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Há décadas que a Síria de Bashar al-Assad é próxima do Irão. Ao contrário do que acontece na maior parte da Ásia ocidental, Teerão continua a apoiar (política e economicamente) o regime sírio. Em setembro defrontaram-se na capital iraniana. Isto no desporto, claro. Fora do relvado são e continuarão a ser aliados.
A seleção do Irão (treinada por Carlos Queiroz) estava já apurada para o Mundial do próximo ano. Mais: não sofrera qualquer golo nos últimos nove jogos da fase de qualificação. Quanto à Síria, as vitórias nos jogos anteriores contra o Quatar e o Usbequistão davam-lhe a possibilidade de, no derradeiro encontro, se apurar para o play-off de acesso ao Mundial. Mas era necessário vencer ou empatar contra os iranianos. Poucos acreditariam que seria possível: a Síria era o underdog da fase de qualificação asiática. Uma fase de qualificação que até começou mal, com apenas dois golos marcados nos sete primeiros jogos. Depois melhoraria, com sete golos nos três últimos jogos até defrontar o Irão.
Em Damasco, a população síria encheu as ruas, assistindo ao jogo contra o Irão em ecrãs de televisão que o regime de al-Assad instalou nas várias praças da capital.
Syrian commentator breaks into tears after Omar Al-Somah's historic goal against Iran. Goosebumps. https://t.co/MSUC2IBCD0
— Mohamed Osama (@TheMOsama) September 5, 2017
E a Síria até chegaria primeiro ao golo, por Tamer Haj Mohamd. O Irão empataria perto do intervalo e viraria o resultado do avesso pouco depois do recomeço. Em tempo extra, no derradeiro sopro, o sírio Omar Al Somah empatou o jogo a dois. O empate seria mesmo o resultado final e, historicamente, a Síria teria a possibilidade de se qualificar para um Mundial de futebol, defrontando a Austrália no play-off asiático de outubro. Sobre o relvado, os jogadores sírios começaram a ajoelhar-se e, curvados, rezaram por alguns minutos. Choravam. Choravam muito. E ergueram e agitaram bandeiras sírias. Longe de Teerão, em Damasco, o céu preencheu-se com o fogo de artificio. Curiosamente, no mesmo dia em que a seleção de futebol fazia história, as forças do regime de al-Assad acabavam de recuperar a cidade de Deir ez-Zor ao Estado Islâmico, meses depois da tomada desta pelo grupo terrorista e de violentos confrontos que resultaram na destruição quase total da maior cidade da parte ocidental da Síria.
O regime de Bashar al-Assad legitimava-se diante da população. Pelo menos em Damasco.
Uma população que desde que a Guerra Civil começou, há seis anos, perdeu 470 mil habitantes — a maioria morta pelo próprio regime de al-Assad. Metade da população síria é hoje refugiada noutros países. E a esperança média de vida decresceu nos últimos anos de setenta para cinquenta e cinco anos. Há medo. Há destruição. Há miséria. Mais até do que a tomada de Deir ez-Zor pelo regime, era a seleção de futebol que vinha “camuflar” o regime ditatorial no país.
Mas há ou não interferência direta de Bashar al-Assad no futebol sírio? Há. Sobre variadíssimas formas – e contornando as regras da FIFA que impedem tal interferência.
Dezenas de futebolistas foram assassinados pelo regime
A seleção de futebol tornou-se num instrumento de propaganda do regime sírio. Um dos episódios desta apropriação do desporto pela política aconteceu em 2015, em Singapura. Na conferência que antecederia o jogo, o então selecionador sírio Fajer Ebrahim surgiu na sala de imprensa vestindo uma t-shirt com o rosto de al-Assad, referindo-se mesmo ao presidente sírio como “o melhor homem do mundo”. Quando questionado sobre se aquela era uma posição política da sua parte, respondeu que “tudo está relacionado hoje em dia”. E acrescentou, Ebrahim: “Nós [seleção] sabemos que o nosso presidente é um homem decente, o melhor homem do mundo. Sem o presidente a Síria estaria hoje destruída”.
A própria seleção, nas camisolas de jogo, não utiliza os apelidos dos jogadores mas apenas inscrição “Síria”.
