Houve espaço para perceber o tempo naquele cubículo de elevador de hotel. Um tempo distante de fenómenos meteorológicos para entreter viagens de curta duração. Clara Ferreira Alves recorda o encontro em Castelo Branco com José Sócrates e percorre uma série de outras paragens na memória. Do “Soares New Look”, quando trabalhou a imagem do Partido Socialista, às redações, que nunca quis dirigir, sem esquecer o fim da amizade com Vasco Pulido Valente e a viciante relação com a Netflix, que a forçou a sair de casa para se aplicar no segundo romance. João Miguel Tavares recebe a sua última convidada no programa Artigo 38, uma entrevista à Rádio Observador para ouvir aqui na íntegra.
Já percorreu todos os géneros jornalísticos, já escreveu muita coisa e já leu muita coisa. Existe algum momento marcante na sua carreira ao ponto de ter dito que, a partir dali, nada voltou a ser igual — seja na forma como encarava o jornalismo, seja na maneira de ver o mundo?
Não, acho que não tenho esse momento. Tive grandes momentos, como todos os jornalistas, mas não identifico um em particular. Acho que a vida do Expresso, quando estávamos a fazer a revista nos anos 80, foi uma boa vida. Foi uma excelente vida. Houve um momento — mas que não foi determinante para a minha carreira, foi uma escolha que fiz, completamente racional mas também afetiva — em que houve uma cisão no Expresso e um grupo de jornalistas (com os quais até tinha conspirado, para dizer a verdade, mas sem me comprometer) saiu para fundar o Público. Eu optei por ficar no Expresso. Tinha dúvidas sobre a viabilidade de trabalhar num jornal diário. Já o tinha feito, em circunstâncias muito diferentes, no Correio da Manhã, quando ele era dirigido pelo grande Vítor Direito e era muito diferente do que é hoje. Era um tabloide muito politizado. Mais politizado do que dado ao crime, digamos assim. Era quase um tabloide intelectual, muito engraçado.
Isso foi antes de ir para o Expresso?
Foi antes do Expresso, antes do Jornal de Letras. Aliás, também passei uns tempos no Partido Socialista, apesar de nunca ter sido militante.
O que significa “passar uns tempos no Partido Socialista”?
Foi quando o partido estava na oposição. Não havia dinheiro para nada e profetizava-se o fim da carreira política de Mário Soares. A seguir à morte do Francisco Sá Carneiro, Balsemão vai para primeiro-ministro e o partido estava em sérias dificuldades. Mário Soares retirou o apoio ao general Eanes e o ex-secretariado moveu-lhe uma guerra impiedosa dentro do partido. Soares está numa situação de grande fragilidade — se a palavra “fragilidade” se lhe aplica — e eu resolvi ir parar à Rua da Emenda, que era uma coisinha de duas assoalhadas onde o partido estava na altura. Já havia o Largo do Rato, mas ali é que era o centro.
Mas o que é que fazia no PS? Era assessora?
Não, trabalhava num gabinete com o José Manuel dos Santos, o Jaime Gama, que era o chefe máximo do pessoal mínimo, e reportávamos ao Mário Soares e ao chefe de gabinete dele, que era o Jorge Lacão. Basicamente, era o Jaime Gama, eu e o José Manuel dos Santos. Era um gabinete de imprensa, imagem, cultura e coisas várias. Nessa altura, fizemos até um documento que se intitulou “Soares New Look” — eu gosto imenso deste título! Era a ideia de um dia candidatar Mário Soares, que estava no perfeito declínio, segundo os analistas da época — a esquerda toda, o Eduardo Prado Coelho, o Eduardo Lourenço, todos vaticinaram o seu fim —, à Presidência da República. Toda a gente achou que éramos loucos.
Ainda vamos descobrir que é a autora do “Soares é fixe”.
