoa muito exigente” mas uma “referência” e um “mestre de muitos bombeiros”. Trabalhou com ele vários anos e desenvolveu uma “relação quase familiar”. “Tão depressa ralhava com os bombeiros na horas mais complicadas, como a seguir despia a camisa e dava a mão a quem precisava”, conta ao Observador, recordando o ritmo acelerado que tinha e ao qual “todos se tinham de adaptar”.
Marta Soares era comandante, tornou-se presidente da Federação dos Bombeiros de Coimbra e comandante da zona operacional da Lousã, mas ainda se sentia “um bombeiro de terceira”. “Às vezes desaparecia e ninguém sabia de mim durante uma semana. Vinham-me buscar para os incêndios e eu ficava lá. Dormia em cima de pedras ou debaixo dos carros”, lembra.
Muitas vezes, vinham buscá-lo de helicóptero. Aproveitava para ver o incêndio lá de cima e dar indicações cá para baixo. Com tantas horas de voo, acabaria por tirar o brevet de piloto. Já o tem há 20 anos. “Quando mete uma ideia na cabeça, tem de a concretizar”, diz fonte familiar ao Observador. Jaime tornou-se até presidente da Assembleia Geral do Aeroclube de Coimbra. “Às vezes, ao fim de semana, ia lá, pegava num avião e voava. Era uma questão de paz de espírito. Mas aproveitava e via lá de cima as obras que tinha de fazer cá em baixo”, conta a mesma fonte. Agora, já não consegue realizar as horas necessárias por ano e, por isso já não voa.
A militância no PSD (que começou graças a Guterres)
Jaime Marta Soares tinha 31 anos quando foi eleito pela primeira vez para um cargo político: a Comissão Administrativa de Vila Nova de Poiares. A eleição aconteceu num jardim municipal e através de uma votação feita com o braço no ar. “Lembro-me muito bem desse dia”, confessou ao Observador. “Só há quatro ou cinco anos é que tive acesso às fotografias e admito que quando as vi fiquei emocionado… Mais de mil pessoas a escolherem 13 cidadãos para os representarem. Naquela altura, teve um significado emocional grande. Eu era um desses 13”.
A Comissão Administrativa servia para ajudar a criar aquilo que viria a tornar-se a nova organização autárquica daquela localidade. Quando os cidadãos eleitos foram ao Governo Civil de Coimbra oficializar a composição do organismo encontraram uma resposta que não esperavam: eram demasiados. No limite, a comissão podia ter três membros. “Voltámos para Poiares e reunimo-nos em minha casa”, recorda Jaime Marta Soares. “Montámos lá uma urna e votámos. Eu fui um dos escolhidos, mais uma vez”. Ainda não o sabia, mas estava assim iniciado um longo percurso à frente dos destinos do município que só terminaria 39 anos depois, em 2013.
O interesse pela política já vinha de longe. O seu pai era dos poucos poiarenses que recebia o jornal “A República” em casa durante o Estado Novo, um fator que despertou em Jaime Marta Soares uma curiosidade pela atividade política desde cedo. Quando tinha 7 anos ajudou a pintar paredes com frases de apoio à candidatura de Norton de Matos às eleições presidenciais de 1949. “Fi-lo às cavalitas de um homem enorme, com quase dois metros!”, conta animado. Anos mais tarde, viria a apoiar a candidatura de Humberto Delgado, nas presidenciais de 1958.
Começou a imiscuir-se em encontros de cariz mais político em Coimbra e conheceu personalidades como António Arnaut, Manuel Alegre ou Fernando Valle, todos históricos socialistas. Sempre se sentiu “mais de centro-esquerda” e foi por isso com naturalidade que acabou por tornar-se militante do MDP/CDE, um partido de oposição ao Estado Novo, quando tinha 25 anos. Apesar desta deriva mais socialista, viria a ser no PSD de Sá Carneiro que se formaria como político e autarca. Quando se candidatou à presidência da Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares nas primeiras eleições autárquicas da democracia, em 1976, concorreu como independente apoiado pelos sociais-democratas.
