Índice
Índice
Uma taxa sobre as importações que pode gerar desconforto noutras potências comerciais; uma taxa de carbono sobre as companhias aéreas que poderá ser sentida no bolso dos consumidores; o alargamento a empresas de transporte marítimo do mercado de carbono, naquele que é visto como o mais importante instrumento de combate às alterações climáticas. E — algo que seria um marco histórico — está previsto que os carros deixem de ter motor a combustão interna em 2035. Estas são algumas das propostas que, segundo as agências de notícias internacionais, deverão ser apresentadas pela Comissão Europeia esta quarta-feira.
Um cabaz “verde” que Bruxelas promete ser ambicioso, com o objetivo de reduzir os gases de efeito estufa em 55% até 2030 (face aos níveis de 1990). As consequências são vastas e as medidas não são isentas de custos — para as empresas poluidoras, mas também, por arrasto, para os consumidores — embora haja uma compensação para famílias mais vulneráveis e dinheiro da “bazuca” europeia, que já está em andamento para relançar as economias no pós-pandemia.
Para Portugal, o novo paradigma traz oportunidades, embora limitadas pela escala do país. E preocupações, tendo em conta um potencial ónus sobre a classe média e possíveis perdas para o turismo (que, depois da pandemia, pode ter de se reinventar).
Protecionismo ou igualdade de concorrência? Choque diplomático à vista
Uma das grandes expectativas em relação ao anúncio da Comissão Europeia diz respeito a um novo imposto sobre o carbono nos produtos importados. Aço, alumínio, cimento, fertilizantes e eletricidade deverão ser abrangidos pelo chamado Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira, afetando as indústrias fora da União Europeia que têm uma utilização intensiva de carbono. Para já, um esboço da proposta a que a Reuters e a Bloomberg tiveram acesso mostra que o mecanismo poderá render até 10 mil milhões de euros por ano. Mas não deverá avançar antes de 2025.
Até lá, promete dar que falar. “Claramente pode ser vista como uma medida protecionista, mas nós estamos num mundo agora muito protecionista”, considera António Alvarenga, diretor da consultora Alva R&C, ao Observador. “Não é só o motor de combustão que está a acabar. Se calhar não de forma definitiva, mas a globalização como a conhecemos, a liberdade de circulação e a liberdade de comércio estão em crise”.
O professor da Nova SBE e investigador do Instituto Superior Técnico entende que esta é “uma medida muito polémica”, que funciona como “uma espécie de compensação” à indústria europeia, por estar sujeita a restrições de natureza ambiental. Em causa está, nomeadamente, o mercado de carbono (ver abaixo), em que as empresas que não cumpram as quotas de poluição se veem obrigadas a pagar às empresas “limpas”. Também o novo imposto sobre as importações estará, segundo a Bloomberg, ligado a este sistema. Uma tentativa de “tornar todo este pacote um pouco mais aceitável pela grande base industrial europeia”, na opinião de António Alvarenga.
Só que, por isso mesmo, o investigador Tiago Domingos entende que fazer este ajuste de fronteira “é repor as condições de igualdade de concorrência” face à indústria europeia. “Do ponto de vista económico, não considero a medida protecionista”, diz ao Observador.
Como sempre, “o diabo está nos detalhes e pode depender da forma como é implementada”, mas Tiago Domingos lembra que os operadores económicos na UE, e nomeadamente das indústrias pesadas, têm muitos custos com as emissões de carbono. A UE estava, por isso, “a colocá-los em desvantagem face a operadores de países de outras partes do globo”. Algo que poderá ser mitigado com a nova medida.
O professor do Instituto Superior Técnico, que dá aulas de Desenvolvimento Sustentável e de Economia do Ambiente, reconhece, no entanto, que “do ponto de vista político, quem for afetado por essa medida irá alegar que ela é protecionista”. A China e outros países podem “construir uma argumentação em que usem isto para dizer que é protecionismo escondido”, caso em que “isto pode correr mal e acabar por não dar em nada — nem benefícios ambientais e ainda se criam problemas nas relações internacionais”.
Lei europeia do clima “desoladora e pouco ambiciosa”, dizem ambientalistas
Tiago Domingos nota, no entanto, que as indústrias pesadas europeias, para se protegerem da concorrência internacional — “que se torna desleal”, por causa dos custos a que são obrigadas por serem grandes poluidoras —, “dizem que só apoiam a medida se, além disso, mantiverem o apoio que já hoje têm”, através de licenças que recebem de forma gratuita. E isto, para o investigador do IST, “é que é absurdo”.