Não, não sou. Entretanto já não estava na Rua da Emenda, da qual saí num ato de grande rebeldia. Sou demasiado livre de pensamento para me dizerem: “Não podes falar sobre isto.” Na altura, houve uma questão importante, que era a despenalização do aborto na fase pré-pré-pré-histórica. Eu já era totalmente a favor da despenalização, mas o partido tinha um eleitorado católico poderoso e, portanto, estava a jogar com o modo como iria lançar o debate na praça pública. E eu escrevi um texto num dos jornais do partido a defender a despenalização. Aquilo foi escandaloso, não para o Mário Soares, mas para pessoas do partido que achavam que eu estava a tomar posição avant la lettre. E aí eu percebi que talvez aquelas regras não se me aplicassem. Trabalhar com o Mário Soares e com o Jaime Gama… eram duas personagens importantes do partido. O Jaime Gama é um intelectual, não é a mesma coisa que o Mário Soares. Mas foi interessante e ajudou-me muito a perceber o mundo. E a perceber o que é a vitória e o que é a derrota. Talvez me tenha ajudado também na minha tomada de decisão relativamente ao Público, que é não hesitar. Quando se vai à guerra, às vezes uma hesitação custa-nos a cabeça. Não hesitar. É tomar a decisão e executá-la. Que é uma coisa que os portugueses têm dificuldade em fazer, na minha opinião.
Foi por isso que no final dos anos 80 resolveu ficar no Expresso.
Achei que o projeto dos que foram fundar o Público era bem feito, mas a mim não me apetecia particularmente. E tinha uma boa relação com o Francisco Balsemão, que ia ficar numa situação complicada com aquela cisão. Havia pessoas que estavam e queriam ir, outras não sabiam o que fazer. Houve pessoas que fizeram uma certa chantagem comercial — eu quero x, só não vou se me derem tanto.
Foi toda a gente aumentada, portanto.
Foi toda a gente aumentada. Aliás, o [José António] Saraiva ainda escreveu num dos livros dele que eu sou responsável pelos altos salários do Expresso (que hoje em dia já não são assim tão altos). Resolvi ficar, mas foi um momento difícil, que nós tentámos administrar da melhor maneira. Éramos todos colegas e estávamos todos juntos na redação do Expresso, em vários andares da Duque de Palmela. Eu fui convidada para dirigir a revista, para ser também diretora, e recusei.
Ou seja, para ficar com o papel do Vicente Jorge Silva.
Sim. Acabou por ficar com ele o Joaquim Vieira, que eu fui buscar e estava de malas feitas para o Público. Eu não queria e nunca quis ser diretora.
Bom, foi diretora da Casa Fernando Pessoa.
Sim, mas isso é outra coisa.
Nunca quis ser diretora de jornalistas, é isso?
Não, não.
Ainda hesitou no Diário de Notícias.
Ainda hesitei no Diário de Notícias, mas depois achei que não queria mesmo. Eu gosto genuinamente de observar e escrever. E gosto de não pertencer a um clube que me aceite como membro.
O que é que se passou nessa altura?
Uma trapalhice. Apareceu uma enorme intriga, de que eu era lá enfiada pelo Santana Lopes. Só quem não conhecia a minha relação com o Pedro Santana Lopes é que podia achar que ele me ia enfiar em qualquer sítio, ou eu a ele. Eu fui convidada por uma pessoa que acho muito boa, de palavra: o Luís Delgado. E pelo Mário Bettencourt Resendes. Eu estava muito reticente, confesso. O meu advogado fez o contrato, mas não o assinei e continuei reticente. Encontrámo-nos diversas vezes. Depois houve imensas pressões políticas — não cheguei a saber exatamente quais, mas houve — de alto. E houve uma entrevista do homem da PT, que era o Miguel Horta e Costa, que sabia de tudo aquilo, a dizer que não sabia de nada e que não tinha sido consultado. Aí eu disse ao Luís Delgado e ao Mário Bettencourt Resendes: “Isto não faz sentido nenhum. Para mim não pode ser assim. E, portanto, eu vou aproveitar…” — é como na peça do Shakespeare, quando já está a chover e alguém diz “aproveito esta aberta e vou-me embora” — “…vou aproveitar para vos dizer que não estou de alma e coração nisto, não conheço esta redação, pressinto hostilidades várias e não me apetece estar a fazer política à frente de um jornal. Portanto, afasto-me.” Inevitavelmente, ia acabar a fazer política à frente do jornal. Eles ficaram muito pesarosos, o Luís Delgado lamentou muito a minha decisão e tentou várias vezes que não a tomasse. Mas decidi tomá-la, até contra o aviso de alguns amigos.