O crescimento de Marta Soares foi sendo feito por fora. Em 1979 foi eleito pelo PSD, ainda como independente, deputado à Assembleia da República. Apesar de se rever “na social-democracia” e de ter “um certo fascínio por Sá Carneiro”, o autarca teve alguma relutância em aderir ao partido. “Sempre me senti de centro-esquerda”, repete. “Até pelos meios em que comecei a relacionar-me com outros políticos, que eram todos de esquerda”.
Demorou a encontrar o partido ideal. Para Marta Soares havia uma única certeza: “Nunca seria militante do PS”. Aquilo que ia conhecendo do partido não o atraía, nem sequer a ideologia. “Os meus ideais até estão mais próximo dos do PCP do que dos do PS”, confessa. Afastada essa possibilidade, restava o PPD/PSD de Sá Carneiro. Mas foi em conversa com um histórico socialista que se apercebeu de que teria de integrar o PSD como militante.
Num dos primeiros dias no hemiciclo, quando “estava tranquilamente sentado” no seu assento, “que ficava na zona central”, foi abordado por António Guterres, que se sentou ao seu lado. “Olha lá, porque é que foste para o PSD?”, ter-lhe-á perguntado o então deputado socialista. “Tem melhores pessoas”, respondeu com humor antes de acrescentar: “Mas ainda não entrei, sou independente”. Segundo o relato de Jaime Marta Soares, o agora secretário-geral da ONU tentou convencê-lo a ingressar no PS. “Utilizou ótimos argumentos”, relembra. “Eram tão bons que, assim que acabou a sessão, dirigi-me ao meu grupo parlamentar e disse que queria ser militante do PSD, antes que me arrependesse!”
Antes, já tinha ajudado a fundar a Associação Nacional de Municípios (ANMP), desempenhando diversas funções neste organismo. O cargo mais elevado que ocupou foi o de vice-presidente, numa altura em que a presidência pertencia aos socialistas.
A vida de autarca também se fez pela ANMP, onde se destacou sempre pela sua antiguidade ou “experiência” – designação que prefere utilizar. “Foram 39 anos à frente de Poiares”. Além dos 37 anos de presidência daquela autarquia, Jaime Marta Soares contabiliza os dois anos em que liderou a Comissão Administrativa. “Tiveram de fazer uma lei para correr comigo”, analisa com ironia. “Modéstia à parte, se não houvesse limitação de mandatos, acho que ainda lá estaria”.
A chanfana, o “jaimito” (que virou “poiarito”), o jornal e a rádio. Ou como “se constrói uma terra”
“Há alturas em que todos os dias come chanfana”. Marta Soares vem de famílias ligadas ao comércio das carnes e das peles e “sabe bem escolher a carne que é melhor”, diz fonte familiar. É até frequente trazer um tupperware com chanfana para comer em Lisboa. Mas não foi o gosto pelo prato que o moveu a criar a Confraria da Chanfana, mas sim a necessidade de “pôr Vila Nova de Poiares no mapa”. Teve a ideia e, em 1999, nasceu a confraria da qual é presidente da Assembleia Geral ou “juiz”, como deve ser chamado.
Embora esteja menos presente nos eventos “porque a vida não lhe permite”, ainda hoje, “quando está no restaurante, é ele que serve as pessoas e vai às mesas perguntar se está tudo bem”, conta Madalena Carrito, presidente da direção da confraria. “Sem a farda ele é amigo do seu amigo, gosta da farra, é um bom garfo, gosta de conviver”, conta o comandante Luís Pires de Sousa. Mesmo depois de ter deixado o comando dos bombeiros, todos os anos, depois da visita pascal convida “toda a gente que está no quartel para ir à casa dele, para estar ali e rever os tempos de comandante”, diz ao Observador.
“Ele tem muito orgulho da terra, dos costumes”, acrescenta Madalena. Por isso, não se ficou pela chanfana. A certa altura, Marta Soares decidiu criar “um produto turístico que, de alguma forma, atraísse pessoas”, conta o próprio. “Vamos inventar um pastel. Não é tradicional? Quero lá saber!”, conta ao Observador. Marta Soares escolheu os ingredientes. No final, os chefs sugeriram: “Podia chamar-se jaimito”. Mas Jaime negou: “Eu sei lá quem é que me vai trincar”. Ficou ‘poiarito’.