“Não é justo, é ineficiente e mata completamente a possibilidade de haver qualquer argumentação adequada a nível internacional”, considera Tiago Domingos. “Aí sim, os países fora da UE já podem dizer que passa haver uma medida protecionista, que enviesa as condições de concorrência em favor das empresas europeias”.
António Alvarenga também antecipa “enormes resistências internacionais”, admitindo mesmo que esta é a parte que mais riscos corre de não constar no pacote final de medidas, depois de ser filtrada ao longo das diversas negociações a que será sujeita.
O consultor entende ainda que a medida, a concretizar-se, vai gerar “um claro aumento da competitividade”. As indústrias “que mais perdem a curto prazo com o esforço, porque são indústrias muito poluentes”, têm, por outro lado, ganhos, “porque a concorrência externa fica mais fraca”.
Mercado a carbono segue a “todo o vapor”?
Aquela que será a maior evolução do mercado do carbono até ao momento deverá abranger agora o transporte marítimo, a partir de 2023, e melhorar um mecanismo de controlo no fornecimento de licenças de carbono.
Este mercado coloca um preço na poluição, impondo quotas de emissão de CO2 a grandes setores e empresas poluidoras, o que funciona como um incentivo a que adquiram tecnologias limpas e se tornem mais eficientes. Se uma empresa poluir abaixo da quota a que tem direito, pode vender essa margem a outras empresas que tenham ultrapassado os limites impostos pela UE.
António Alvarenga considera este mecanismo como “fundamental” no combate às alterações climáticas, mas reconhece limitações, “especialmente em períodos de crise económica”. Nessas circunstâncias, “a poluição diminui logo, o que é muito bom para o ambiente”, mas “o mercado perde a sua função e isso é bastante problemático”, porque “passa a ser muito barato poluir”.
Europeans have already decided. They want to make the EU climate neutral by 2050.
Tomorrow, we'll propose a plan to deliver on our targets
???? Cut emissions by at least 55% by 2030 while growing & creating jobs
???? Ensure a fair & just transition for all Europeans⁰#EUGreenDeal pic.twitter.com/Rz2C98DSeu
— Ursula von der Leyen (@vonderleyen) July 13, 2021
Em todo o caso, é um mecanismo visto como “decisivo”, porque consegue “mobilizar para este combate a força da economia de mercado ao nível do investimento, do empreendedorismo e da inovação”. Modelos de negócio que antes não eram rentáveis “passam a sê-lo porque são monetizados através do mercado de carbono”, explica António Alvarenga.
O impacto é, potencialmente, “muito grande, porque as grandes indústrias poluidoras estão lá dentro”. As indústrias do aço, do cimento, do alumínio “fazem todos parte deste mercado e este é um custo que têm de ter em conta quando definem os seus modelos de negócio, as suas prioridades de investimento, as suas prioridades de inovação”. Se tiverem novas tecnologias “que sejam menos poluentes não só é bom para o ambiente como lhes dá dinheiro”, uma vez que podem vender esses direitos de emissão de CO2 no mercado.
“É aquilo que eu estou mais curioso do que vai ser anunciado”, adianta o professor da Nova SBE, esperando que haja agora mais rapidez na gestão da oferta e da procura e dos preços de emissão.
Também Tiago Domingos vê no mercado de carbono “a principal ferramenta da UE” para incentivar os agentes económicos a diminuírem emissões de carbono. “O que faz sentido é que o mercado seja alargado, dentro daquilo que é tecnicamente viável, a todos os setores que são emissores”. O alargamento que a Comissão Europeia agora propõe aos transportes marítimos é, por isso, “extremamente bem-vindo” para o investigador do Instituto Superior Técnico. “Vem até atrasado, já devia ter acontecido há muito tempo”.
As receitas com este novo mercado de carbono servirão, em parte, para financiar um Mecanismo Social de Ação Climática, que deverá ser criado pela União Europeia para proteger as famílias mais vulneráveis do impacto destas medidas regulatórias.
“O fim definitivo do século XX” daqui a 14 anos
Se os planos da Comissão Europeia baterem certo, em 2035 todos os novos automóveis vão ser proibidos de emitir dióxido de carbono. Por outras palavras, é o fim do motor de combustão interna. “De alguma forma, é também o fim definitivo do século XX, do ponto de vista económico”, considera António Alvarenga, que foi relator do Compromisso para o Crescimento Verde em Portugal.
A medida deverá ser gradual. Cinco anos antes, a partir de 2030, as emissões terão de cair 65% face aos níveis atuais. “Não é uma pequena alteração, um pequeno ajuste, é, de facto, uma rutura em termos de paradigma de produção”, considera Tiago Domingos. “Em parte torna-se necessário porque o mercado de carbono não abrange as emissões feitas a partir de veículos que usam motor de combustão interna”, explica Tiago Domingos.
