É uma história de “chantagem” e “manipulação”, que parece não ter fim à vista. De um lado Ursula von der Leyen, rosto de uma Europa afrontada que ainda se mentaliza para o “fim da abundância”, nas palavras do presidente francês, Emmanuel Macron. Do outro, Vladimir Putin, “czar” de um império de gás, petróleo e carvão que ameaça “congelar” um continente com 450 milhões de pessoas. O inverno está mesmo a chegar. A Europa garante que não vai entrar em hibernação.
Nas vésperas de mais um conselho europeu de ministros da Energia, que terá lugar esta sexta-feira, a timoneira da Comissão Europeia deu a conhecer as propostas de Bruxelas para enfrentar a crise energética. São cinco eixos de ação, para por em prática “de imediato”, com o objetivo de travar os preços “astronómicos” da energia na Europa, segundo Ursula von der Leyen.
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Alguns dos pontos propostos por Bruxelas não são estranhos a Portugal. Sobre outros, não há posição conhecida do Governo de António Costa.
O primeiro ponto do plano de ataque de von der Leyen é a redução do consumo de eletricidade, que deverá ser obrigatório em horas de ponta. Segundo o jornal espanhol El País, que teve acesso a uma versão da proposta, Bruxelas quer obrigar os 27 a reduzir o consumo de eletricidade em pelo menos 5%. É esse o valor que a Comissão Europeia deverá levar à reunião de sexta-feira.
Russia is manipulating our energy markets and we are confronted with astronomic prices.
So we will table measures to protect vulnerable consumers and businesses.
We have the economic strength, the political will and unity to keep the upper hand.
https://t.co/ntpzZknBjW— Ursula von der Leyen (@vonderleyen) September 7, 2022
“Para apontar especificamente às horas mais caras do consumo elétrico (…) a Comissão propõe um objetivo obrigatório de pelo menos 5% de redução do consumo líquido de eletricidade durante as horas de preços máximos”, cita o jornal espanhol. O documento refere que não importa como a meta é atingida, desde que o objetivo seja cumprido de forma “clara, transparente, proporcional, não discriminatória e verificável”. A Comissão quer que os Estados-membros adotem medidas que permitam “reduzir o consumo geral de eletricidade de todos os consumidores”, e destaca a importância de equipar todas as habitações com contadores inteligentes, que permitam ajustar o consumo ao longo do dia.
Esta meta surge depois de Bruxelas já ter pedido aos estados membros, a título voluntário, a redução do consumo de gás, que tem impacto na produção de eletricidade. A Portugal calhou uma fatia de 7%. Que poderá passar a ser obrigatória caso o corte voluntário não seja suficiente para atenuar a crise energética.
Desde então, aguarda-se com expectativa a apresentação de um plano de poupança de energia por parte do Governo, que deverá acontecer esta quinta-feira, antes do conselho europeu. Esse plano terá por base um trabalho pedido pelo Ministério do Ambiente à Adene – Agência para a Energia – e já entregue pela agência no final de agosto, após terem sido consultadas confederações e associações empresariais. Esperava-se um plano que incidisse, sobretudo, nos cortes de energia em edifícios públicos, sendo que as medidas a adotar pelo setor privado seriam de carácter voluntário. Porém, isso poderá alterar-se face à nova exigência da Comissão Europeia.
Ursula von der Leyen falou esta manhã num plano que deve privilegiar “poupanças inteligentes de eletricidade”, e garantiu que Bruxelas vai “trabalhar de perto com os Estados-membros para consegui-lo”.
Um limite aos “lucros caídos do céu”
Outro dos pontos do programa de ação que a Comissão Europeia vai colocar em cima da mesa passa por estabelecer um limite ao preço que as elétricas podem cobrar pela energia produzida através de fontes que não sejam gás. O teto em causa deverá ser de 200 euros por MWh, segundo uma versão de trabalho da proposta citada pelo Financial Times. Mas até sexta-feira o valor poderá mudar, avança o El País, uma vez que os técnicos de Bruxelas continuam a fazer contas.
