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“Penso que há uma janela de oportunidade.” A 31 de outubro, escassos dias antes das eleições presidenciais norte-americanas, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, dava a conhecer aos mediadores dos Estados Unidos da América (EUA) a sua disponibilidade para um acordo para o fim das hostilidade em solo libanês. Há alguns dias que os conselheiros de Joe Biden estavam a tentar convencer os israelitas a alcançar um cessar-fogo no Líbano e em Gaza. A insistência surtiu efeito apenas no caso libanês e Washington, segundo apurou o jornal Axios, viu uma “mudança de atitude” e um raro alinhamento entre os interesses de Telavive e Beirute — em concreto do grupo xiita pro-Irão, Hezbollah.
Durante quase um mês, o acordo sofreu vários revezes, mas acabou por ser firmado esta terça-feira. Impôs um cessar-fogo imediato no Líbano, país que era alvo de uma operação terrestre de Israel desde meados de setembro e que sofria ataques aéreos diários desde o dia 8 de outubro de 2023. Foi a resposta de Telavive depois de, a 7 de Outubro — quando o grupo palestiniano Hamas atacou Israel —, o Hezbollah ter aberto uma nova frente de batalha e ataado o norte do território israelita, de forma as desdobrar os esforços as Forças de Defesa de Israel (IDF, sigla em inglês), que, por sua vez, retaliavam.
Num acordo que foi firmado com o apoio norte-americano e francês, Israel conseguiu fechar uma frente numa guerra que nunca esteve apenas reduzida à Faixa de Gaza. Depois deste êxito diplomático, o próximo sucesso seria chegar a um cessar-fogo com o Hamas. No entanto, as perspetivas não são animadoras. Contrariamente ao Hezbollah, o grupo islâmico palestiniano mantém um trunfo que lhe concede vantagens na mesa de negociações: os reféns que ainda mantém em cativeiro desde 7 de outubro.
Civis de regresso a casa, filas de trânsito e festejos. As primeiras horas do cessar-fogo no Líbano
Além disso, dentro do governo israelita, existe uma permanente dúvida: o que vai a acontecer à Faixa de Gaza após a guerra? Membros mais radicais do executivo liderado por Benjamin Netanyahu pretendem manter a presença israelita no território (alguns até querem expulsar os palestinianos da região), enquanto outros preferem uma solução negociada. E não são apenas as condicionantes de política interna que vão ditar o futuro de Gaza. Na política externa, vários países prometem manter-se vigilantes ao que se passará na região depois de o conflito terminar.
Pressão da extrema-direita e o pós-guerra: cessar-fogo em Gaza está mais distante
No discurso desta terça-feira em que anunciava que o gabinete de segurança tinha aprovado o cessar-fogo no Líbano, Benjamin Netanyahu reiterou que Israel continua empenhado num objetivo que tem frisado desde o dia 7 de Outubro de 2023: “Completar a aniquilação do Hamas”. Para o primeiro-ministro israelita, esse momento ainda não chegou, apesar de batalhões já “terem sido desmantelados”, de terem sido mortos “cerca de 20 mil terroristas” e de líderes do grupo palestiniano — como Mohammed Deif (o principal responsável militar) ou Yahya Sinwar (líder político) — já terem morrido.
Ainda que tenha elencado todos os êxitos militares israelitas, Benjamin Netanyahu ainda não parece estar totalmente satisfeito com a ofensiva que o país tem em marcha na Faixa de Gaza há quase 14 meses, em que já morreram mais de 40 mil palestinianos. No discurso, o primeiro-ministro recordou que quer “de volta” todos os reféns para território israelita e que pretende, no futuro, que “Gaza não permaneça como uma ameaça para Israel”.
Não é líquido, no entanto, de que forma é que o território controlado pelo Hamas vai deixar de representar um risco para Telavive, principalmente depois de um cessar-fogo como aconteceu no Líbano, que implicaria a retirada das IDF da região. Neste ponto, existe um intenso debate dentro do executivo de Benjamin Netanyahu.
Uma das posições foi expressa, na segunda-feira, pelo ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, pertencente a um partido de extrema-direita que compõem a coligação de governo. Indicou que Israel deve ocupar Gaza de forma permanente e deve “encorajar”, nos próximos dois anos, a que mais dois milhões de palestinianos abandonem o território. O governante pretende usar o que diz ser uma “emigração voluntária”, realçando que “ocupar Gaza” não deve ser um tabu: “É a única forma. Podemos ocupar Gaza e reduzir a população para metade em dois anos.”
A par de Bezalel Smotrich, também o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, defende uma estratégia semelhante: a de manter a ocupação israelita em Gaza após o final do conflito. Aliás, este governante de extrema-direita foi o único a votar contra o acordo de cessar-fogo no Líbano, adjetivando-o de “erro histórico”, com o argumento de que poderá prejudicar a segurança do país.