Bom, mas retrospetivamente…
Foi uma decisão bem tomada. Houve gente que me disse: “Mas porque é que tu não entraste? Tinhas um contrato incrível. Depois saías com vários milhares de euros, saías rica e nunca mais precisavas de trabalhar.” Literalmente isto. E eu disse: “Bem, também não é isso que quero, não é essa a minha ideia.”
E foi a sua última tentação como diretora?
Absolutamente. Nunca mais tive nenhum convite, mas também se tivesse… Agora, diretora da Casa Fernando Pessoa foi outra coisa. Não tinha nada a ver. Quer dizer, a Casa Fernando Pessoa era uma coisa que eu genuinamente gostava de fazer. É literatura. Pessoa foi o meu primeiro amor e provavelmente será o último. E não me custou.
Foram só quatro anos, não é?
Foram um bocadinho mais de quatro anos. Eu também me demiti porque, com o Carmona Rodrigues, a relação… Apesar de ter tido uma boa conversa com o então novo diretor de cultura, fui eu mesmo que disse que o Francisco José Viegas seria provavelmente um nome interessante para me suceder. Disse-lhe: “Acho que cheguei ao fim. As coisas que eu queria fazer aqui estão feitas.” Foram muitas obras na casa. Ela estava num estado lamentável do ponto de vista físico, portanto, tive de me ocupar de pintar, pôr lâmpadas, etc.. Mas, quer dizer, a burocracia da Câmara Municipal [de Lisboa] é insuportável. É o Estado no seu pior. Para meter uma lâmpada no tecto eram precisas 35 assinaturas.
Deixe-me voltar atrás. Falou dos tempos gloriosos do Expresso na década de 80. Porquê é que foram gloriosos? Porque havia dinheiro?
Não, porque foram muito divertidos. O dinheiro não nos interessava nada, para dizer a verdade.
Quando falo de dinheiro, digo dinheiro para fazer reportagem.
Não, isso vem depois. Não havia muito dinheiro no princípio. Era mesmo um projeto a fazer uma coisa inteiramente nova em Portugal, que não se parecesse com nada. É um grupo de pessoas extraordinário. O Augusto M. Seabra, que é o grande fundador intelectual do Público. O Vicente, evidentemente, com a sua graça e a sua loucura particular. O Miguel Esteves Cardoso… Repare-se nos jornais que saíram daqui. Não é só o Público. Também há a fundação de O Independente. O António Mega Ferreira, o Eduardo Prado Coelho, a Tereza Coelho, o Alexandre Melo. Depois o Alexandre Pomar… Ou seja, isto era só gente da cultura. E vivíamos todos uns com os outros. Tínhamos uma relação complicada, mas gostávamos muito de trabalhar no Expresso. Eram três andares na Duque de Palmela, não é? Havia um guichet no primeiro ou segundo andar, que era a administração. Nem havia bem uma administração: havia o Francisco Balsemão, que se comportava como um jornalista. E havia um diretor financeiro e tal. Então, lembro-me no guichet de haver uma pessoa que diz: “Está aqui um senhor que diz que se chama Eduardo Lourenço para receber uma colaboração.” Nós chamávamos-lhe a mercearia. Era uma coisa quase primitiva em comparação com o grupo que é hoje. Aquilo cresceu connosco. A revista começa a crescer. Nós não queríamos ter publicidade — queríamos fazer uma coisa com 10 páginas de reportagem seguidas ou um grande texto e não queríamos colocar publicidade, porque era uma coisa que chateava imenso o projeto. Mas nós entendíamo-nos todos. O Francisco Balsemão tem uma capacidade de diálogo com as pessoas… Para já, tem horror a despedir gente, o que é interessante. Nós fizemos ali umas picardias. Eu e o Seabra parámos uma vez a revista porque já não recebíamos há imenso tempo. E porque é que nós não recebíamos? Porque o cobrador da publicidade tinha partido uma perna. É para ver que não havia luxo nenhum! Ganhávamos muito pouco.