O excedente desta espécie de taxa sobre os “lucros caídos do céu” serviria para os Estados membros redistribuírem em medidas para ajudar as empresas e famílias, segundo Ursula von der Leyen.
A proposta consultada pelo FT refere que Bruxelas recomenda que o teto seja aplicado à produção renovável, como parques eólicos e centrais solares, mas também a centrais a carvão e nucleares. Isto porque estas fontes de energia, devido à lógica marginalista do mercado, ganham como se produzissem a gás, uma vez que é o gás que marca, na maior parte das vezes, o preço praticado no mercado. O teto deve replicar aquele que seria o normal funcionamento do mercado caso este “não estivesse a ser usado como arma através de disrupções ao fornecimento”, refere a Comissão.
Especialistas consultados pelo FT defendem que o teto de 200 euros por MWh deve ser, ainda assim, suficiente para que os produtores de renováveis tenham ganhos suficientes para continuarem a fazer investimentos, algo que é uma prioridade de Bruxelas.
Questionado pela Rádio Observador sobre esta medida, o presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), Pedro Amaral Jorge, não rejeita totalmente a ideia, porque em Portugal os ganhos excessivos não chegam a todas as empresas. “As renováveis em Portugal não têm todas uma contrapartida vinculada ao mercado grossista de eletricidade”. Ou seja, nota o responsável, a maior parte das eólicas vende a energia produzida ao comercializador de último recurso (CUR) a preço fixo, que não ultrapassa os 95 euros MWh. Isso também acontece na energia hídrica e solar. “A aplicabilidade da medida em Portugal é muito pequena”.
Atuar sobre os “lucros caídos do céu” tem sido uma hipótese posta de parte pelo Governo português até agora. Na apresentação das medidas de combate à inflação, o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, defendeu que o mecanismo ibérico que fixa o preço do gás acaba por funcionar como um imposto sobre os lucros excessivos, uma vez que “limita os ganhos não esperados das empresas” e “baixa o preço da eletricidade”.
O mecanismo ibérico deverá ser, aliás, um dos temas presentes na reunião da próxima sexta-feira dos ministros da Energia. Isto porque a hipótese de desacoplamento do preço do gás natural da formação do preço grossista da eletricidade, como faz o mecanismo ibérico, chegou a ser aventada por Bruxelas, com o objetivo de baixar o preço do gás para a produção de eletricidade.
Um documento de trabalho da presidência da UE, assumida neste semestre pela República Checa, que data de 4 de setembro e é citado pelo Politico, refere isso mesmo. Em cima da mesa esteve o “desacoplamento/ limitação do impacto do preço do gás no preço da eletricidade”.
Considerou-se “temporariamente limitar o preço do gás para a produção de eletricidade” e “limitar o preço do gás importado de jurisdições específicas”, e até “excluir a produção de eletricidade a partir do gás da ordem de mérito e da formação do preço no mercado de eletricidade”. Ou seja, admitiu-se suspender a lógica marginalista que rege a formação dos preços. Mas essa não foi uma das medidas adiantadas por Ursula von der Leyen. A explicação é simples: a solução estava longe de gerar consenso junto dos Estados membros. E se um acordo na próxima sexta-feira já se adivinha difícil, com esta medida seria praticamente impossível.
Países como Itália, Espanha ou Áustria mostraram-se favoráveis à opção. Mas a própria Comissão cortou-lhe as pernas. Um documento redigido pelos técnicos de Bruxelas, citado pelo El Mundo, foi demolidor para o mecanismo ibérico, referindo-se à solução como “cara, contraproducente e arriscada” para que possa ser estendida à UE. O veredito foi claro: “não recomendamos esta opção”.
