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Reverendo William Howard Jr. com os reféns na embaixada norte-americana em Teerão na noite de Natal de 1979

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Reverendo William Howard Jr. com os reféns na embaixada norte-americana em Teerão na noite de Natal de 1979

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Doces, propaganda e desconfiança. Quando quatro clérigos passaram o Natal com os reféns americanos em Teerão

No Natal de 1979, 4 clérigos cristãos visitaram reféns sequestrados há um mês e meio na embaixada dos EUA em Teerão. Episódio foi "golpe de propaganda" do regime iraniano, mas Washington não se opôs.

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Era o dia 22 de dezembro de 1979. O reverendo batista e presidente do Conselho Nacional de Igrejas norte-americanas, William Howard Jr., tinha chegado das compras de Natal e recebeu um telegrama. Tinha sido convidado pelo regime iraniano para ir a Teerão, meses após a revolução que depôs o xá Mohammad Reza Pahlavi e instaurou uma tecnocracia no Irão liderada pelos ayatollahs. Juntamente com mais dois clérigos norte-americano e um francês (todos cristãos, ainda que representantes de ramos distintos do cristianismo), tinham uma tarefa arriscada pela frente: visitar e passar a noite de Natal com os 50 reféns norte-americanos que estavam em cativeiro na embaixada dos Estados Unidos da América (EUA), na capital iraniana, há cerca de um mês e meio.

A embaixada norte-americana tinha sido tomada por estudantes iranianos apoiantes da revolução em novembro de 1979. A ação teve vários objetivos. Um deles consistia em humilhar o país que o novo regime considerava o seu principal inimigo: os EUA. Outro passava por retaliar contra a decisão do então Presidente norte-americano, o democrata Jimmy Carter, que permitiu que o xá, um aliado de Washington, tivesse recebido asilo nos Estados Unidos. Apesar de toda a hostilidade diplomática, William Howard Jr. reconheceu, numa entrevista ao podcast The Political Scene da New Yorker conduzida pelo seu próprio filho, em dezembro de 2023, que não teve “medo” de ir a Teerão. “Tínhamos sido convidados. E desde o início, havia uma sensação de respeito genuíno pela religião dos reféns. Havia ortodoxos, ateus, cristãos.”

Quando a embaixada dos EUA foi invadida em Teerão

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Da embaixada, onde chegou perto da meia-noite de dia 25 de dezembro, William Howard Jr. recorda vários pormenores. Entrou com uma venda nos olhos no complexo diplomático — admite mesmo que esteve “à mercê” dos estudantes iranianos — e foi para uma sala encontrar-se com os reféns, onde havia uma árvore de Natal e uma mesa com “sobremesas, bolachas e bolos”. “Era o entendimento muçulmano de como o Natal era celebrado. Era a maneira como os xiitas imaginavam [que era o Natal], talvez o que eles tinham visto na televisão, nos filmes”, relata.

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A embaixada norte-americana em Teerão, decorada com um pinheiro e foto do aiatolá, no Natal de 1979

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A ida de três clérigos norte-americanos à embaixada norte-americana em Teerão recebeu um grande destaque mediático. Aliás, a tomada de reféns obteve uma cobertura dos meios de comunicação social bastante extensiva, abrindo telejornais e fazendo manchetes. Existiam também várias críticas à administração de Jimmy Carter, (Presidente que cumpriu 100 anos em outubro), acusada de ser demasiado tíbia na resposta à tomada de reféns.

Sobre esta visita, como escreveu o Washington Post há 45 anos, foi vista com bons olhos pelo Departamento de Estado: “Tudo isto foi montado pelo iranianos e nós estamos contentes em cooperar”. A diplomacia norte-americana entendia que este gesto seria bastante útil para perceber que reféns estavam efetivamente na embaixada (apenas existia uma estimativa na altura) e se tinham sido maltratados. Por sua vez, o regime iraniano apresentava esta iniciativa como uma “grande concessão”.