O investigador do Instituto Superior Técnico, que preferia um mercado ou uma taxa de carbono que cobrisse de forma uniforme todos os setores, reconhece que, neste caso, será “mais simples fazer este tipo de intervenção não baseado num preço de carbono, mas num requisito tecnológico”.
Há, no entanto, um aspeto “que não está ainda a ser suficientemente acautelado: os outros efeitos negativos desta transição”. Ou seja, Tiago Domingos avisa que “os motores elétricos não são inócuos em termos ambientais — vai ser preciso lítio e todos os outros minérios necessários; vai ser preciso colocar em movimento capacidades gigantescas de reciclagem; o design destes motores vai ter de ser feito para permitir depois essa reciclagem”.
“É preciso acautelar todos os impactos a montante — como estamos já a ver com o lítio em Portugal — e, depois, se vamos massificar o veículo elétrico, temos de acautelar os impactos com a expansão massiva de sistemas de energias renováveis, nomeadamente com a energia solar — como já estamos também neste momento a ver em Portugal as primeiras discussões e preocupações ambientais com os parques solares”, salienta o especialista.
“Uma política deste género é positiva, mas não é positiva se não for acompanhada com igual rigor e igual velocidade na implementação de medidas que acautelem todos os outros problemas ambientais que virão agora atrás com o carro elétrico”.
Tiago Domingos alerta ainda que, “certamente, vão aparecer regras nas cidades em que as pessoas numa certa data não vão poder circular em veículos com combustão interna”. E se “é evidente que vai acontecer”, será importante, na opinião do investigador, que, o mais cedo possível, se avise as pessoas de quando é que isso vai ser”.
O transporte aéreo vai ser “cada vez mais caro”
Talvez a medida que mais rapidamente será notada pelos consumidores passa pelo setor da aviação, que terá de pagar mais pela poluição que gera e que, de acordo com o esboço da proposta, vai enfrentar maiores exigências para que use combustíveis mais “verdes”.
Consequência? “Isso vai passar também para o preço dos bilhetes das pessoas que viajam. Obviamente vai ser terrível, mas era inevitável porque era um setor que era beneficiado num conjunto de exceções que não eram justificáveis”, considera António Alvarenga. “A não ser que achemos que temos de pagar a todo custo a estabilidade económica das companhias aéreas”.
Tiago Domingos, que também não encontra razão para que haja setores isentos — e entende mesmo que a medida “já vem atrasada” —, afirma que, no caso da aviação, “é um mecanismo económico inevitável”.
Clima: Comissão Europeia vai propor taxa querosene apesar das críticas das transportadoras
Por um lado, uma taxa sobre o carbono “encoraja as companhias aéreas a comprarem aviões mais eficientes em termos de combustível e a serem mais eficientes no transporte”, procurando garantir “que os aviões voam cheios, para otimizar as emissões”. Depois, “a pressão sobre as companhias aéreas para reduzir o combustível traduz-se numa pressão que a seguir colocam na Airbus e na Boeing — que ambas já conhecem plenamente” e que as pode levar à adoção de tecnologias mais limpas.
Finalmente, “depois de todos estes mecanismos, é provável que o preço das viagens aéreas aumente”. O acréscimo “não será gigantesco”, serão “valores pequenos”, mas poderá significar uma maior racionalidade nas viagens: “Se o preço das viagens aumentar um pouco, se calhar significa que pessoas que hoje fazem dois ‘city breaks’ de dois dias passam a fazer umas mini-férias de quatro dias”, afirma Tiago Domingos.
É, em todo o caso, uma viagem sem retorno, na opinião de António Alvarenga. “É a ideia de que a aviação no futuro será muito útil se for pouco mais cara do que atualmente — e para longo curso. E que para viagens de curto e médio curso, muitas das viagens dentro da União Europeia e, claramente, para as viagens dentro dos países, a aviação não é o melhor sistema de transporte”, explica o investigador. “É uma ideia que já está definida em termos europeus e de outros países há muito tempo” e que tem justificado o investimento na ferrovia em vários estados-membros.
“Nós estamos numa crise muito grande, mas é um fenómeno imparável, é terrível depois de tudo o que aconteceu, mas é uma tendência, já vinha de trás”, considera António Alvarenga. “A questão é se queremos acelerar esta tendência, acrescentar este custo às dificuldades que o transporte aéreo já tem ou não”.