Foi nos anos 90 que o dinheiro chegou.
Foi na fase em que a revista se instala como uma máquina de fazer dinheiro, em que já havia outros projetos paralelos, como o Público e O Independente. Mas nesse projeto inicial, naquela loucura inicial em que vivíamos, entre a Cinemateca e o ciclo do John Ford, em que comíamos tudo o que era literatura — eu estava nos livros, mas também fazia outras coisas —, havia margem para entrevistar o Umberto Eco ou fazer alguma coisa em Itália. Enfim, foi um sucesso. Fomos bem sucedidos. Houve muita gente que disse que aquilo não iria para a frente. A gente careta do jornalismo odiava-nos, para dizer a verdade. O Alexandre Melo, o Seabra, eu e acho que o Miguel Esteves Cardoso éramos conhecidos como o “Bando dos Quatro”. É uma coisa que talvez as pessoas hoje não se lembrem, mas o Bando dos Quatro era uma excrescência do maoísmo. Fizemos coisas inacreditáveis. Mas, sobretudo, pela primeira vez fizemos crítica como queríamos fazer. O Miguel escrevia sobre música e sobre espetáculos e dizia aquilo que lhe apetecia. E eu celebrizei-me com um artigo sobre o Miguel Torga, sobre um volume do Diário do Torga, em que fiz um relambório a destruir aquela prosa toda. Enfim, a juventude é… Pronto. Aquilo foi um escândalo imenso porque era o Torga e ele era Deus.
Naquela altura.
Mas nós não tínhamos Deus. A coisa boa é que nós não tínhamos Deus. Eu lembro-me do Alexandre Melo a vender o Almodóvar ao Vicente e a dizer: “Há um tipo em Madrid que faz uns filmes…” Nós íamos muito a Madrid ver concertos. O nosso eixo era Lisboa-Madrid. Passávamos o tempo a ir a Madrid — íamos de comboio, à boleia, nenhum de nós tinha carta de condução nem sabia conduzir. Vivíamos miseravelmente em casas emprestadas ou que tinham sido ocupadas por pessoas anteriormente, estúdios. Mas divertíamo-nos. Do ponto de vista da aprendizagem que fazíamos uns com os outros, era muito interessante, porque discutíamos como matarruanos — no sentido primitivo, em que falávamos de matar o Seabra ou o Seabra ameaçava matar não sei quem. Mas, na verdade, o que nós aprendemos, uns sobre literatura e outros sobre cinema… Havia alguém que sabia muito sobre um setor. Portanto, quando alguém asneirava, a outra pessoa vinha a roncar dos fundos e agitando as mãos e a dizer: “Não é nada disso!” Lembro-me de uma discussão com o Seabra sobre a Mitteleuropa — uma coisa interessantíssima.
Mas também era um mundo muito pequenino ao mesmo tempo, ou não?
Não, não era. Eu era muito anglo-saxónica e tinha a parte toda sobre o que estava a acontecer no mundo americano e no mundo inglês. Havia os franceses. Havia uma guerra enorme com os franceses e com o Eduardo Prado Coelho, que era o chefe de fila dos franceses. Não era nada pequenino, porque nós viajávamos. Eu lembro-me de ir a Paris e ficava num hotel miserável, uma coisa horrível. Uma vez em Paris estava o Vicente, o Joaquim Vieira, e andávamos todos a ver imensos filmes. Eu andava a ver os filmes todos que não tinha visto. O Vicente, nisso, era um ótimo guia. O Seabra também. Andávamos sempre a ver o que se passava. A Gulbenkian na altura tinha um programa absolutamente extraordinário de espetáculos. Eu gostava muito de dança. Nós viajávamos e bem. E, às vezes, conseguíamos viajar através do jornalismo e do jornal, o que foi uma coisa boa. Porque nós não tínhamos muito dinheiro. Não tínhamos um chavo. Em todo esse período, há um encantamento com a profissão que eu nunca tinha tido. Gostava daquilo, do ambiente da redação. Mas aquilo não era bem uma redação: era uma tribo. E era uma tribo com vistas alargadas. Na altura, passava muito tempo entre Londres e Lisboa porque tinha um namorado inglês. E, portanto, circulava entre uma cidade que era a grande metrópole europeia e Lisboa. Lisboa estava muito na moda. Havia aquele mundo do Bairro Alto que começa todo ao mesmo tempo.