Marta Soares admite que sempre teve “muitas ideias, algumas estapafúrdias”. “Tive a sorte de encontrar as pessoas certas. E pronto, assim se constrói uma terra”, acrescenta. Mas não se ficou pela gastronomia. “Tu és capaz de fazer tanta coisa e não fazes um jornal”, dizia-lhe a mãe, agora com 94 anos. O filho foi “capaz”: fundou o jornal “O Poiarense” e ainda a Rádio Santo André. O jornalismo era uma paixão e chegou a ter Carteira Profissional de Jornalista. Na altura, escreveu um editorial dedicado à mãe, intitulado “Para a minha mãe”. Aos 60 anos, inscreveu-se num curso de jornalismo, mas os horários das aulas não lhe permitiam ir. “Convidam-no para tudo”, conta fonte familiar. Até para dirigir bandas filarmónicas, embora não toque nenhum instrumento. “Nunca tive jeito para a música. A naftalina matou-me o bicho do ouvido”, disse, referindo-se ao produto que o pai tinha de pôr nas peles. Fez teatro em criança. Uma “paixão” e o mais longe que foi no mundo artístico.
Tem um currículo de dez páginas. Só tira férias à força. Tem a “consciência tranquila”, diz, e só leva consigo um arrependimento: reconhece que era um “indivíduo ausente”. Nunca irá esquecer a resposta que o filho lhe deu, quando Marta Soares o estava a repreender: “Por que é que está a ralhar comigo, papá? Eu conheci-o quando tinha 13 anos e até aos 25 anos nunca mais o vi”. “Nunca, por muitos anos que viva, consigo arranjar palavras para pedir perdão à minha família”, confessa.
O mau-humor e “a ciência da política”
Enquanto dinossauro autárquico, foram muitas as guerras que comprou. O próprio reconhece que não é uma pessoa com quem seja fácil discutir. “Se falam bem comigo respondo pacientemente, mas se me falam com o tom mais elevado não dou a outra face: respondo na mesma moeda”. Esta é a lógica que utiliza tanto para o debate político como para as relações mais pessoais.
Segundo relatou ao Observador um ex-dirigente do PSD que privou várias vezes com Jaime Marta Soares enquanto autarca, “ele era uma pessoa que fervia em pouca água”. Era capaz “de falar tão mal aos seus adversários políticos como aos funcionários” da Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares. “Apesar de ser muito trabalhador, isso devo reconhecer, tinha um grande mau-humor”, resume o social-democrata que pediu para não ser identificado.
Uma crítica que o ex-autarca aceita. “É verdade que muitas vezes ralhava com os meus funcionários, mas eles sabiam como eu era. Ao meio-dia ralhava mas à uma já estava a almoçar com eles”, admite. Com os adversários, as estratégias eram outras, embora o mau feitio também fosse marca muitas vezes evidente nas suas intervenções. “Se era mais temperamental nessas discussões? Sim, mas ninguém é perfeito.”
Prova disso é um episódio que aconteceu quando Vila Nova de Poiares recebeu a sua primeira ambulância. Era uma necessidade que o próprio Jaime Marta Soares já tinha identificado mas que nunca tinha chegado a suprir. Quem o fez foi Ferreira Duarte, um dos seus adversários locais e sobre quem estavam a recair todos os louros. Quando a viatura chegou, o então autarca juntou-se à receção e cumprimentou efusivamente o seu opositor, responsável pela conquista. “Até o meu pai me veio perguntar se estava bom da cabeça por estar a abraçar um rival”, revela ao recordar o acontecimento. Mas a verdadeira resposta estava reservada para mais tarde. E foi servida bem gelada.
Quando os populares decidiram organizar uma romaria ao quartel dos bombeiros, cujo comandante era o próprio Presidente da Câmara, para ver a ambulância foram-lhes concedidas todas as autorizações formais para o efeito. Não seria por isso de esperar que o cenário que encontraram quando chegaram ao local fosse aquele com que se depararam: o veículo não estava lá.