Ora, o regulamento da FIFA é bastante claro quando proíbe toda e qualquer interferência política no futebol ou vice-versa. Na última década, e sempre que tal sucedeu, o organismo que rege o futebol mundial sancionou seleções nacionais em vinte ocasiões, impedindo-as de competir a nível internacional. Agora, e quando é confrantada com a situação vivida na Síria, a FIFA apenas responde que esta é “trágica” mas está “para lá da jurisdição desportiva”. Ainda assim, e mesmo não impedindo a Síria de competir, a FIFA atuou. E cortou os prémios financeiros à Federação síria depois das sanções impostas ao regime de al-Assad pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
Se é certo, como explica o Syrian Network for Human Rights, que o regime de al-Assad “usa o desporto para apoiar as suas brutais práticas de opressão”, a interferêcia governamental na Síria vai ainda mais longe. Uma investigação da Outside Lines vem denunciar que o regime é responsável pela morte de pelo menos trinta e oito jogadores nas duas principais divisões do futebol sírio. Outras dezenas tiveram igual destino nas divisões inferiores. Treze jogadores continuam desaparecidos até hoje. Em declarações à ESPN, o vice-presidente da Federação Síria de Futebol, Fadi Dabbas, afirmou que a morte de futebolistas por parte do regime é “falsa”, acrescentando que este “apenas protege o povo sírio”. Mais, disse Dabbas, a seleção “representa-se a si mesmos [e não a Assad]”, sendo “politicamente neutra”. Em seguida, na mesma entrevista, o vice-presidente desdiz-se: “A qualificação para o Mundial unirá os sírios. Vai provar ao mundo que a Síria está bem, que tem um rumo. A Síria joga pelo seu presidente, qualquer sírio dentro da Síria representa Bashar al-Assad — e o presidente representa-nos a todos”.
No entanto, e contrário do que afirma Fadi Dabbas, não é mentira que o regime de Bashar al-Assad seja responsável pela morte futebolistas sírios. Alguns sobreviveram à morte e contam agora o que vivenciaram. Jaber al-Kurdi era futebolista do Taliya. Foi preso em 2013 na cidade de Hama, acusado de ser opositor do regime. À ESPN, al-Kurdi garante que “nunca disparou uma bala” contra as tropas leais a al-Assad. Depois de Hama, seria transferido para Homs e, finalmente, para Damasco. Esteve nove meses na prisão. Jaber al-Kurdi ocupava em Damasco uma cela exígua com outros doze presos. Volta e meia, os guardas prisionais agrediam-no à bastonada — isto quando não o torturavam com choques eléctricos na cabeça. Acabaria por responder pelas acusações num tribunal militar sírio. Foi declarado inocente e libertado. Mas antes de ser libertado, um dos guardas prisionais cortou-lhe o indicador. “Cortou-mo para que nunca mais me esquecesse da prisão”, explicou o futebolista à ESPN.
Hoje, Jaber al-Kurdi é refugiado na Alemanha. Continua a jogar futebol num clube amador: o Free Syria.
O capitão que o medo fez regressar à seleção
Durante anos, e após o começo da Guerra Civil, o campeonato sírio disputou-se somente em duas cidades: Damasco e Latakia. Em janeiro, os rivais de Aleppo, Ittihad e Hurriyah, defrontaram-se pela primeira vez na cidade desde 2012. Mas a seleção não joga na Síria — a FIFA impediu a realização de qualquer jogo internacional no país enquanto não cessar a Guerra Civil.
Então, onde joga a Síria? Longe, bem longe: a mais de dez mil quilómetros de distância. Habitualmente, a Síria jogava na capital Damasco, perante uma média de trinta e cinco mil espectadores a assistir. Hoje, atua em Malaca, na distante Malásia. A viagem (de Tashkent para Istambul e de Istambul para Kuala Lumpur) demora cerca de vinte horas. O estádio Hang Jebat é até maior do que os de Damasco — tem lotação para quarenta mil espectadores –, mas sírios nas bancadas são pouco mais de uma centena em cada encontro, estando estas desertas de público. No começo, e logo que se soube da proibição da FIFA, a Síria optou por jogar em Oman. Mas o sultanato voltaria costas a Bashar al-Assad meses depois — como variadíssimos outros países vizinhos. Macau ofereceu-se para acolher os jogos caseiros da Síria, mas acabaria por dar o dito por não dito, surgindo depois apenas Malásia a oferecer-se para “casa” da Síria na qualificação para o Mundial.