Deixe-me mudar de assunto. Um dos casos em que esteve envolvida foi quando o Vasco Pulido Valente escreveu num blogue um famoso texto sobre si.
Há quem diga que não foi ele, que foi a Constança Cunha e Sá. Não faço a menor ideia.
Essa nunca tinha ouvido. Mas o Vasco Pulido Valente afirma, num parêntesis, que a Clara tinha chegado com dificuldades ao 12º ano. E a Clara decidiu processá-lo.
Na altura, não decidi processá-lo. O Vasco e eu fomos grandes amigos numa determinada fase. Porque, aliás, todos os grandes amigos dessa fase desapareceram, criou-se ali um isolamento do Vasco. Mas éramos quase a família dele — o António Pedro Vasconcelos, o António Barreto, a Maria Filomena Mónica, a Teresa Patrícia Gouveia.
Esses estão todos vivos.
Tudo vivo. E eu mesma. Uma vez, o José Cardoso Pires foi a casa do Vasco, onde eu até ia ver partidas de futebol — ele morava ali na Quinta da Luz, à frente do Colombo. E o Vasco tinha as nossas fotografias. O José Cardoso Pires, que nunca ia lá a casa, foi lá jantar, e ficou muito admirado. Disse-me: “Sabes que ele me diz que vocês são a família dele. E eu nem sabia que ele tinha afeto!” O José Cardoso Pires achava o Vasco muito gelado. Mas, de facto, fomos amigos. Ele aturou-me coisas, e eu aturei a ele. E depois houve ali uma fissura. Aquele comentário dele vem na sequência de um texto que eu não devia ter escrito, no Expresso, a brincar com ele, mas na verdade ridicularizando-o, quando o Vasco aceitou ser deputado do PSD, era líder o Fernando Nogueira. O Vasco vai para o Parlamento, e eu achei aquilo impensável, que o Vasco aceitasse ser deputado com o Fernando Nogueira. Achei estranhíssimo. E escrevi um texto idiota. Eu mesma depois percebi. Foi desleal, sobretudo. Já tínhamos tido uma coisa, ele dizia “bom, você já não é minha amiga”. Não era verdade, eu tinha tido um filho, tinha uma vida mais complicada. Mas escrevi aquele texto. E eu suponho que ele terá ficado muito ofendido comigo. E com razão. E depois aparece aquela coisa no blogue, e então fiquei eu muito ofendida. Aquele atrasado mental, e tal.
Isso já foi bastante depois…
De maneira que eu tenho sempre um método, que é insultar, queria atirar-lhe com um copo de whiskey no Gambrinus, eu queria o melodrama. Mas depois um amigo meu advogado aconselhou-me antes a processá-lo. Foi uma idiotice, o processo, mas enfim. O que é certo é que o processei. O Francisco Teixeira da Mota foi o advogado dele, e era muito bom. Devia ter sacado o Francisco Teixeira da Mota para mim. Tive de ir a Coimbra pedir os diplomas, para provar que tinha ido mais além do que o 12º ano. Um disparate completo.
Mas porque é que aquela acusação a tocou tanto?
Chateou-me muito por termos sido amigos. Se tivesse sido outra pessoa qualquer… E porque ele sabia perfeitamente que aquilo não era verdade, e portanto achei inacreditável. O texto não era só o 12º ano, o texto era brutal. Chamava-me analfabeta, dizia que eu não sabia isto, nem aquilo. O texto não parecia o estilo dele. Normalmente não usa aquele vocabulário. E eu conheço bem o vocabulário do Vasco. Portanto, teve ajudas, sim. Eu não devia ter escrito a outra coisa. Foi acintosa e estúpida. Escrevi muitas coisas de que me arrependo na minha vida, evidentemente. Mas estava irritada.