O próprio Ferreira Duarte foi apanhado de surpresa. Os presentes começaram a indagar-se sobre o que teria acontecido à ambulância. A explicação chegou ao fim de alguns minutos de dúvida. “Foi fazer a rodagem”, respondeu um dos bombeiros depois de várias questões. “Fazer a rodagem? Mas por ordem de quem?”, terá perguntado um dos populares indignados. “Do comandante Jaime Marta Soares”. A visita tinha assim sido boicotada pelo autarca.
“Cada um usa as armas que tem, a política é isto, é uma ciência”, reage Jaime Marta Soares, divertido. “É a ciência da política”, resume. Trata-se de um episódio que mostra bem a forma como lidava com situações mais adversas ou nas quais não era o protagonista. “Ele gostava muito de ser o centro das atenções e daquele poder autárquico”, resume um deputado social-democrata.
Confrontado com esta análise, o ex-autarca reconhece o fundamento da crítica. “Gostava de estar em cima do acontecimento, vivia obcecado por tentar dar sempre uma coisa de novo todos os dias a Poiares e aos seus habitantes”. Além de que, reconhece, “o poder é muito difícil de largar”. Mas, em sua defesa, apresenta o argumento da legitimidade entregue pelas urnas. “Fui sempre a votos e ganhei sempre com maioria absoluta”. “Cheguei a dar algumas tareias”, orgulha-se.
“Costumava dizer que eu era o único munícipe. Os poiarenses eram todos presidentes da Câmara, eu era o munícipe que os servia e executava as suas vontades”, sintetiza. Um discurso que, mais adequado ou mais afastado da realidade, serviu para o colocar à frente dos destinos de Vila Nova de Poiares ao longo de quase quatro décadas, uma viagem que terminou por imposição de lei mas que o catapultou para palcos maiores, de âmbito nacional. Um lugar conquistado entre mau humor, trabalho e “a ciência da política”.
“Não é um homem de engulipar”. Três mandatos a defender “o maior exército português”
Uma “estrutura elitista, cheia de generais, mas sem tropas”. Jaime Marta Soares tinha acabado de subir ao púlpito no congresso no Peso da Régua, onde tinha sido eleito, e não perdeu tempo para criticar a Autoridade Nacional da Proteção Civil (ANPC). O agora presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses não é um homem de ficar calado ou, como prefere dizer Luís Pires de Sousa: “Não é um homem de engulipar”.
Mostrou-o dois anos depois, em novembro de 2013, numa cerimónia de balanço do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF). “Senhora ministra, onde está o cadastro da floresta? O que tem feito nos últimos meses em matéria de prevenção?”, questionou Marta Soares, acrescentando: “Lamento só agora poder endereçar-lhe estas questões mas não encontrei ninguém das florestas durante todo o verão”. Dirigia-se a Assunção Cristas, a ministra da Agricultura, sentada na primeira fila. Os bombeiros presentes aplaudiram — aplausos que podem muito bem traduzir a satisfação pelo fim da intervenção. Marta Soares é conhecido pelos longos discursos mesmo quando lhe pedem para ser rápido.
“Tem o coração ao pé da boca”, como considera Luís Pires de Sousa, mas nada impediu que fosse eleito para o segundo mandato, com 66% dos votos, ainda que no meio de alguma polémica. Duarte Caldeira, que tinha sido presidente da Liga dos Bombeiros antes de Marta Soares, até tinha apoiado a sua primeira candidatura, mas aparecia agora a concorrer contra ele, noutra lista. “Sempre fui de uma lealdade [a Caldeira]. Fiquei magoado”, confessou Jaime Marta Soares ao Observador. Duarte Caldeira garantiu ao Observador que foi tudo uma questão de discordância nos projetos que um e outro defendiam.
