A memória do último combate pela liderança do PS — a guerra que António Costa declarou a António José Seguro para o destronar como secretário-geral do partido, e que lhe valeu acusações de “traição” — já tem nove anos, mas continua bem fresca na cabeça dos socialistas. Tão fresca que a ideia é evitar repeti-la: as candidaturas tentam refrear os ânimos, que já aquecem, para evitar uma luta fratricida que complique ainda mais a vida ao PS nas próximas legislativas. E, se do lado de José Luís Carneiro se vão pelo menos apontando publicamente as diferenças ideológicas entre as candidaturas e os riscos que o pedronunismo pode representar, pela parte de Pedro Nuno Santos nem isso: a ordem é olhar em frente e não reagir, na lógica de tentar a assumir desde já uma postura de candidato a primeiro-ministro.
Dentro da candidatura de Pedro Nuno Santos há mesmo quem se concentre na “metáfora da bengala” como aquilo que deve ser seguido no que toca à relação com o adversário. Que metáfora é essa? Simples: esta quarta-feira, dois membros do Governo, o candidato José Luís Carneiro e o apoiante de Pedro Nuno Santos, João Costa, estiveram juntos num evento. Os ministros da Administração Interna e da Educação foram evidentemente confrontados com a parelha governamental que ali faziam, quando estavam em lados opostos na disputa interna do partido.
João Costa fez questão de dizer que está unido a Carneiro por “uma profunda amizade e respeito”. Já o candidato preferiu lembrar que a bengala em que o ministro da Educação se apoia foi um presente que ele mesmo lhe deu. “De Natal!”, recordava, ao seu lado, João Costa. “Foi fabricada em Baião, a minha terra”. José Luís Carneiro continuou, lembrando ainda que isso tudo aconteceu numa altura em que o ministro “estava a ser muito contestado”: “Ofereci para o que fosse necessário”, gracejou. João Costa sorria ao lado e no círculo pedronunista o episódio apareceu imediatamente como o exemplo do que se deve seguir: bengaladas só mesmo naquele nível, nada de “reações epidérmicas” ou respostas a eventuais ataques que possam vir do outro lado.
Gelo nos pulsos, asas de anjo e irritações só nos bastidores
“Gelo nos pulsos e asas de anjo”, comenta com o Observador um dos vários elementos pela campanha de Pedro Nuno Santos. “Isto não vai ser um Costa contra Seguro“, acrescenta. E do lado de José Luís Carneiro, a intenção é semelhante, com Miguel Coelho a dizer ao Observador não temer que a campanha “resvale para o confronto de acusações pessoais. Recuso alinhar nesse tipo de coisas”, assume o responsável pela campanha de Carneiro em Lisboa.
[Já saiu: pode ouvir aqui o segundo episódio da série em podcast “O Encantador de Ricos”, que conta a história de Pedro Caldeira e de como o maior corretor da Bolsa portuguesa seduziu a alta sociedade. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui.]
“Não tenho nada a apontar de negativo em relação à outra candidatura”. A frase de Miguel Coelho segue a linha que Francisco César, diretor de campanha de Pedro Nuno Santos, afirmou, em declarações à TSF, sobre José Luís Carneiro: “Não deverá ser um adversário desta candidatura”. Já o candidato Pedro Nuno sintetizou a atitude que pretende adotar durante a campanha num breve cumprimento a José Luís Carneiro, na apresentação da candidatura, acrescentando apenas que o seu avanço “enriquece o debate e dá força ao nosso partido”. Foi a única referência pública que fez ao adversário.
Mas nem tudo serão rosas. Até porque há picardias nos bastidores tão significativas como o comentário que se ouve no círculo de Pedro Nuno quando Augusto Santos Silva formalizou o seu apoio a José Luís Carneiro: “É o sistema contra a nova geração, um novo ciclo, novas políticas”.
É assim que se começa a desenhar a narrativa desta campanha interna: o apoio de Santos Silva, que deverá ser seguido de Vieira da Silva e Fernando Medina, é lido do lado de Pedro Nuno como a reação de uma ala que quer continuar a marcar o seu espaço e sinaliza que não quer perder terreno para o novo caminho do pedronunismo — numa visão mais benévola, são os senadores do partido e os herdeiros da era Costa a dizer presente; na dos apoiantes do ex-ministro das Infraestruturas, “são os restos mortais do socratismo e do costismo”, como sentencia um deles.
Carneiristas falam em “frentismo” e criticam BE e PCP
Do lado oposto, as críticas vão sendo lançadas publicamente para vincar as diferenças em relação ao opositor, num plano ideológico e estratégico. Logo no fim de semana em que apresentou a candidatura, Carneiro foi direto a Pedro Nuno Santos, quando disse que aguarda uma resposta sobre “como é que num quadro tão exigente, com duas guerras, uma na Europa outra no Médio Oriente, se pode partir para uma candidatura com o pressuposto de uma aliança à esquerda, na medida em que é conhecida a posição dos partidos à esquerda do PS em relação à aliança atlântica?”. Uma referência clara aos acordos que o PS fez com a esquerda à sua esquerda e que Pedro Nuno não esconde querer repetir.
Os carneiristas prometem insistir na ideia de “dois projetos distintos, um mais frentista; um mais acordo com as tradições do PS, social democrata, de centro esquerda. É o que está em jogo”, resume Miguel Coelho, apontando ao outro lado uma tendência para “desmobilizar” do programa do PS e focar-se demasiado nos eventuais acordos com os antigos parceiros de geringonça.