Cada país com a sua companhia aérea? “Vai ser muito complicado”
“Quando olhamos para o transporte aéreo e dizemos que a Covid é excecional e temos de o apoiar, porque depois da Covid vai voltar tudo ao normal, isso não é verdade. Porque voltar ao normal já não é voltar ao pré-Covid”, argumenta António Alvarenga.
Para o investigador, a pandemia não pode servir para travar o inevitável: “Corremos o risco de tentar salvar [essas empresas], por causa da Covid, e depois ir definhando por causa destas forças de longo prazo”. Seja por questões ambientais ou de política, “o transporte aéreo já estava em crise e vai ser cada vez mais competitivo, cada vez mais difícil, cada vez mais caro, isso é quase certo”. E será “uma luta inglória tentar travar esta tendência”.
A prazo, as chamadas “companhias de bandeira” deverão enfrentar cada vez mais dificuldades. “A oferta vai ser reduzida, vai sair mais caro, e vai ser muito complicado aquela ideia de que cada país tem a sua companhia. Acho que é difícil justificar e manter a longo prazo, olhando este tipo de forças, uma lógica de sustentação de uma companhia de bandeira”, defende o consultor, que, ainda assim, diz haver ligações aéreas que “são bens públicos” e pelas quais se deve pagar.
António Alvarenga avisa que “o coração do negócio vai ser muito complicado nas próximas décadas”, até porque, “provavelmente, as pessoas vão viajar menos por questões de trabalho, por razões ambientais”. E não é propriamente uma novidade, uma vez que “todas estas forças já lá estavam”, embora tenham sido aceleradas pela pandemia.
Menos 20 aviões e 25% da força de trabalho. A reestruturação da TAP já “está no terreno”
A medida que será apresentada esta quarta-feira deverá, segundo a Bloomberg, deixar de fora os aviões a jato e empresas como a Amazon. Sem saber a justificação, Tiago Domingos entende que, à partida, qualquer das exceções parece ser “absurda”. “No caso dos jatos privados consegue ser absurdo em si mesmo e absurdo por ser um tiro no pé politicamente”, porque será visto como uma forma de “proteger os favorecidos e penalizar os desfavorecidos”.
Em relação ao comércio eletrónico, “pelas características que tem, permite disponibilizar produtos aos consumidores com menos emissão de carbono — quando toda a gente tem de pagar pelo carbono ele será naturalmente favorecido”. Ou seja, “criar-lhe um favorecimento extra não é equitativo e é economicamente ineficiente”. Além disso, “nem sequer é evidente que o comércio eletrónico seja redutor de emissões de carbono e de impactos ambientais em geral”, porque depende de transporte e de logística.
Oportunidades para Portugal, mas pressão sobre a classe média e preocupação no turismo
Para Portugal estas medidas podem representar oportunidades, mas também alguns riscos. “A parte menos confortável é eventualmente o ónus sobre a classe média, que está hiper-pressionada, que em Portugal é pobre”, porque “qualquer quebra de rendimento põe em causa a sua sustentabilidade financeira”, considera António Alvarenga. “Nesse sentido, se estes pequenos custos continuarem a ser refletidos podem não ser bem recebidos”.
No entanto, o professor da Nova SBE entende que o país está razoavelmente bem colocado para aproveitar o investimento público que vai jorrar para as questões ambientais nas próximas décadas. “Nós não estamos mal, estamos muito mais bem situados face a esta nova revolução industrial do que estávamos face à anterior. Nesse sentido, pode ser uma oportunidade, porque temos muito dinheiro disponível para investimento”, nomeadamente com ligação ao Programa de Recuperação e Resiliência, sublinha António Alvarenga. E há ainda “boas capacidades, bons centros de investigação, bons talentos em tudo o que são estas áreas emergentes”.
O investigador alerta, no entanto, que falta escala para que Portugal aproveite melhor essas oportunidades. “Isto também é um processo de concentração em algumas destas indústrias, uma seleção de campeões europeus. A Europa já não tem muita capacidade para ser muito competitiva nas novas indústrias, nos novos setores, face à China e os EUA”, considera António Alvarenga. Mas “uma coisa que a Europa ambiciona é ter outra vez campeões — não são campeões nacionais, são campeões europeus”. E “é muito difícil que esses campeões europeus sejam portugueses”.
Tiago Domingos, por sua vez, chama a atenção para o impacto que a taxa sobre a aviação pode ter em Portugal, tendo em conta a dependência do país face ao turismo. “O setor que sofre — depois pode ou não adaptar-se — é o turismo, e nós, de facto, estamos muito dependentes”. A estratégia de resposta deveria, segundo o investigador, passar por forçar a mudança de paradigma no setor para “estadias mais longas, de maior valor acrescentado, mais distribuídas pelo país”.