É um defensor dos bombeiros — “hei-de ser até ao final da vida”, garante. Exaltou sempre o papel daquele que considera ser “o maior exército português” nos incêndios. No de Pedrógão Grande, que fez mais de 60 mortos, e reconhecendo tratar-se de “uma situação absolutamente incontrolável, de uma violência absolutamente anormal”, o presidente elogiou os seus bombeiros que “rapidamente agiram com competência, com profissionalismo” e pediu que se investigasse, recusando as falhas no sistema de comunicações SIRESP como justificação.
Nos incêndios de outubro, o número total de mortos em fogos em 2017 já ultrapassava a centena. Jaime Marta Soares defendeu que havia “uma onda de organização terrorista” e já só pedia: “Assumam de uma vez por todas que há um problema grave em Portugal”. Quando no final desse mês o presidente da ANPC, Joaquim Leitão, se demitiu, Jaime Marta Soares foi sincero: “Esta é uma atitude de dignidade”.
No final de outubro, conquistou o terceiro mandato como presidente da Liga, com 77,5% dos votos. No discurso, foi aplaudido de pé: “Porque é que os bombeiros, que são aqueles que dão a vida no teatro de operações, têm de ser comandados por alguém que não tem conhecimento para os poder comandar? Basta. Chega”, disse. Em abril deste ano, foi mais longe e acusou o comandante nacional da ANPC, António Paixão, de ser “prepotente e incompetente” e “uma pessoa em que não se pode confiar para o lugar em que está”. “É a primeira vez que o comandante nacional da ANPC não é oriundo dos bombeiros. É um elemento da GNR”, justificou.
Três mandatos depois, há quem considere que nem todos estão satisfeito. Entre os bombeiros “não é de forma alguma uma figura consensual”, conta Duarte Caldeira, acrescentando logo: “Não creio que isso o preocupe”. Mas Jaime é uma “pessoa coerente e não anda permanentemente ao sabor dos ventos a mudar as suas posturas”, assegura, reconhecendo que muitas vezes se “coloca em causa questões de honestidade e seriedade”, quando se fala de Marta Soares, uma “força da natureza”.
Não é de estranhar que também ninguém se entenda quanto ao futuro de Marta Soares na Liga dos Bombeiros. Duarte Caldeira defende que o comandante deve “abrir espaço a uma renovação”. Eduardo Correia, membro do conselho executivo da Liga quer continuar a vê-lo em funções: “Ainda ninguém anda com o comandante sentado numa cadeira de rodas”. Marta Soares admite que no dia em que deixar a presidência da Liga ainda vai acabar a licenciatura em Direito, que começou aos 60 anos.
De conselheiro a carrasco de Bruno de Carvalho
O reencontro de Marta Soares com o futebol dá-se pela via do dirigismo. Primeiro, como presidente da Assembleia Geral da Associação Desportiva de Poiares, cargo que desempenhou mais tarde na Académica de Coimbra, onde foi ainda vice-presidente. Mas o maior desafio chegaria com as cores do Sporting. Começou discreto, como membro do Conselho Leonino em dois mandatos — o último dos quais o de Godinho Lopes (Marta Soares foi eleito em 2011 pela lista de Dias Ferreira). Saltou para a ribalta dois anos depois quando integrou, como candidato a presidente da Mesa da Assembleia Geral, a lista de Bruno de Carvalho, que viria a sair vencedora das eleições de março de 2013 — o ano em que abandonou a política.
O primeiro contacto com aquele que viria a ser presidente do clube deu-se por intermédio do amigo Artur Torres Pereira (atualmente líder da Comissão de Gestão). E Jaime Marta Soares lembra-se bem do que o cativou em Bruno de Carvalho. “Era um jovem atrevido, inteligente, audacioso, apaixonado pelo Sporting. Eu queria aquele projeto para o clube. Foi uma coisa maravilhosa, foi como entrar pela porta grande dentro dos conceitos que tinha do desporto e de um clube da dimensão do Sporting. Por isso nos demos tão bem no primeiro mandato”, recorda Marta Soares ao Observador.
