Centenas de médicos ainda aguardam, seis meses depois da conclusão do internato, um contrato para poderem trabalhar como especialistas nos hospitais e centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O Ministério da Saúde decidiu delegar os concursos para contratar médicos nas Unidades Locais de Saúde (ULS) e, meio ano depois, é reduzido o número de colocados. A esmagadora maioria dos concursos ainda decorre. Entretanto, muitos recém-especialistas estão a desistir do SNS, optando por ingressar no privado ou ir trabalhar no estrangeiro.
De forma a reforçar a autonomia das Unidades Locais de Saúde — uma das bandeiras da atual equipa ministerial —, a tutela decidiu, no final de junho, descentralizar os concursos para a contratação de recém-especialistas, deixando a cada ULS a possibilidade de ‘personalizar’ as escolhas e definir o perfil dos médicos a contratar. A decisão coincidiu com a entrada em funções da nova equipa da Direção-Executiva do SNS, liderada por António Gandra d’ Almeida.
No entanto, a mudança trouxe também obstáculos: cada ULS tem de constituir um júri, definir critérios de classificação, organizar avaliações e firmar contratos com os especialistas que venha a contratar, um processo que pode arrastar-se durante semanas. E cabe a cada unidade definir a calendarização do processo, não tendo sido imposto um prazo para a conclusão dos concursos.
Formaram-se 1350 médicos, mas pouco mais de 400 estão contratados
Em agosto, muitas ULS ainda estavam a abrir os procedimentos, o que empurrou os concursos para setembro. Desta forma, é reduzido o número de médicos recém-especialistas contratados em relação ao total de formados, segundo a contabilização feita pelo Observador com base nas informações avançadas pelas ULS. Das 39 unidades existentes no país, 27 responderam e, dessas, apenas 17 (portanto, menos de metade do total) referiram já ter médicos colocados.
Nove delas estão situadas a norte: a ULS de São João (com 34 médicos), a ULS de Gaia/Espinho (com 39 médicos), ULS de Aveiro (com 6 médicos), a ULS de Matosinhos (com 18 médicos), a ULS de Braga (com 44 médicos), a ULS do Alto Ave, com sede em Guimarães e que contratou 25 médicos, e a ULS Entre Douro e Vouga, com sede em Santa Maria da Feira, que contratou 21 especialistas; a ULS do Alto Minho, em Viana do Castelo, com 14 médicos; e a ULS do Tâmega e Sousa, em Penafiel, com sete colocados.
ULS Médio Tejo abre concursos para 39 médicos recém-especialistas e assistentes
Duas ficam na região centro, a ULS de Coimbra (com 47 médicos) e a ULS de Leiria (com 24 médicos) e seis a sul: a ULS de São José (com 18 médicos), a ULS de Santa Maria (com 29 médicos), a ULS Almada-Seixal (com 33 médicos), a ULS de Lisboa Ocidental (com 32 médicos), a ULS Loures-Odivelas (com 36 médicos) e a USF do Litoral Alentejano (com 8 médicos).
Assim, nestas 17 Unidades de Saúde Local foram contratados cerca de 430 médicos, um número curto, se comparado com a quantidade de recém especialistas que terminaram o internato da especialidade em março, cerca de 1350, segundo as listas de classificação final do internato médico publicadas na página da Administração Central do Sistema de Saúde, ainda em maio.
Com concurso centralizado, médicos estavam colocados em julho
Este ano, e já no início de setembro, a esmagadora maioria dos médicos ainda não assinaram contrato, quando, nos anos anteriores, os médicos estavam colocados, no máximo, em julho. Um atraso que preocupa, mas não surpreende, o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, a especialidade onde os concursos se encontram mais atrasados neste momento e também aquela onde se formaram mais médicos este ano, cerca de 430.
“Esta situação já era previsível e avisámos que era um risco alterar o concurso em cima da hora para estes moldes sem se ter estudado bem esta solução”, sublinha ao Observador Nuno Jacinto, criticando a arbitrariedade de todo o processo. “O que fizemos foi colocar 39 instituições a tratar dos concursos, esperando que todas elas conseguissem trabalhar ao mesmo ritmo, com realidades diferentes. É completamente diferente um concurso com 10 candidatos de outro que tem 100, e que demora mais tempo”, diz o presidente da APMGF.