Este é o último programa do Artigo 38, e não poderia deixar de falar consigo de José Sócrates. Tenho de lhe fazer justiça, porque até hoje acho que foi a única pessoa que durante muito tempo admitiu ter alguma admiração pela personagem de Sócrates, e que já veio publicamente dizer “eu enganei-me”.
Completamente.
Não vi muita gente ter a sua atitude. O que eu gostaria de perceber são duas coisas: o que é que a fascinava nele…
Não, nunca fui fascinada pelo José Sócrates. Achava que ele tinha qualidades políticas.
Então que qualidades políticas eram essas, para de certa forma entender que ele era um bom primeiro-ministro, e depois quando é que se dá a rutura, e a necessidade de o afirmar publicamente.
Eu não cheguei a ter rutura, porque nunca fui dos círculos de José Sócrates. Nunca. Nem mesmo na fase em que ele já estava muito próximo do Mário Soares. Sempre o mantive à distância de um braço. E acho que fiz bem.
Conheceu-o pessoalmente?
Falei três vezes na vida com o José Sócrates. E peço desculpa se não me lembrar da quarta. Mas foram três vezes. A primeira foi numa situação muito cómica que eu não resisto a contar. Fui fazer uma conferência a Castelo Branco. Não me lembro em que ano é que isto é, exatamente. Sei que Eduardo Ferro Rodrigues é candidato à liderança do partido, a seguir ao Jorge Sampaio. E eu fui a Castelo Branco.
Deve ter sido por volta de 2002.
Então estou na Casa Fernando Pessoa e era sobre o Fernando Pessoa, seguramente. Fui fazer essa conferência, sobre literatura, dado o meu currículo nessa área. Chego ao hotel de Castelo Branco, e de repente está tudo cheio de políticos no lobby. De um lado estão políticos do PSD, do outro lado estão políticos do PS. E eu disse: “O que é que se passa aqui hoje?”. E disseram-me: “Há um grande comício do PS, e um grande comício do PSD ao mesmo tempo”. Pelo PSD a candidata era a Maria Elisa, ou pelo menos a pessoa que ia falar no comício era a Maria Elisa, que também tinha resolvido ser deputada. E pelo PS era o Sócrates. O grande orador da noite, porque era o círculo dele. E eu tinha escrito uma coisa terrível sobre o António Guterres, de crítica. Já no fim do governo de Guterres. E o Sócrates era daquele triunvirato: José Sócrates, Pina Moura e Jorge Coelho.
Exato.
Eram os três meninos do Guterres que dirigiam o país quando o Guterres não estava cá. E tinha sido um bocadinho sobre isso. Criticando o modo como a pátria estava e fazendo as comparações com a Roma Antiga, a ser dirigida por três homens, porque o Guterres não estava nenhum tempo, e portanto nada daquilo fazia sentido. Quando chego a Castelo Branco, faço o check in, estava com a mala, entro no elevador, que era muito estreito, e de repente veio um tipo em linha reta em direção ao elevador, abre a porta e entra. Mete-se à minha frente, não me cumprimentou, não disse “boa tarde”. “Isto é o Sócrates”, pensei eu. E para quebrar um pouco o gelo, disse: “Então hoje há um comício do Partido Socialista?” Ele voltou-se para mim e respondeu: “Desculpe? não estou a reconhecê-la” Eu penso: “Realmente, este tipo é notável.” E chegámos ao segundo andar, ele ia para o terceiro. Eu voltei-me para ele, abri a porta, e disse: “Pois, olhe, eu não posso deixar de o reconhecer, porque a única fotografia que há em Castelo Branco do Partido Socialista é a sua cara. E o Ferro Rodrigues está morto aqui. Parece que o José Sócrates vai ser o líder do partido.” E fechou-se a porta. Ele ficou lá dentro a soprar sozinho. Mas pensei: “Ok, este tipo é corajoso. É um tipo com determinação, não há muita gente que tenha a lata de me fazer isto.” Depois, voltei a encontrar o dito Sócrates numa viagem do Jorge Sampaio a Istambul, numa viagem de Estado, em que fui como diretora da Casa Fernando Pessoa. Nessa viagem o Sócrates era deputado, e lembro-me dele no hall do hotel com um monte de tapetes. Tinha ido aos bazares e investido muito em tapetes. Eu disse “boa tarde”, cordialmente. E foi tudo cordial, mas não falei com ele. Depois voltei a encontrá-lo numa coisa do Mário Soares quando José Sócrates já é primeiro-ministro. Cumprimentou-me muito efusivamente e com muita simpatia. Já estava próximo do Soares. Mas, tirando isso, só volto a falar com ele quando o entrevisto.