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Porém, a “concessão” iraniana não era uma simples prova do humanismo do regime dos ayatollahs. Era uma manobra de propaganda num país que, após a revolução, ficara quase isolado na comunidade internacional. Tal como frisou William Howard Jr., o convite para passar a noite de Natal na embaixada partiu do Irão, responsável por organizar o evento. Neste sentido, não é de admirar que os clérigos tenham sido escolhidos a dedo. Como conta o jornalista Mark Bowden no livro Guests of the Ayatollaho conselho revolucionário escolheu-os pela sua “história contra o imperialismo”.

O convite e a “propaganda” de um novo regime hostil aos EUA

Momentos depois de William Howard Jr. ter recebido o telegrama com uma mensagem simples — “venham e ofereçam as vossas preces aos reféns” —, o reverendo entendeu que a notícia já estava a circular nos meios de comunicação social, que acompanhavam fervorosamente o assunto. Houve também várias demonstrações de solidariedade: um desses exemplos é o laço amarelo, que se tornou um símbolo deste momento histórico e que estava espalhado por ruas, casas e edifícios.

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Estádio de Nova Orleães, no Louisiana, que recebeu a SuperBowl XV decorado com um laço amarelo em solidariedade com os reféns norte-americanos na embaixada de Teerão

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“Após receber o telegrama, vi nas notícias que William Sloane Coffin, que era líder da Igreja Riverside em Nova Iorque [de tradição batista], e o bispo católico do Michigan Thomas Gubleton também iam”, recordou William Howard Jr. Em contrarrelógio, os três clérigos encontraram-se para discutir as “implicações” da sua ida a Teerão. Falaram igualmente com o secretário de Estado de então, Cyrus Vance, que era um familiar “distante” de William Sloane Coffin.

Mark Bowden detalha no livro os motivos pelos quais estes três norte-americanos, juntamente com o cardeal de Argel (capital da Argélia), Leon‐Etienne Duval, foram os escolhidos para irem a Teerão. William Howard Jr. era um “ativista pelos Direitos Humanos anti-apartheid“, o regime sul-africano em que havia uma segregação por raça. O bispo Thomas Gumbleton, o “líder católico de Detroit”, era um “ativista pelas causas liberais dentro e fora da Igreja”. Já William Sloane Coffin, tinha-se oposto várias vezes contra as sanções aplicadas contra o Irão. “Gritamos pelos reféns, mas poucos norte-americanos ouviram os gritos dos iranianos torturados.”

William Howard Jr. conta que rapidamente concordaram em ir a Teerão. “Naquele momento, havia 50 norte-americanos que não tinham liberdade, que não tinham alegria, que não tinham calor, que não tinham as suas famílias com eles. E havia 50 famílias norte-americanas que também não iam vivenciar todas as alegrias, a luz e a felicidade do Natal”, justifica no podcast com o filho, acrescentando, numa entrevista à Universidade Rutgers-New Brunswick em Nova Jérsia, que sentia que os “norte-americanos não entendiam o quão devotos à religião” eram os iranianos.

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Dois dos reféns na embaixada norte-americana em Teerão

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“Eles respeitavam o cristianismo. Queriam expressar a sua honra pela religião e queriam honrar o Natal”, defende William Howard Jr. Questionado pelo filho sobre se o convite não foi uma ação de propaganda do regime iraniano, o reverendo reconhece essa componente na iniciativa de Teerão, mas desvaloriza: “A propaganda faz sempre parte de coisas como esta”. O objetivo era também “reduzir a possibilidade” de os Estados Unidos optassem por uma solução militar para libertar os reféns, que escalasse a situação.

Contudo, este objetivo de William Howard Jr. não foi cumprido. Em abril de 1980, após meses de indecisão, o ex-Presidente norte-americano ordena a operação Eagle Claw, delineada para libertar os reféns. Falhou clamorosamente e foi uma humilhação para a administração Carter. Aliás, toda a gestão desta crise causou danos à imagem dos Estados Unidos internacionalmente, tendo como pano de fundo um mundo em Guerra Fria e dividido em dois blocos.