Firas Al Khatib não participou num só encontro desta qualificação asiática. É o capitão da seleção síria. E considerado por muitos como o melhor futebolista de sempre no país — os restante atuam na própria Síria ou em ligas periféricas. Em meados de 2012, ele e Omar Al Somah (o tal do golo no Irão) recusaram voltar a representar a equipa nacional. Pelo menos enquanto os bombardeamentos contra civis sírios por parte do regime de al-Assad não terminassem definitivamente. Somah acabaria por regressar pouco depois. Khatib não. Muitos veem-no como um traidor, próximo dos opositores dos regime; outros veem-no como um herói sírio, idolatrando-no. Em Hom, Khatib é um ídolo. Nasceu lá. E com o dinheiro que amealhou a jogar na Bélgica, China ou Kuwait, Firas Al Khatib erigiu uma mesquita e o estádio de futebol do clube local, o Karama. Em homenagem ao futebolista de trinta e quatro anos, seria atribuído o seu apelido a uma rua da cidade.
Agora, e cinco anos depois de se afastar da seleção, Firas Al Khatib aceitou regressar para disputar os encontros do play-off asiático com a Austrália. Nihad Saadeddine, amigo próximo de Khatib e também jogador de futebol, afirmou à ESPN que se ele regressasse à seleção seria relegado para “o caixote do lixo da história”, onde estão “todos aqueles que apoiam os crimes de Bashar al-Assad”. E garantiu mais: que não voltaria a falar com Khatib.
Mas afinal, porque regressou o capitão sírio? O próprio explica: “As pessoas perguntam-me porque mudei de opinião. Mudei apenas por causa do futebol e não por qualquer decisão política. Queremos ser felizes – e o futebol pode fazer-nos felizes. Tudo na Síria hoje em dia nos entristece muito.” Mas a razão não é apenas esta. “Tenho medo. Tenho medo… Hoje, na Síria, se falas, alguém te pode matar. O que me aconteceu foi muito complicado. Não posso falar sobre isso. É melhor assim. É melhor para a minha família se não falar sobre isto. É melhor para todos”, explicou Firas Al Khatib. Terá isto sido o jogador ameaçado pelo regime? O jornalista desportivo sírio Anas Ammo, hoje refugiado na Turquia, acredita que sim, explicando que o caso de Khatib não é o primeiro. “Os jogadores são obrigados a jogar porque tem as famílias sob ameaça. [O regime] mata-as se não aceitarem jogar”, explicou Ammo à ESPN, acrescentando que na seleção há futebolistas anti-regime (como Khatib) e pró-regime. Aqueles que são contra a governação de al-Assad, veem muitas vezes os passaportes ser apreendidos, o que os impede de abandonar o país.
“Aconteça o que acontecer, doze milhões de sírios vão amar-me e outros doze milhões [os refugiados] vão querer matar-me”, explicou o capitão à ESPN. E desabafou em seguida: “Todos os dias, antes de adormecer, pensava durante uma ou duas horas na decisão que tomei. Foram os tempos mais duros da minha vida. Não regresso porque quero jogar na seleção ou porque apoio o regime ou deixo de apoiar; regresso porque quero visitar os meus pais”. Khatib não visitava a família em Hom há precisamente cinco anos, desde que abandonara a seleção.
Outros há que abandonaram a seleção e prometem não regressar enquanto Bashar al-Assad não for deposto. É o caso de Firas al-Ali. Tal como Khatib era internacional sírio. Quando soube que o primo de treze anos tinha sido morto num bombardeamento do regime, abandonou a concentração da equipa nacional para não mais regressar. Hoje vive com a mulher e três filhos no campo de refugiados de Karkami, no sudeste da Turquia. E garante que voltar representar a seleção como Khatib o aceitou fazer seria uma “desonra”. “É algo que simplesmente não poderei fazer. Se jogasse, estaria ser um traidor para todas aquelas crianças que foram mortas pela tirania e opressão [de Bashar al-Assad]. Os jogadores que continuam na seleção carregam a bandeira da morte”, explicou.
“O que vai mudar se derrotarmos a Austrália? Nada”
Na manhã desta terça-feira, em Sidney, a Austrália vai defrontar a Síria no segundo e derradeiro encontro do play-off asiático de apuramento para o Mundial. O primeiro (onde Firas Al Khatib foi titular, regressando à seleção nacional) terminou empatado: 1-1. Agora, à Síria bastará uma vitória ou um empate (por dois ou mais golos) para estar mais próxima, e pela primeira vez, da fase final de um campeonato do mundo. Se vencer, terá que defrontar o quarto classificado da última fase de qualificação da América do Norte, Central e Caribe (CONCACAF) — neste momento é o Panamá, mais ainda há um jogo por disputar e Honduras ou Estados Unidos também podem terminar em quarto.