A famosa entrevista dos palavrões.
Exatamente, dos palavrões. Em que eu achei que ele estava à vontade para dizer aquilo, e ele não me tinha dito “não ponha lá os palavrões”. E eu pus. Acho que aquilo é o José Sócrates. Numa primeira fase gostou muito da entrevista. Depois, numa segunda fase, quando teve repercussões políticas, não gostou da entrevista. Isso é-me completamente indiferente. Mas em todos esses processos, quando ele começa a ser atacado no Caso Freeport — e é aí a origem da minha defesa do José Sócrates, porque vêm acusações da parte do PSD, de um modo sibilino por parte de Santana Lopes, de que José Sócrates seria homossexual, e que teria tido um caso com Diogo Infante, e havia ainda umas histórias estranhas sobre a PJ e Setúbal —, eu começo a olhar para o Caso Freeport e o escândalo da homossexualidade, e penso: “Este tipo, provavelmente como é um líder forte, um tipo determinado, estão a tentar matá-lo.” Essa era a minha versão. E depois, claro, engoli aquela história de que ele era rico porque a mãe era rica. Sim, acreditei nisso tudo. Ele, aliás, reiterou isso tudo quando esteve comigo na entrevista. Que não tinha dinheiro, que era a mãe. Eu faço-lhe essas perguntas todas. Aliás, deu-me boleia depois disso, muito amavelmente. E era um carro velho, que ele disse que era o carro da mãe. Portanto, o meu convívio com o Sócrates limita-se a isso. E não mais. Depois, com grande espanto, começo a ler as investigações jornalísticas, o rasto de papel, e vou de espanto em espanto. E quando ele próprio admite que o dinheiro é do amigo… A história do amigo ninguém sabia. Aquele amigo que vai pagando as contas do hotel, e as contas disto e daquilo, mais o dinheiro da Suíça. As pessoas podem dizer que há uma presunção de inocência, mas um primeiro-ministro não vive à custa dos dinheiros de um amigo. Nem anda com o amigo, que ainda por cima tem negócios que estão próximos dos negócios que o primeiro-ministro contratou quando foi à Venezuela, etc., etc. Portanto, tudo aquilo me parece altamente suspeito. Há um narcisismo naquela personagem inquietante e perigoso, e há ali uma garra que tem a ver com esse narcisismo, que é patológico.
Quando olha para trás, considera José Sócrates uma personagem singular? Porque há muita gente que acha que ele tem, no máximo, uma diferença de grau em relação a outras personagens semelhantes.
Sim, sem dúvida [que Sócrates é uma personagem singular]. É um Rastignac, uma personagem do Balzac, alguém que vem da província e de um meio pequeno, para a grande cidade, onde se instala e convence toda a gente. Eu lembro-me que a certa altura houve uma querela entre o Manuel Alegre e ele. E eu perguntei: “Ó Manuel, quem é o José Sócrates?” E lembro-me do Manuel Alegre dizer: “Ó Clara, é um puto rico que dá dinheiro ao partido.” Foi exatamente o que ele me disse. E eu pensei: “Bem, ok, pronto, é alguém que é socialista, e que apoia o partido”. O PS tinha sempre uns altos e baixos, dinheiro, não dinheiro, conforme se está no poder ou na oposição. Mas o Sócrates tinha sempre aquele lado provinciano. Eu li Maquiavel… Isto tudo começa com uma reportagem do Expresso, que resolve espiá-lo no Seizième [NA: uma das zonas mais nobres de Paris], e repara que ele tem uma vida não milionária, mas parecida, ou seja, acima das possibilidades não só dele mas também da mãe — e dos empréstimos da Caixa. Portanto, eu comecei a achar aquilo tudo muito estranho. Mas isso está na entrevista, e ele disse-me que o político europeu que admirava — não sei se isso terá sido em off, agora não me lembro, mas olha, se era off agora vai — era o Berlusconi. Ele achava o Berlusconi uma personagem interessante. O Berlusconi é um multimilionário, Sócrates não era. E eu acho que, nalgum ponto da sua carreira, este homem desejou ser um multimilionário. E apaixonou-se por essa vida, que não era a dele. E, sobretudo, não era a vida de um primeiro-ministro.
