A Comissão Independente que estuda os abusos sexuais praticados por membros da Igreja em Portugal está a avaliar 30 testemunhos de vítimas que podem vir a ser entregues ao Ministério Público para procedimento criminal. Até agora, a comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht tinha enviado 17 denúncias e, dessas, sete estão a ser investigadas. Há, porém, uma nova questão que agora se percebe das palavras do ex-ministro da Justiça, Laborinho Lúcio, que também integra este grupo de trabalho: a ocultação.
Os membros da comissão recusam comentar os casos de alegada ocultação de abusos que têm vindo a público, os mais recentes sobre o próprio presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, que esteve na origem da criação da comissão. Mas, perante a realidade que já chegou ao conhecimentos do seis especialistas que integram a comissão, Laborinho Lúcio não deixou esta terça-feira de afirmar que “houve claramente ocultação” por parte da Igreja. “Temos os abusos na igreja, a sua ocultação, e agora uma ocultação da ocultação. E aí aqueles abusos passam a ser da Igreja. Isto depois será tratado por nós mais convenientemente no relatório final”, antecipou na conferência na Fundação Calouste Gulbenkian que assinalou os nove meses de trabalho da comissão.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o trabalho da Comissão Independente.
Pedro Strecht foi mais descritivo e sublinhou que, dos casos ali chegados, concluiu-se que existiram “diversas situações em que o mesmo alegado abusador é referido por diferentes pessoas ao longo dos anos” e em locais diferentes — revelando assim a prática da Igreja em colocar os padres suspeitos em locais diversos para exercer a sua atividade religiosa e em que os crimes persistem.
“As situações reportadas cruzam já bastante informação idêntica, facto que reforça a consistência dos depoimentos e traça quadros graves existentes ao longo de décadas, mais evidentes quanto mais para trás se recua no tempo, sendo que, aí, e em alguns locais, assumiram proporções verdadeiramente endémicas, atingindo crianças de ambos os sexos”, disse Pedro Strecht.
O relatório final será apresentado ao público a 31 de janeiro de 2023, também na Gulbenkian. À Igreja será entregue uma lista dos padres visados, porque no direito canónico não há prescrição, e ao Ministério Público uma lista dos que ainda estão vivos, para “prevenção criminal” e não para ação criminal, por haver casos em que os crimes já podem ter prescrito.
O psiquiatra Daniel Sampaio lembrou, porém, que ao fim de nove meses de trabalho também é possível detetar outros níveis de ocultação que começam logo no seio familiar. “Claro que houve ocultação da hierarquia da Igreja, mas houve ocultação das famílias que não quiseram denunciar o senhor prior”, acusou. “Porque muitos queixaram-se e ninguém quis falar. Essa ocultação existiu até pelos colegas de seminários, nós temos denúncias que apontam colegas que não querem falar”, disse, embora justificando que tendo em conta o crime em questão esta ocultação pode ser quase uma defesa, até porque grande parte destas vítimas sofre de stresse pós-traumático.
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“Centenas” de abusadores identificados
A três meses de a comissão terminar o trabalho, há já “centenas de abusadores identificados” entre 1950 e 2022, embora alguns já tenham morrido. Há também 424 testemunhos validados, oito dos quais enviados pelas comissões diocesanas criadas antes desta Comissão e que funcionam em cada diocese do país. “A maior parte das situações encontra-se juridicamente prescrita, facto que explica a grande diferença entre o número de vítimas reportado e aqueles que foram enviados para o Ministério Público”, explicou Pedro Strecht. É que os crimes sobre menores prescrevem quando as vítimas completam 23 anos de idade.
Laborinho Lúcio, juiz conselheiro jubilado, deixou também claro que não é objetivo da comissão receber casos para denunciar às autoridades policiais. Mas há uma obrigação legal, se os membros deste grupo de trabalho forem equiparados a “funcionários”, tal como há um dever de cidadania em denunciar crimes públicos. Aqui são consideradas todas as vítimas dos zero aos 17 anos, embora a lei preveja que só os crimes de abuso sexual até aos 14 anos sejam considerados públicos (entre os 14 e os 16 são considerados atos sexuais com adolescente e o crime é considerado semi-público).