Mesmo dentro do partido de Benjamin Netanyahu, o Likud (de centro-direita), existem segundo o Times of Israel, alguns membros que acreditam que Israel deve permanecer em Gaza. Contudo, o primeiro-ministro, nos planos que foi divulgando nos últimos meses, nunca admitiu publicamente que Telavive possa ocupar o território depois do conflito. Mas o líder do executivo também deu poucas pistas sobre o que fará no futuro. Em fevereiro de 2024, apresentou o plano “Cerca Sul”, em que defende que Gaza deve ser uma área desmilitarizada, mas, desde aí, não tem apresentado grandes detalhes.
A estratégia de manter o pós-guerra envolto em secretismo pode ser propositada. Como explica ao New York Times Aaron David Miller, analista militar e antigo membro das negociações nas conversações de paz no Médio Oriente, o “acordo do Líbano aconteceu porque o Hezbollah e o Líbano precisam dele — e porque não era uma linha vermelha para a coligação de Netanyahu”.
“O acordo em Gaza é diferente”, prossegue o mesmo especialista. Os membros mais radicais da coligação pressionam, assim, o primeiro-ministro a aceitar o controlo israelita do território no pós-guerra. E ameaçam Benjamin Netanyahu: se o Hamas não sair derrotado do conflito e se Israel não manter presença militar na Faixa de Gaza, deixam cair o governo, abrindo uma crise política em Israel. Em junho, numa altura em que estava perto um acordo de cessar-fogo, Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir anunciaram que se demitiriam se fosse alcançado um cessar-fogo em Gaza.
Apresentar publicamente um plano para o futuro de Gaza que desagrade a membros do seu governo pode acarretar enormes custos políticos para Benjamin Netanyahu. O Likud, partido que sofreu uma forte queda nas sondagens após o 7 de Outubro, tem recuperado nas intenções de voto. Mas ainda não é suficiente para obter uma confortável maioria. Os próximos tempos não se avizinham fáceis: dentro de uma semana, o primeiro-ministro israelita vai apresentar-se perante um juiz para dar explicações sobre o caso de corrupção em que está indiciado.
Hamas está disposto a cessar-fogo, mas ainda tem poder negocial
Um dos motivos para Benjamin Netanyahu ter dado luz verde ao cessar-fogo no Líbano prendeu-se com o facto de acreditar que o Hamas fica assim isolado na guerra contra Israel. “Desde o segundo dia do conflito, o Hamas estava a contar com o Hezbollah para lutar ao seu lado. Com o Hezbollah fora do panorama, o Hamas fica isolado. Vamos aumentar a pressão no Hamas e isso vai ajudar-nos na nossa missão sagrada de libertar os reféns”, explicou o primeiro-ministro.
O Hamas continua, porém, a ter apoio iraniano e do “Eixo da Resistência” montado por Teerão, a que pertencem os Houthis do Iémen e as milícias xiitas do Iraque. A tensão entre Irão e Israel mantém-se alta, sendo que as autoridades iranianas ainda têm interesse em querer desestabilizar Israel.
Sobre o cessar-fogo no Líbano, Sami Abu Zuhri, dirigente do Hamas, assinalou à Reuters que o grupo o vê com bons olhos: “Esperamos que este acordo abra caminho para alcançar um [outro] acordo que termine a guerra de genocídio contra o nosso povo em Gaza”, salientou o responsável, mostrando abertura para assinar um acordo com Telavive.
Sami Abu Zuhri destacou que o Hamas “mostrou uma grande flexibilidade para alcançar um acordo” e continua “comprometido com a posição de que está interessado em terminar a guerra em Gaza”. No entanto, o dirigente político do grupo islâmico culpou o primeiro-ministro israelita pelos fracassos até ao momento. “O problema foi sempre de Netanyahu, que foge sempre de um acordo”, acusou. Outro membro do grupo disse à AFP que “informaram os mediadores do Egito, do Qatar e da Turquia que o Hamas está pronto para um cessar-fogo e uma troca série de prisioneiros”.
Mas, tal como Israel, o Hamas não vai aceitar um acordo que seja uma humilhação. O grupo islâmico já deixou claro por várias vezes que o fim da guerra deve seguir três princípios: o fim da presença israelita na Faixa de Gaza, um cessar-fogo permanente (e não temporário, como já aconteceu no passado) e a reconstrução da região. Caso não sejam cumpridos, não haverá cessar-fogo. Esta exigência esbarra contra as principais vontades do governo israelita, principalmente com as dos membros mais radicais.