Também foi bastante crítica, já num outro sentido, nos tempos de Passos Coelho e Miguel Relvas. Hoje em dia, quando olha para trás e para esse momento do PSD, acha que foi excessivamente agressiva para Passos?
Eu nunca critiquei tanto Passos como o facto de ele ter como kingmaker o Miguel Relvas, que é quase uma personagem desprezível, sinceramente. Do ponto vista político, pessoalmente não o conheço. Mas politicamente é uma categoria desprezível, para mim. É um homem de negócios a fazer política para fazer negócios. Eu ainda tenho a noção de que as pessoas devem ter alguma paixão política, e que não deve ser um meio para obter outros fins. O Passos Coelho, não. O Passos Coelho foi um bocado atropelado pelos acontecimentos. Pareceu-me sempre altamente inseguro, ao contrário do que as pessoas dizem. Uma pessoa determinada nas decisões, mas inseguro na tomada de decisão. Acho que ele tomava a decisão com insegurança e depois executava a decisão com segurança. E acho que teve o discurso completamente desadequado à dureza da situação. Mesmo que ele acreditasse que era preciso ir além da troika, aquilo a certa altura o que soava era: “Não queremos combater a pobreza, queremos combater os pobres”. E depois a prepotência de Relvas nos media, Relvas com a bandeira portuguesa numa entrevista ao Expresso. A história do programa em Angola, em que ele quase exige que se dissesse no programa da RTP que não há corrupção em Angola. Tudo isto era demais para mim. A política do sebo não me agrada. E tive pena de Passos Coelho, que tinha algumas pessoas com mérito junto dele. O próprio Vitor Gaspar era um técnico competente, ainda que ideologicamente não tenha nada a ver com aquilo que eu achava que estava certo para o país. Tinha o Moedas, que é uma pessoa com mérito. Portanto, havia gente no Conselho de Ministros. Mas por alguma razão o Relvas passou à frente deles todos, o Moreira da Silva, etc., de um núcleo de gente que eu espero que ainda regresse ao PSD, ou pelo menos venha a fazer política dentro do PSD. O Relvas acabou por ser o irmão gémeo do Passos Coelho, e o Passos Coelho foi punido por isso. E depois, dizia-se que o conselheiro do Relvas era o Dias Loureiro. Enfim, que, de facto, era um estratega brilhante, mas para mim não era exatamente o modelo ideal.
Uma última pergunta, Clara. Como é que está esse seu segundo romance?
Olhe, está na fase da escrita. Descobri que trabalho muito mal em casa, porque a Netflix é uma espécie de cocaína visual. Nunca tomei cocaína, ou então, se tomei, espirrei, como o Woody Allen. Portanto, a Netflix estava a dar-me cabo da vida, e resolvi agora arranjar um outro espaço. Eu passo muito tempo a pensar. Os meus livros são muito pensados. Antes tomo muitas notas. Agora até tomo notas no telemóvel. Espalho notas por tudo o que é lado. Depois, ponho um papel e faço um diagrama com as personagens, o que é que elas fazem, já tenho isso tudo. Agora vem o que é chamado literatura, ou sumo, que é sentar-me e escrever, coisa que já comecei também a fazer, e que está a correr bem. Este período do ano para mim é muito criativo, a primavera para mim é péssima, fico sempre deprimida e triste. Não sei, não gosto da luz da primavera. Tenho que aproveitar agora o inverno e a lareira, e vou fazê-lo, espero.