No entanto, ressalvou o magistrado, toda a informação enviada ao Ministério Público obedece à promessa de confidencialidade que os membros da comissão estabeleceram com as vítimas. Por isso, só chegam às autoridades informações sobre os suspeitos da prática de crimes (e não das vítimas), o que poderá dificultar uma investigação criminal. Laborinho Lúcio explicou que os casos em que aparentemente não há prescrição seguem para as autoridades.
“Não somos nós quem julga a prescrição, enviamos sempre com uma margem de erro por poderem ter uma interpretação duvidosa. Nesse domínio, foram enviados 17 casos. Definimos até fim de outubro o estudo dos outros 30 casos”, disse Laborinho Lúcio.
Mesmo assim, segundo Pedro Strecht, a comissão tem tido contactos com a Polícia Judiciária sobre casos que já terão sido investigados e que por isso dispensam nova sinalização ao Ministério Público.
Publicidade, mas mesmo assim amostra não revela dimensão dos casos
Em junho a comissão tinha validado 338 queixas de abuso e chegou a avançar alguns dados sobre as idades das vítimas, a sua escolaridade e os locais de onde vinham as queixas. Na altura percebeu-se que havia regiões negras no país, de onde não vinha uma única queixa, e a comissão decidiu apostar na divulgação do seu trabalho, através de panfletos nas dioceses, nos centros de saúde e numa revista da Associação Nacional de Farmácias dos contactos da “Dar Voz ao Silêncio“.
Nessa altura, ponderava-se mesmo aplicar um método frequente nos estudos sobre abusos sexuais, conhecido pelo efeito iceberg, em que o número de denúncias reportadas é multiplicado para tentar aprimorar a noção da realidade global. Neste caso, considera-se que apenas 20 a 25% dos casos são de facto denunciados, portanto, perante este cenário, em Portugal podíamos estar já perante 1500 vítimas de abuso sexual por membros da Igreja.
Esta extrapolação terá sido para já abandonada, segundo a socióloga Ana Nunes de Almeida. Porque, ao contrário do que aconteceu com a comissão independente criada em França para estudar os casos de abuso naquele país, em Portugal a amostra até agora conseguida “não é demonstrativa da população portuguesa”. Em junho, a maior parte das vítimas (quase 60%) é do sexo masculino, licenciada, e a maior parte dos denunciantes tem entre 44 e 66 anos.
Uma idade que, de acordo com Laborinho Lúcio, poderá servir de base para uma futura proposta de alteração legislativa no que toca à prescrição destes crimes. A lei atual prevê que o crime de abuso sexual contra menores prescreva aos 23 anos da vítima, mas já houve propostas no Parlamento para esta idade ser estendida para os 45 e para os 50 anos — projetos que caíram com a queda do Governo.
No entanto, Ana Nunes de Almeida abre a hipótese de colocar no relatório final um dado retirado dos inquéritos que as vítimas preenchem online: aquele onde lhes perguntam se sabem se o seu abusador fez mais vítimas. “Aqui as respostas são muito díspares. Há quem conheça duas ou três pessoas ou todos da turma, todos do seminário, todos os que se preparavam para fazer o crisma, por isso teremos o número de pessoas potencialmente afetadas, mas sem extrapolação, porque não temos a mesma fonte que têm os franceses”, explicou.
A comissão vai continuar a contabilizar, para efeitos estatísticos, os testemunhos que chegarem até ao final do mês de outubro. Os que chegarem em novembro e dezembro serão registados, mas não para a estatística que será conhecida a 31 de janeiro.
A Conferência Episcopal Portuguesa enalteceu em comunicado o trabalho da comissão e apelou às vítimas para que denunciem os casos. “Reiteramos o nosso pedido de perdão às vítimas e a nossa determinação em tudo fazer para que, no futuro, tais crimes não se voltem a repetir.”