Críticas que se estendem também ao Conselho Nacional do Médico Interno. “Isto gerou maior entropia. Para as mesmas especialidades, algumas ULS definiram critérios diferentes, nem todos os concursos abriram em simultâneo e as pessoas ficaram hesitantes sobre que ULS iam abrir que vagas e quanto ao momento em que os concursos iriam abrir”, diz ao Observador José Durão, presidente daquele órgão (da esfera da Ordem dos Médicos).
ULS abriram duas mil vagas e muitas ficaram desertas
Segundo a página da ACSS onde se podem consultar os concursos de primeira época deste ano, foram disponibilizadas pelas ULS cerca de 2 mil vagas, 1080 para as especialidades hospitalares, 880 para Medicina Geral e a Familiar e 40 para Saúde Pública, em dezenas de concursos diferentes. Alguns já estão concluídos (muitos com vagas por preencher), mas a maioria continua em curso e sem data de conclusão prevista.
Comecemos pelas maiores ULS do país. Em Coimbra, já foram assinados contratos com quase meia centenas de médicos, todos de especialidades hospitalares, sendo que foram abertas mais de 90 vagas. Na ULS de Santa Maria, foram firmados cerca de 30 contratos até ao momento. A unidade, que abriu mais de 100 vagas (entre especialidades hospitalares e de Medicina Geral e Familiar) destaca o que considera ser “a inversão do decréscimo de procura pela especialidade de Medicina Interna, que nesta fase ocupou 9 das 11 (82%) vagas a concurso” e, ainda, “o total preenchimento de vagas em áreas estratégicas como a Pediatria Médica (com todas as 6 vagas preenchidas).
Ainda na região de Lisboa, a ULS de São José abriu também mais de 100 vagas mas, até ao momento, apenas concluiu a contratação de 18 médicos, de Medicina Geral e Familiar, sendo que a maioria das vagas nesta especialidade ficaram por ocupar. No Porto, na ULS de São João, foram contratados 34 médicos, tendo ficado apenas seis vagas por ocupar. Na ULS de Santo António, ainda não há colocados, tendo apenas sido concluído o concurso para as duas vagas na área da Saúde Pública.
Maiores atrasos registam-se na Medicina Geral e Familiar
Embora os atrasos sejam transversais a todas as especialidades, há uma em que os concursos se estão a arrastar mais: a Medicina Geral e Familiar. Com raras exceções, a maioria das ULS ainda nem sequer concluiu os procedimentos. “Os concursos de Medicina Geral e Familiar atrasaram mais e ainda há muita gente à espera, muitos concursos foram anulados e tiveram de ser feitos de raiz. Outros tinham entrevista incluída nos critérios de admissão, mas as ULS perceberam que era logisticamente difícil e tiveram de fazer tudo outra vez”, adianta José Durão.
O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar explica que a dimensão dos concursos (numa especialidade que formou mais de 400 médicos) e o facto de haver médicos que se candidataram a várias vagas (o que antes não se verificava) foram fatores a contribuir para os atrasos. “São muitos candidatos na Medicina Geral e Familiar e as ULS tiveram de constituir os júris, ainda por cima com um período tradicional de férias pelo meio”, explica Nuno Jacinto, acrescentando que “muitos médicos candidataram-se a vários concursos em simultâneo para não ficarem à espera dos resultados”. “Antes, isso não acontecia, porque os médicos eram colocados consoante o lugar na lista seriada”, explica.
Entre as ULS de média dimensão, as dificuldades na contratação de médicos mantêm-se. Na ULS Almada-Seixal, a maior da península de Setúbal, houve apenas 50 candidatos para mais de 70 vagas e até ao momento apenas 34 assinaram contrato (22 nas especialidades hospitalares, 11 na MGF e um de Saúde Pública). Apesar de a ULS salientar que no caso dos “cuidados de saúde primários houve 13 candidaturas, o número mais alto dos últimos 5 anos”, a verdade é que dois terços das vagas ficaram desertas, um cenário que se repete na região de Lisboa e Vale do Tejo ano após ano e contribui para que mais de um milhão de pessoas continuem sem médico de família atribuído nesta região (são 1,7 milhões em todo o país).