Teto ao preço do gás russo? Nein
Mas esta não é a única arma do conjunto de munições de von der Leyen que enfrentará resistência por parte de alguns Estados membros. A Comissão Europeia vai propor a criação um teto para o preço a pagar pelo gás russo. “Sabemos que as nossas sanções estão a ter impacto negativo na economia russa, mas Putin está a ultrapassá-lo parcialmente através das receitas que garante com os combustíveis fósseis. O objetivo é cortar as receitas que servem para financiar a guerra na Ucrânia”, atirou von der Leyen.
Ao que tudo indica, esta será das propostas que mais divisão vai causar entre os 27, devido aos diferentes graus de dependência dos países em relação ao gás russo. Ainda na semana passada, a Hungria assinou um novo contrato com a Gazprom, para o fornecimento de 5,8 milhões de toneladas de metros cúbicos de gás. E na Alemanha, maior importador europeu de gás russo, também há dúvidas.
Citado pelo Politico, um porta-voz do ministro alemão da economia afirmou que governo do país mantém-se “cético” sobre a criação de tetos ao preço do gás. Em Berlim, há receios de que a medida desperte na Rússia vontade de retaliar. Ou seja, que Moscovo feche, definitivamente, a torneira à Europa, como Putin já ameaçou. “Não vamos fornecer gás, petróleo, carvão, óleo de aquecimento — não vamos fornecer nada. Como no famoso conto de fadas russo, vamos sentenciar a cauda do lobo a ser congelada”, disse esta quinta-feira no Fórum Económico do Leste. O que afetaria, com maior violência, países como a Eslováquia ou a República Checa. Por outro lado, o governo francês deverá dar luz verde à proposta. A posição de Portugal não é conhecida.
Outra das propostas que a Comissão Europeia vai levar aos ministros da Energia é a criação de uma contribuição solidária a aplicar às empresas de petróleo e gás, que têm beneficiado de ganhos volumosos devido ao contexto do mercado. “Todas as fontes de energia devem contribuir para ultrapassarmos esta crise”, defendeu von der Leyen. O montante arrecadado deve ser investido no apoio às famílias mais vulneráveis e em fontes de energia renováveis.
Aqui, Portugal já tem em marcha desde 2014 uma polémica e contestada contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE), que tem vindo a ser renovada a cada Orçamento do Estado. Uma das componentes da CESE, a chamada CESE 2, é precisamente uma taxa aplicada aos contratos de aprovisionamento de longo prazo de regime take-or-pay no segmento do gás natural. É cobrada à Galp, que a tem contestado desde a sua criação, e mantém o diferendo com o Estado nesta matéria.
Era uma vez…uma Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético
A criação de uma contribuição deste género já tem vindo a ser reivindicada pelos partidos de esquerda, mas no caso da Galp, o bolo amealhado seria pequeno, porque como a própria empresa já vincou, a maior parte do dinheiro que faz não é taxado em Portugal.
Preços altos são jackpot para as empresas de energia? Quem está a ganhar mais com a crise energética
A última proposta de Bruxelas também tem como destinatárias as empresas de energia, mas no sentido inverso. O de ajudar. Ursula von der Leyen revelou uma proposta para ser criado um regime excecional, no âmbito das ajudas de Estado, para que os países possam ajudar as empresas do setor mais afetadas pela crise, nomeadamente por falta de liquidez. Em causa estão não produtoras mas importadoras ou comercializadoras.
A proposta preliminar referia, por exemplo, a criação imediata de uma linha de crédito para as empresas que estejam a enfrentar margens demasiado elevadas. Também poderão ser modificadas as regras sobre as compras de energia pelos comercializadores, nomeadamente os requisitos regulatórios de garantias nessas transações.
O objetivo é evitar mais resgates de empresas estratégicas, como o que a Alemanha fez à Uniper, a maior importadora e armazenadora de gás alemã, que em julho foi alvo de um resgate de 15 mil milhões de euros e já depois disso pediu mais quatro mil milhões ao Estado, por não ter sido capaz de suportar o aumento dos preços do gás, já que era a Rússia que vendia gás a preços baixos a esta empresa. Em Portugal, ainda não há apoios neste sentido.