1 A breve história de um tributo “extraordinário

Muito já se escreveu sobre a famosa Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), criada num contexto aparentemente conjuntural, por via do Orçamento do Estado para 2014, que antecipara a vigência de um mero tributo “de crise”.

Fora esse o sentido imanente à apresentação pública da medida, no final de 2013, por parte do Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, Eng.º Jorge Moreira da Silva, que expressamente aludiu ao regime que criou a CESE nos seguintes termos: “Esta medida está prevista como norma orçamental no Orçamento do Estado para 2014, prevendo-se a cobrança do valor até ao fim do mês de outubro”.

No entanto, a realidade encarregou-se de demonstrar que a CESE é tudo menos um tributo extraordinário.

De resto, como já escrevemos em obra científica dedicada ao regime da CESE, o respetivo regime tem contado com um número tão expressivo de ampliações que existem, pelo menos, três versões da CESE, atualmente incorporadas no texto em vigor:

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  1. A CESE 1, correspondente à versão original do regime, nos termos da Lei do Orçamento do Estado para 2014;
  2. A CESE 2, correspondente às alterações efetuadas ao regime pela Lei n.º 33/2015, de 27 de abril e pela Lei do Orçamento do Estado para 2017 (alargamento aos contratos de aprovisionamento de longo prazo de regime take-or-pay, no segmento do gás natural); e ainda
  3. A CESE 3, resultado das alterações introduzidas ao regime por intermédio da Lei do Orçamento do Estado para 2019, com a introdução de uma restrição à isenção até então aplicada ao setor das energias renováveis, passando a generalidade das entidades do setor a suportar o encargo do tributo em causa.

De resto, em decisão de 7 de fevereiro do presente, o Tribunal Arbitral parece, inclusive, rever-se nesta divisão que propomos para o regime da CESE, e que bem atesta o seu caráter (não) extraordinário.

2 A dicotomia “contribuições financeiras vs. contribuições especiais” e o papel futuro do Tribunal Constitucional

Como seria de esperar, não tardou a surgir um amplo contencioso em torno do regime da CESE, procurando os sujeitos passivos aludir a um leque considerável de potenciais desconformidades constitucionais – em algumas das quais, inclusive, nos revemos.

Porém, no cerne de qualquer uma das referidas conformidades constitucionais está, como sempre sucede neste domínio, a prévia determinação da natureza jurídica da CESE.

Assim sucede, na medida em que é da qualificação da CESE (como imposto, contribuição ou taxa) que se tornará possível a configuração do regime constitucional aplicável – regime esse que tem níveis de exigência distintos, consoante se entenda estar em causa um imposto, uma contribuição ou uma taxa.

Para o referido efeito, a Administração Fiscal – acompanhada de algumas decisões, de entre as quais a proferida no Acórdão n.º 7/2019, do Tribunal Constitucional, relativa ao ano inicial de vigência do regime da CESE – procurou reconduzir a CESE à célebre figura das contribuições financeiras, mencionadas no artigo 165.º, n.º1, alínea i) da Constituição.

É justamente aqui que reside o “pecado original” da litigância em torno do regime da CESE.

Para além de historicamente associadas ao fenómeno da parafiscalidade, as contribuições financeiras são tributos totalmente bilaterais, tal como as taxas, residindo o único fator de distinção face a esta última figura a circunstância de incidirem sobre grupos de sujeitos passivos e não sobre cada sujeito passivo, a título individual.

Esta base de incidência grupal deve-se à especificidade das prestações públicas que as contribuições financeiras visam remunerar, daí que tenham como exemplos representativos figuras como a Contribuição para o Audiovisual ou os diversos tributos pagos às ordens profissionais (médicos, advogados, etc.) por parte dos respetivos membros.

Ora, facilmente se compreende que esta qualificação não pode aplicar-se ao caso da CESE, o que se deve, acima de tudo, à ausência de qualquer tipo de prestação que, mesmo numa ótica grupal, beneficie entidades tão distintas como as que operam nos segmentos do gás natural ou das energias renováveis.

Mais, dizer que a CESE é uma contribuição financeira é assumir que um tributo que incide sobre ativos (tangíveis, intangíveis e financeiros) está mais próximo de uma propina do ensino superior (que é, por definição, uma taxa) do que de um imposto, geral ou especial.

3 A rápida metamorfose enquanto “contribuição especial de terceira geração” – em especial, o caso do setor das energias renováveis

Já referimos que a CESE não pode qualificar-se como contribuição financeira e que na adesão a uma semelhante qualificação está o “pecado original” da litigância em torno da contestação ao respetivo regime.

Poderá perguntar-se: mas afinal, como qualificar a CESE (?)

Na realidade, o regime da CESE retoma, de uma forma relativamente sofisticada, o espírito das famosas contribuições especiais devidas pela valorização de imóveis decorrente da construção da nova ponte sobre o Rio Tejo (Ponte Vasco da Gama) ou da realização da Expo 98, com as necessárias adaptações ao contexto do SEN.

Poderá perguntar-se, novamente: mas em que medida ocorre tal paralelismo (?)

Tal como nos casos referidos, a respeito da ponte Vasco da Gama ou da realização da Expo 98, também ao nível do desenho da CESE o legislador assume – sem o demonstrar, note-se – que os respetivos sujeitos passivos tiveram benefícios isolados ou excessivos, provenientes de uma determinada atuação pública, legitimando assim a respetiva socialização, através da cobrança de um tributo desta estirpe.

Perguntar-se-á então: mas o que resulta da recondução da CESE à categoria das contribuições especiais (?)

Precisamente o que ainda se encontra por analisar. Através de uma análise rigorosa aos pressupostos, origem e evolução do regime da CESE, que permita perceber que está em causa uma verdadeira “contribuição especial de terceira geração”.

E assim sucede, porque, desde o final da década de 90, foi consensualidade entre doutrina e jurisprudência que as “contribuições especiais (por oposição às “contribuições financeiras”) mais não são senão “impostos especiais”, sendo assim tratadas para efeitos constitucionais e, como tal, à luz de um regime necessariamente mais exigente do que aquele que lhes tem sido atribuído nas reduzidas pronúncias conhecidas a respeito dos seus primeiros anos de vigência.

Caso se adote uma tal configuração, que a breve trecho chegará ao conhecimento dos tribunais – com destaque para o Tribunal Constitucional –, talvez a história da CESE passe a ser outra e a única coisa que reste de extraordinário seja o engenho e a subtileza do legislador, ao longo dos últimos anos.