Em algumas ULS de Lisboa, metade das vagas ficou por preencher
Na ULS Amadora-Sintra, ainda nem sequer há nenhum médico contratado e metade das vagas ficou sem candidatos. Foram recebidas 52 candidaturas (para 105 vagas), sendo que a larga maioria das 62 vagas para Medicina Geral e Familiar ficou deserta, numa das zonas mais carenciadas do país no que diz respeito à cobertura de médicos de família. Na ULS Loures-Odivelas, foram contratados 36 médicos, a maioria de especialidades hospitalares, tendo sido abertas quase 80 vagas. Na ULS Lisboa Ocidental (com sede no Hospital São Francisco Xavier), já assinaram contratos 32 médicos. Vão ser admitidos um total de 55 especialistas (quando existiam 102 vagas), sendo que os “processos de contratação encontram-se concluídos, estando a ter lugar a assinatura dos contratos”. Vão ser admitidos apenas 21 médicos de Medicina Geral e Familiar, menos de metade das 49 vagas disponíveis.
Na ULS do Médio Tejo — que abarca as zonas de Tomar, Abrantes e Torres Novas –, ainda nenhum médico foi colocado. Está concluída a maior parte dos concursos para especialidades hospitalares (com o preenchimento total das três vagas para Pediatria), mas o concurso para a contratação de médicos de família ainda decorre. Candidataram apenas nove médicos, para um total de 26 vagas. Na ULS da Arrábida (com sede em Setúbal), também ainda não há médicos contratados e a unidade não adianta quantas candidaturas recebeu para um total de 70 vagas. Já na ULS da Lezíria (com sede em Santarém) o cenário é o mesmo — a unidade adianta que os concursos decorrem e “não é possível ainda avançar informação sobre as vagas preenchidas”.
Apesar das insistências, as ULS do Arco Ribeirinho (com sede em Setúbal), a ULS do Estuário do Tejo (com sede em Vila Franca de Xira) e a ULS do Oeste (com sede em Torres Vedras) não responderam em tempo útil.
No Alentejo, há apenas seis médicos contratados — os da ULS do Litoral Alentejano (com sede em Santiago do Cacém). Também nesta região, muito pressionada pela emigração, persistem as dificuldades na contratação de médicos de família, uma vez que foram apenas ocupadas três das 39 vagas para MGF. A ULS do Alentejo Central, com sede em Évora, tem ainda vários concursos a decorrer, mas, naqueles que já estão concluídos, foram preenchidas 15 das 37 vagas. Para os centros de saúde da região tinham sido disponibilizadas 11 vagas, mas só concorreram cinco médicos. A ULS do Baixo Alentejo (com sede em Beja) ainda tem os concursos a decorrer. Já ULS do Alto Alentejano (com sede em Portalegre) não respondeu. No Algarve, e apesar de várias insistências, a ULS local não respondeu aos pedidos de esclarecimento do Observador.
Na região Centro, a situação é semelhante. A ULS de Aveiro foram contratados seis médicos, todos de especialidades hospitalares. No caso da MGF, o concurso foi reformulado e ainda decorre. Em Leiria, foram firmados contratos com 24 especialistas, num total de mais de 80 vagas. A região já é — e continuará a ser — uma das mais carenciadas em termos de cobertura de médicos de família: das 51 vagas vagas abertas, só dez foram preenchidas. Na ULS de Castelo Branco, ainda não há contratações — registaram-se até ao momento, e quando ainda existem concursos a decorrer, oito candidaturas a 30 vagas. Na ULS Entre Douro e Vouga (com sede em Santa Maria da Feira), foram contratados 21 médicos, todos de especialidades hospitalares.
A norte, lugares foram quase todas ocupados e há até mais candidatos que vagas
Na zona centro-norte do país, onde a cobertura de médicos de família é quase total, o problema é o inverso da zona sul: há muito mais médicos de família recém-especialistas a candidatarem-se do que vagas disponíveis. “Devido ao elevado número de candidatos, encontra-se ainda a decorrer o processo de seleção de médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar, cuja conclusão se prevê ocorrer até ao final do mês de setembro”, esclarece a ULS Entre Douro e Vouga, que abriu apenas três vagas.
Algumas unidades a norte optaram até por nem abrir vagas nesta especialidade. É o caso das ULS Barcelos-Esposende, de Matosinhos, do Médio Ave (com sede em Santo Tirso), da Póvoa do Varzim/Vila do Conde ou da ULS de São João, a maior a norte do Douro. Neste último caso, foram ocupadas praticamente todas as vagas para médicos hospitalares, tal como na ULS de Matosinhos
Na ULS Gaia/Espinho, foram abertas também apenas três vagas de MGF — todas preenchidas, bem como as restantes das especialidades hospitalares. No caso desta ULS, há 39 médicos já contratados. Mais a norte, na ULS de Braga, há 44 colocados, com a esmagadora maioria das vagas a ter sido ocupada (46 em 48). Na ULS do Alto Ave (com sede em Guimarães), foram contratados 25 médicos até ao momento (o que equivale à quase totalidade das vagas disponíveis), mas candidataram-se mais de 130 profissionais, com o número de candidatos a superar em muito as vagas em MGF e Medicina Interna — duas especialidades em que na região sul a maioria das vagas costuma ficar deserta.