As declarações públicas da época mostram bem as núpcias entre os dois responsáveis leoninos — e a crença de Marta Soares na vida longa do novo presidente à frente do clube. “Acredito que Bruno de Carvalho vai manter-se muitos anos à frente do Sporting para consolidar o seu projeto, com estratégias que evitem que todos os anos tenhamos de mudar as coisas. É um homem que veio para ficar”, disse então em entrevista. No bolso, tinha ainda outra certeza: “Bruno de Carvalho fará com que o Sporting faça parte da pacificação do futebol português”.
Enquanto o futuro se cozinhava noutro sentido, Marta Soares ia aconselhando Bruno de Carvalho — segundo garante ao Observador. “Temos uma grande diferença de idades, mas mantinha um diálogo correto, às vezes conselheiro, quando era possível, porque muitas vezes não se deixava aconselhar. Durante muito tempo, consegui um entendimento usando a minha idade. Até utilizava uma expressão que utilizo muitas vezes: ‘Olhe que o diabo não sabe muito por ser diabo, é por ser velho’“, conta. Os conselhos iam no sentido de travar as crescentes intervenções do presidente, cada vez mais ativo nas redes sociais e agressivo no diálogo com as outras instituições — e com os próprios sócios, alguns deles apelidados de ‘sportingados’. “Aconselhava-o a não semear ventos para não colher tempestades. Disse-lhe muitas vezes que ele tinha o Sporting na mão e o próprio país e que isso lhe trazia responsabilidades acrescidas. Isto são palavras de um amigo, de alguém que leva a lealdade ao extremo”, considera.
Eduarda Proença de Carvalho, vice de Marta Soares na Mesa da Assembleia Geral, conta a mesma história. “Teve sempre um papel pedagógico. O Bruno [de Carvalho] muitas vezes exaltava-se, porque não aceitava bem as opiniões. O Jaime tentava sempre pôr sempre água na fervura aos impulsos do Bruno, mesmo nas Assembleias Gerais“, relata. Um traço de personalidade que quase parece contraditório com a dureza que a advogada lhe encontra. “O Jaime é um homem duro, com posições muito próprias. Sempre disponível para ouvir os outros, mas só se eles aportarem alguma coisa de bom, senão a cabeça dele manda mais”.
Dos sinais de alerta às turras em praça pública
Também a paciência é apontada por Eduarda Proença de Carvalho como uma das virtudes de Marta Soares. Mas essa paciência, relata a advogada, foi-se esvaziando gradualmente para Bruno de Carvalho. E recorda um episódio: a Assembleia Geral de fevereiro deste ano, em que o então presidente leonino submeteu à aprovação dos sócios uma alteração de estatutos e um novo regulamento disciplinar. Com uma nuance: se as medidas não fossem aprovadas com 75% dos votos, Bruno de Carvalho bateria com a porta. Acabou por vencer em toda a linha mas por semear nova polémica no discurso final — em que apelou ao boicote à comunicação social.
“Lembro-me tão bem… Quando o Bruno disse aos sportinguistas para só lerem o Jornal Sporting e verem a Sporting TV, o Jaime baixou os braços e falou baixinho para mim: ‘Já viu? Isto até estava a correr bem… para quê isto? Mais uma guerra que ele acabou de abrir num dia que era de festa'”, recorda ao Observador.
Eram os definitivos sinais de alerta para uma rutura que estava presa por dois meses. Em abril, veio o post em que Bruno de Carvalho teceu duras críticas ao plantel depois da derrota com o Atlético de Madrid, o plantel respondeu-lhe na mesma moeda um dia depois, numa publicação partilhada por grande parte dos jogadores — com os capitães Rui Patrício e William à cabeça. Eduardo Correia, membro do Conselho Executivo da Liga dos Bombeiros, estava com Marta Soares nesse dia. “Ele fez uma gestão que dificilmente alguém conseguiria fazer. Estávamos a fechar a diretiva financeira quando rebentou a pólvora no Sporting. Assisti a cores à gestão dos dois assuntos ao mesmo tempo: havia dois telefones e os dois não pararam de tocar o dia inteiro. Um com assuntos dos bombeiros e o outro com assuntos do Sporting”, relata.