Para além disso, o grupo palestiniano ainda mantém reféns israelitas em cativeiro — e sabe que esse fator dá-lhe uma vantagem na mesa das negociações, pressionando o governo de Israel, que está sob forte escrutínio da população nesta temática. Em troca, o Hamas exige que vários dos seus prisioneiros sejam libertados das prisões israelitas, algo que é inconcebível para alguns membros do executivo liderado por Benjamin Netanyahu — apesar de tal já ter ocorrido durante os anteriores cessar-fogo temporários.
Neste sentido, Itamar Ben-Gvir já avisou que não “vai permitir a libertação de ‘mil Sinwars’ em nenhuma circunstância”. “Devemos fazer tudo para libertar os reféns, mas também temos a responsabilidade para assegurar a segurança da vida dos cidadãos israelitas”, assegurou o ministro da Segurança Nacional.
Biden faz último esforço a pensar no seu legado e a contar com a moeda de troca saudita
Neste momento, Benjamin Netanyahu não estará a ser somente pressionado internamente sobre o futuro da Faixa de Gaza. A comunidade internacional também está atenta às ações israelitas — e a grande maioria não quer permitir que Israel ocupe o território de 360 quilómetros quadrados, estando a favor da solução de dois Estados. Até os maiores aliados de Telavive — os Estados Unidos — a defendem oficialmente.
Na reta final do mandato, o Presidente norte-americano, Joe Biden, disse que, nos próximos dias, “os Estados Unidos vão fazer outro esforço com a Turquia, o Egito, o Qatar, Israel e outros para chegar a um cessar-fogo em Gaza com os reféns libertados e o fim da guerra sem o Hamas no poder”. Mais do que um sucesso diplomático para Washington, o chefe de Estado quer terminar o mandato com chave de ouro, contribuindo para o seu legado. “O cessar-fogo de ontem [no Líbano] mantém-nos cada vez mais perto de um futuro que eu tentei alcançar na minha presidência”, referiu num discurso esta terça-feira.
O Presidente demissionário quer ver o Médio Oriente em “paz, próspero e integrado além fronteiras”. O secretário de Estado, Antony Blinken, numa conferência de imprensa em Roma, deu mais detalhes sobre a visão de Joe Biden para acabar com a guerra. “Temos de garantir que, de forma a terminar o conflito, temos um caminho claro do que se segue após o conflito e que permita às pessoas de Gaza continuar com as suas vidas — sem o Hamas e com Israel a sair de Gaza.”
A administração Biden quer a Autoridade Palestiniana (AP), que já controla a Cisjordânia, revitalizada e capaz de governar a Faixa de Gaza. Porém, Benjamin Netanyahu já desmereceu por várias vezes essa ideia, considerando que a Fatah (partido palestiniano ao qual pertencem atualmente os membros da AP) não deve assumir essa função. A partir de dia 20 de janeiro, com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, tudo poderá mudar. O Presidente eleito quer terminar com o conflito mesmo antes de tomar posse (se bem que nunca tenha detalhado como) e, durante o primeiro mandato, privilegiou várias vezes a posição israelita.
O facto de Donald Trump poder ser menos exigente com Israel numa eventual negociação com o Hamas pode levar a que o governo israelita tenha a tentação de prolongar a ofensiva até à tomada de posse de Trump. No entanto, a possibilidade de Telavive manter-se na Faixa de Gaza é uma linha vermelha para muitos países árabes, como a Turquia ou mesmo a Arábia Saudita.
A Arábia Saudita será uma das protagonistas numa possível negociação de paz com os Estados Unidos, especialmente se for com Donald Trump. O príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, mantém boas relações com o Presidente eleito — e vai fazer valer a sua influência junto do magnata pela causa palestiniana. Como lembra um artigo de Bader Mousa Al-Saif, membro do think tank Chatham House, os sauditas admitem estabelecer relações diplomáticas com Israel se os Estados Unidos apoiarem a criação de um Estado Palestiniano e aceitarem com a “ocupação israelita” em Gaza.
O Presidente norte-americano demissionário, no discurso desta terça-feira, já aludiu a essa possibilidade. Os Estados Unidos, afirmou Joe Biden, “mantêm-se preparados para concluir uma série de acordos históricos com a Arábia Saudita que incluem um pacto de segurança e garantias económicas, juntamente com um caminho credível para o estabelecimento de um Estado palestiniano, com a total normalização das relações entre a Arábia Saudita e Israel”.
Um cessar-fogo na Faixa de Gaza ainda parece estar longe. Benjamin Netanyahu tem muito a perder caso aceite fazer tréguas com o Hamas, podendo colocar em risco a coligação que governa Israel — ao mesmo tempo que o grupo islâmico ainda mantém alguns trunfos na mesa das negociações. Ainda assim, Joe Biden está mais empenhado do que nunca em garantir a paz no Médio Oriente — e deixar uma última impressão positiva do seu mandato.