O médio Zaher Midani afirmou antes do jogo da primeira mão com os socceroos: “A motivação é enorme: é a de fazer o povo sírio feliz. Os jogadores e equipa técnica esperam conseguir unificar o povo”, concluindo depois: “A Austrália pode até ter jogadores de maior gabarito e melhores talentos individuais. Mas nós temos um potencial enorme que resulta da nossa prestação enquanto grupo”.
A seleção número setenta e cinco do ranking da FIFA pode orgulhar-se do coletivo — caso contrário não chegaria ao play-off decisivo. Mas as críticas à qualidade do futebol praticado pela seleção são muitas. Sobretudo por causa das prolongadas pausas nas partidas. No jogo disputado em setembro do ano passado na Malásia contra a Coreia do Sul, por exemplo, o guarda-redes Ibrahim Alma lesionou-se (ou afirmou que se lesionou ao árbitro) sete vezes. Sete. E perdeu doze minutos e quarenta e seis segundos a ser assistido pela equipa médica síria. A assistência mais demorada custou três minutos de tempo útil num jogo que terminou empatado a zero. Alma voltou sempre ao jogo depois da assistido, claro. No final, o capitão coreano Ki Sung-yueng afirmou que o jogo foi um “embaraço” para o futebol asiático.
Hesham Jreedah é refugiado sírio em França. Vive a poucos quilómetros da capital Paris. Mas Hesham não é apenas um refugiado sírio como outros milhões mais na Europa: é ex-futebolista, campeão nacional no Al-Jaish e internacional pela seleção do país. Tem hoje 33 anos. Ao Observador, Hesham Jreedah explica que os sírios são melhores do que o que aquilo que se viu frente à Coreia do Sul. E vão demonstrá-lo na Austrália. “Nós temos jogadores muito, muito bons. Acredita em mim, my friend: temos. Infelizmente, abandonaram o país com o início da Guerra Civil. Na Grécia conheci três jogadores da seleção que fugiram. Outros estão na Alemanha ou na Turquia. O governo é mau. Não há futuro na Síria. Então, os jogadores têm que fugir”, explica.
Apesar da distância, Hesham continua a assistir com fervor ao encontros da seleção síria. “É difícil seguir os jogos da seleção aqui em França. Não vejo a televisão síria, por exemplo. E no começo só sintonizava canais franceses. Mas agora consigo, através da Internet, assistir ao jogos num canal da Etiópia… [Risos] Mas claro que estou muito feliz com os últimos resultados, my friend.” Hesham, além de futebolista no Al-Jaish, foi também professor de educação física em Damasco. “Deixei a Síria porque o governo queria que me alistasse no exército. Já o tinha feito há dez anos. Mas isso foi antes da Guerra Civil. Não queria combater contra o meu próprio povo. Então, fui para a Turquia, depois Grécia, e agora estou em França. Deixei a Síria há cerca de um ano e sete meses”, lembra.
À pergunta sobre o que mudará caso a Síria elimine a Austrália e, depois, o quarto classificado da CONCACAF, acabando no Mundial da Rússia, Hesham responde: “Nada, my friend!” Então? “Os refugiados não gostam do governo, tu sabes. Não sabes? Sabes… E esta seleção é do governo, infelizmente. O al-Assaad não devia usar a seleção a favor dele. Mas usa. E quer a seleção vença quer não vença, vai continuar a usar. Não estou a dizer que os jogadores lhe são leais. Acho que os jogadores devem jogar pela Síria e pelo povo sírio. Mas quando ouço dizer que alguém ligado ao governo vai pagar vinte e cinco milhões de euros aos jogadores caso derrotem a Austrália, sinto-me chocado. Vinte e cinco milhões de euros… [pausa] e povo sírio a morrer à fome todos os dias! É chocante. Nada vai mudar, my friend, nada.”
Oficialmente, e caso a Síria elimine a Austrália, cada jogador receberá da Federação perto de duzentas e quarenta e duas mil liras sírias, ou seja, mil euros. Para um futebolista profissional (como é o caso dos internacionais pela seleção) no país, isto representa o ordenado de um ano inteiro.