No dia seguinte, na receção ao Paços de Ferreira, Bruno de Carvalho vê pela primeira vez lenços brancos em Alvalade, embalados por um coro ensurdecedor de assobios. Dois dias depois, Marta Soares faz estalar a polémica: exige a demissão do presidente, ameaçando convocar os sócios para o destituir caso não deixasse o cargo pelo próprio pé. “Com Bruno de Carvalho não há paz no Sporting”, disse na altura à TSF considerando estarem “esgotadas as hipóteses de manutenção da atual presidência”, uma vez que “os sócios deram o sinal e disseram aquilo que querem”.
A guerra entre os dois estava oficialmente aberta. Ainda houve uma brecha de paz quando ambos festejaram juntos o título nacional de andebol no Pavilhão João Rocha, mas tudo se adensou com as agressões em Alcochete. “Foi nesse dia que eu percebi, e penso que o Jaime também, que era preciso fazer alguma coisa. Não poderíamos mais permitir aquilo, pela estabilidade do clube”, explica Eduarda Proença de Carvalho. “Houve vários sinais de alerta, mas há uma coisa a que os estatutos obrigam, que é a solidariedade entre os órgãos sociais. O Jaime nunca quebrou essa solidariedade e só deixou de estar com Bruno de Carvalho a seguir ao post de Madrid, porque percebeu que havia poucas hipóteses de manter o clube com o presidente naquele estado”, acrescenta.
Entre demissões em bloco na Mesa da Assembleia Geral e no Conselho Fiscal e Disciplinar, a suspensão do Conselho Diretivo, a nomeação, por Marta Soares, de comissões para substituir os órgãos sociais (e respetiva retaliação por parte de Bruno de Carvalho) e o enorme rol de providências cautelares de parte a parte, trocaram-se argumentos e acusações — que não cessaram com a Assembleia Geral que destituiu o antigo presidente a 23 de junho.
Jaime Marta Soares recebe, ainda hoje, ameaças de todas as espécies — assim como os membros demissionários da Mesa da Assembleia Geral. O último jogo em Alvalade, diante do Feirense, foi mais uma prova do ambiente hostil em torno do dirigente leonino: enquanto se encaminhava para o relvado, para uma homenagem a Nélson Évora, foi insultado pelos adeptos (incluindo os mais velhos), que o acusavam de ser o culpado da instabilidade sentida no clube. As acusações de liderar uma “golpada”, como lhe chamou Bruno de Carvalho, persistem até hoje.
“É das coisas que mais me magoam”, lamenta Eduarda Proença de Carvalho. “Mas eu acredito piamente que um dia a justiça lhe será feita. Cercámo-nos de grandes e enormes juristas em Portugal. Ganhámos as providências todas e as que não ganhámos nunca foi por ilegalidades”, sublinha a advogada. Eduarda recorda, também, a postura de Marta Soares durante a decisiva Assembleia de destituição. “Foram 12 horas de horror, de insultos constantes e permanentes. Para o Jaime então… Lidou com aquelas horas com uma serenidade que eu achava que o ser humano não tinha. As pessoas iam ao palanque insultá-lo e ele no fim dizia: ‘Muito obrigado, senhor associado, pelas suas palavras’. Nunca perdeu a pose institucional”.
“Jaime Marta Soares ajoelhou-se para me pedir desculpa”
Eduardo Barroso, antecessor de Marta Soares na presidência da Mesa da Assembleia Geral, eleito pela lista de Bruno de Carvalho em 2011, não podia estar mais em desacordo. É lapidar nas críticas: “Marta Soares nunca teria o perfil para resolver esta crise no Sporting porque, humanamente, não presta”. O cirurgião ataca a atuação do dirigente leonino desde o primeiro momento. “Nunca devia ter dito que Bruno de Carvalho não tinha condições para continuar. Não tinha condições porquê? Isso competia aos sócios dizer, não ao presidente da Mesa”, critica o cirurgião. “Marta Soares deveria ter-lhe dito para se demitir, para se demitirem todos os órgãos e darem a palavra aos sócios. Assim evitava-se a vergonha da Assembleia destitutiva. Mas isso não lhe interessava porque assim perdia este poder final de nomear a comissão de gestão e de fiscalização”.