E Santos Silva ainda acrescentou umas deixas, ao colocar Carneiro como o candidato da “temperança e da paciência” e também da “maturidade”, como quem aponta a falta dela ao lado de lá da barricada — uma narrativa que tem irritado os pedronunistas, e que já vem desde que as primeiras informações que davam como provável uma candidatura de José Luís Carneiro incluíam a ideia de que esta seria um avanço das forças “sensatas” do PS. “Caiu muito mal. O Pedro Nuno não está a partir contra o Carneiro”, comenta uma fonte da ala pedronunista.
O socialista que é presidente da Assembleia da República também explorou a questão do posicionamento político de Pedro Nuno, quando falou no seu candidato a secretário-geral como “o que melhor representa o PS e o espaço político do PS, um partido de gente do centro esquerda e da esquerda” e o que “dá melhores garantias de preservar a autonomia política do PS” que faz “as alianças que o interesse nacional exige”, mas que tem “uma direção e programa próprios”.
Tudo isto choca com a ideia pedronunista, consagrada na apresentação da candidatura pelo líder desta frente, de se afastar o mais possível da imagem de radical de esquerda. “Muito se tem falado de uma suposta divisão no PS entre uma ala ‘centrista e moderada’ e uma ala de ‘esquerda e radical’. Mas esta discussão tem pouco sentido. Alimenta conflitos artificiais e apenas serve a quem combate o PS. Na pluralidade que sempre existiu neste partido, o que está em causa não é uma disputa entre a moderação e o radicalismo”, definiu Pedro Nuno, na esperança de conseguir manter os seus apoiantes dentro destas balizas de ação.
Foi nessa tentativa de moderar a sua imagem que surgiu na sede nacional do PS, no dia da sua apresentação, ao lado de Francisco Assis, o maior crítico da “geringonça”, que chegou mesmo a ser vaiado num congresso em 2016, quando defendia que o PS governasse sozinho e não apoiado em acordos com os partidos à sua esquerda. “Não é razoável dizer-se que é divisão entre ala esquerda e direita. Muita gente do centro está com ele”, comenta um apoiante e dirigente socialista que aponta precisamente nomes como o de Assis, mas também o de Ascenso Simões ou mesmo do líder do PS-Portalegre, Luís Testa, que sempre foi próximo da linha de Ana Catarina Mendes, mais moderada.
Divisão interna antes de eleições é “erro”
A esperança é, no entanto, que as divergências não passem destas questões mais ideológicas, já que dois meses depois das eleições internas o mesmo PS terá de estar rapidamente unido à volta de um novo líder, na campanha para as legislativas de 10 de março. É por isso que ainda há socialistas a lamentar a existência de duas candidaturas quando os prazos são tão apertados e o partido tem de manter ao mesmo tempo no ar várias batatas quentes, sendo a principal uma opinião pública centrada nos casos judiciais que envolvem governantes da sua lavra e figuras próximas de António Costa.
Um governante comenta com o Observador o “erro” que é uma divisão nesta altura, defendendo que o partido não podia desperdiçar tempo em contendas internas, aproveitando antes cada minutos para lançar rapidamente a pré-campanha. Até porque, enquanto os adversários já avançam no terreno, o PS estará ainda a reorganizar tropas, a eleger órgãos do partido e ainda a debater moções e a ter de preparar um programa de Governo.
Um apoiante de Pedro Nuno comenta que a candidatura deste socialista era esperada há anos, pelo que se há alguém que furou a unidade foi José Luís Carneiro, que avançou na mesma. “Os militantes do PS não precisam de contendas internas, precisam de rumo“, atira outra fonte do mesmo lado. A mesma ideia tinha sido transmitida ao Observador por Ascenso Simões, que chegou a defender que Carneiro será apenas um candidato a secretário-geral do PS, e não a primeiro-ministro, e que não deveria ter-se candidatado: “Acho que as pessoas que estão a discutir o lugar na Comissão Política e provavelmente na lista de deputados deviam ter juízo. Pronto. É simples. Ele não precisa disso. José Luís Carneiro pode ser candidato a presidente de uma câmara grande, pode ser candidato para o Parlamento Europeu, pode ser ministro, novamente, pode ser tudo”, atirava.
É por isso que na campanha pedronunista, onde reina a convicção de que os conhecidos apoios maioritários de Pedro Nuno no aparelho socialista lhe darão a vitória, se defende que a estratégia pública passe por não entrar em choque — e se for preciso até ignorar — a candidatura do oponente: “O Pedro tem de se preservar e projetar-se já para a fase seguinte”, comenta um dos elementos da estrutura. Ou seja, tentar saltar a fase de embate com o adversário, que pode desgastar a sua imagem e do PS, e assumir uma postura de candidato que quer ganhar não apenas o partido, mas também — e sobretudo — o país.
Mas a fase de embate que começa agora ainda durará um mês, até às eleições diretas marcadas para 15 e 16 de dezembro. Só então o candidato que ganhar estará livre para se concentrar na luta para ganhar o país; até lá, precisará de ganhar o partido — e, pelo caminho, de evitar que este se transforme num poço de inimizades difíceis de reconciliar no dia seguinte, ou que na opinião pública se instale uma imagem de um partido que parte para eleições desorganizado e desfeito.