Já na ULS do Alto Minho (em Viana do Castelo), foram colocados 14 especialistas. Em Matosinhos, foram abertas 22 vagas e 18 médicos estão já a trabalhar. Na ULS de Santo António, no Porto, não há ainda médicos contratados e apenas foi concluído o concurso para as duas vagas de Saúde Pública. Já na ULS do Tâmega e Sousa (com sede em Penafiel), foram preenchidas 42 das 54 vagas disponíveis, sendo que sete médicos já foram colocados. Já na ULS de Trás os Montes e Alto Douro (com sede em Vila Real), já foi concluído o concurso de MGF, com 21 médicos já contratados. Foram ainda ocupadas 21 das 48 vagas para especialidades hospitalares.
As ULS da Cova da Beira, de Viseu, do Baixo Mondego, da Guarda, do Nordeste e da Póvoa do Varzim/Vila do Conde não responderam em tempo útil.
Apesar de a descentralização dos concursos para as ULS ter feito atrasar ainda mais o processo de colocação de médico, o presidente do Conselho Nacional do Internato Médico considera que a mudança tem também aspetos positivos. “Percebo que se tenha dado às ULS a possibilidade de definir o perfil que pretende para os seus quadros e que se tenha retirado o peso que a nota final de internato tem — até este ano, era o único critério –, sendo que agora a maioria das ULS tem entrevista e avaliação do currículo e algumas até têm uma carta de motivação. É uma avaliação mais completa dos candidatos”, sublinha. José Durão ressalva, no entanto, que o modelo precisa de ser melhorado para que, nos próximos concursos (que deverão decorrer ainda este ano), os recém-especialistas não fiquem, de novo, vários meses à espera de colocação. “Se tudo isto for afinado, se os concursos abrirem todos ao mesmo tempo, se o mapa de vagas for publicado antes de as pessoas fazerem a avaliação final, poderá correr melhor”, acredita o responsável.
Muitos médicos “fartaram-se” de esperar e optaram pelo privado ou pelo estrangeiro
A demora excessiva já fez com que muitos jovens médicos optassem por outras saídas profissionais, nomeadamente no setor privado e até no estrangeiro. “Isto não pode continuar, porque o que vai acontecer é que os colegas vão saindo do SNS, vão tendo outras propostas do setor privado ou ficam no SNS mas a trabalhar como tarefeiros, ou então vão para o estrangeiro. Porque não somos capazes de os contratar em tempo útil e nem sequer lhes conseguimos dar uma previsão de quando terão o seu contrato efetuado”, critica Nuno Jacinto, presidente da APMGF, salientando que a Medicina Geral e Familiar, antes uma especialidade sem expressão no setor privado, está a crescer à boleia da falta de resposta em determinadas zonas do país.
“Andamos há anos a falar nos atrasos e cada solução que encontramos é mais complicada que a anterior. Em vez de simplificarmos o processo, atrasamos o processo e criamos mais confusão”, lamenta o médico da USF Salus, em Évora. José Durão diz ter conhecimento de colegas que não esperaram pela conclusão dos concursos. “Há médicos que já se fartaram de esperar e avançaram para outras alternativas, nomeadamente no estrangeiro“, garante.
Ministra da Saúde admite repor modelo anterior no caso da MGF
Perante a avaliação negativa feita no terreno e o aumento do tempo de espera para colocações, estará o Ministério da Saúde disponível para recuar e voltar a centralizar os concursos na ACSS? Na quarta-feira, e em resposta a uma pergunta do Observador na apresentação do balanço do Plano de Emergência, a ministra da Saúde admitiu que a possibilidade de voltar ao modelo anterior, mas apenas no caso da MGF, especialidade onde os atrasos são mais visíveis.
“O balanço [da mudança] não é negativo na globalidade, mas o mesmo não se pode dizer no caso da MGF. Colocamos a possibilidade de voltar à metodologia anterior. Temos de saber o mapa de vagas antecipadamente para esta segunda época”, disse Ana Paula Martins.