O médico caracteriza Marta Soares como “um personagem que está com o poder”. E concretiza: “Esteve subserviente a Godinho Lopes e depois foi um capacho de Bruno de Carvalho. Fez sempre o que ele quis, porque queria era poleiro”, defende. Eduardo Barroso vai mais longe e rebobina o filme até 2013, altura em que, enquanto presidente da Mesa da Assembleia Geral do clube, recebeu os 1.000 votos previstos nos estatutos para convocar uma Assembleia de destituição de Godinho Lopes. “Tínhamos recebido os votos, o dinheiro e o argumento de justa causa. Éramos obrigados pelos estatutos do clube a convocar aquela Assembleia”, explica. “E quem foi a pessoa do Conselho Leonino que mais se revoltou contra a hipótese de a MAG ser obrigada a convocar esta Assembleia? Jaime Marta Soares! Fez uma intervenção verdadeiramente insultuosa para comigo e para com o Daniel Sampaio [à época vice-presidente da MAG]. Aquilo foi abaixo dos limites do mau caráter, da boa educação, e, ainda por cima, era contra o cumprimento dos estatutos“.
Eduardo Barroso conta que, ao saber mais tarde que Marta Soares integrava a lista de Bruno de Carvalho às eleições de 2013, ameaçou retirar-lhe o apoio. “O Bruno disse-me que Jaime Marta Soares tinha pedido desculpa por telefone ao Daniel Sampaio e que ele tinha aceitado. Eu disse-lhe que não aceitava desculpas telefónicas e que, se quisesse pedir-me desculpas, tinha de vir à minha casa”, relata ainda o cirurgião. “Ele foi, acompanhado de Artur Torres Pereira, para me pedir desculpa e poder manter-se na lista de Bruno de Carvalho. Marta Soares ajoelhou-se para me pedir desculpa. Foi uma vergonha, a minha mulher até saiu da sala envergonhada”, atira Eduardo Barroso. “É evidente que não foi um ajoelhar a sério… foi uma brincadeira de mau gosto. Do género: ‘Estou tão arrependido que até me ponho de joelhos’. De qualquer maneira, puxei-o para cima e disse-lhe: ‘Homem, seja digno’. Foi a minha casa pedir desculpa para poder ser candidato a presidente da MAG. Foi o maior erro da minha vida ter aceitado aquele pedido de desculpas“, conclui.
Contactado pelo Observador, Marta Soares garante que as palavras de Eduardo Barroso “são invenções da sua desastrada imaginação”. “Só pode dizer isso tudo quem não me conhece e não sabe qual é a minha forma de estar e a dignidade que tenho sempre tido nos lugares que tenho ocupado. Sei que, por esse meu tipo de atuação, causei muitas invejas e ciúmes, nomeadamente a esse senhor. Pensava que eles se fossem dissipando com o tempo mas, não sendo assim, não sei se é uma doença grave ou então alguma paranoia que efetivamente o leve a dizer o que pensa mas a não pensar no que diz“, remata.
Marta Soares confessa-se desgastado com o curso dos acontecimentos que conduz às eleições deste sábado. “Tem sido um processo marcante, difícil e, diria mesmo, amargurante”. Mas, ao olhar para trás, garante ter “a consciência muito muito muito tranquila”. “Eu tentei tudo, mesmo engolindo, às vezes, alguns sapos do tamanho da Estátua da Liberdade. Só o fiz por um sentimento muito nobre: a minha paixão pelo Sporting. Fui aguentando, mas tudo na vida tem o seu limite”, diz. Agora, só espera que tudo acabe. Mas nunca a sua ligação ao Sporting, aquela que nasceu nos campos pelados de Coimbra. “Quero ter as minhas quotas em dia, o meu lugar no estádio… Quero estar sempre na primeira linha. Só mesmo se não puder. Acho que até de muletas vou ver o Sporting”, diz. E voltar a ocupar um cargo no clube? “Para já, os sócios vão escolher o melhor e só quero que, sejamos capazes de ajudar quem for eleito a ter êxito. Depois… o futuro a Deus pertence”.