Em declarações ao Observador, Pierre C. Pahlavi, especialista em política iraniana e professor na Canadian Forces College, não tem dúvidas: “A República Islâmica sujeitou a América de Jimmy Carter a uma humilhação global. A missão de resgate falhada acabou em calamidade, diminuindo ainda mais o prestígio dos EUA”, expõe o especialista, que assinala ainda as implicações a longo prazo da crise dos reféns de 1979. “Apesar dos desafios, consolidou uma República Islâmica independente que envenenaria a política externa norte-americana durante décadas.”

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Ex-Presidente norte-americano Jimmy Carter foi muito criticado pela gestão da crise dos reféns

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Historicamente, a oposição aos Estados Unidos foi um dos pilares ideológicos do novo regime. O xá era um aliado norte-americano; a CIA admitiu que, juntamente com os serviços serviços britânicos, ajudou, em 1953, a depor o governo do antecessor, Mohammad Mosaddegh. O antigo primeiro-ministro iraniano tinha tomado uma decisão que Washington e Londres se opunham categoricamente: a nacionalização do setor petrolífero iraniano. Em reação, os EUA e o Reino Unido ajudaram Mohammad Reza Pahlavi a organizar um golpe de Estado e chegar ao poder.

O antigo regime do xá estava assim associado ao Ocidente. Era por isso preciso, para o estabelecimento de um novo governo, “cortar a dependência da influência dos EUA”, marcando “uma rutura definitiva com o seu antigo aliado”, diz Pierre C. Pahlavi. A tomada de reféns norte-americanos na embaixada foi o meio utilizado. Na “mitologia da República Islâmica”, é, prossegue o especialista, a “vitória dos oprimidos perante uma potência dominadora, reforçando a legitimidade moral e política” do regime dos ayatollahs.

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Protestos em Teerão com fotografia do aiatolá Ruhollah Khomeini

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A chegada a um hotel de luxo, a imprensa e o encontro dos clérigos com os reféns

A 23 de dezembro, os três clérigos norte-americanos apanharam um voo no Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em Nova Iorque, rumo a Teerão. Não foi uma experiência normal. “Fomos levados por uma entrada privada e ficámos num lounge muito bonito, não o sítio normal onde se espera”, recorda o reverendo, indicando, no podcast da New Yorker, que a segurança foi reforçada.

Mas ainda mais intenso foi a chegada à capital iraniana, que aconteceu na véspera de Natal. “Fomos escoltados até, penso eu, chegarmos ao Hotel Hilton. Quando entrámos, devia haver mais de 200 jornalistas. Era um circo. Não eram apenas pessoas dos Estados Unidos, mas de todo o mundo, a querer cumprimentar os clérigos que iam à embaixada”, lembra William Howard Jr. Os três norte-americanos e o cardeal de Argel foram avisados para se prepararem rapidamente. “Sendo protestante, não estava consciente da tradição católica de celebrar a missa do galo. Era uma ideia nova [para mim], mas o bispo Gumbleton orientou-me. Tivemos de rapidamente nos vestirmos e prepararmo-nos para ir para a embaixada.”

Fora da embaixada e do hotel, havia protestos contra a ida dos clérigos norte-americanos em Teerão. Setores mais conservadores opunham-se à decisão e faziam questão de demonstrar a sua indignação. William Howard Jr. ainda se lembra bem do frenesim da deslocação desde o hotel de luxo onde estava hospedado até à embaixada. “Talvez por volta das 23h30, levaram-nos. Nunca tinha visto tanta imprensa em toda a minha vida. Milhares de pessoas. O que mais me lembro era que, enquanto estávamos na carrinha para ir para a embaixada, havia jornalistas pendurados a filmarmo-nos, a arriscar as suas vidas”, indicou o reverendo numa entrevista à Universidade Rutgers-New Brunswick.

"Fomos escoltados até, penso eu, chegarmos ao Hotel Hilton. Quando entrámos, devia haver mais de 200 jornalistas. Era um circo. Não eram apenas pessoas dos Estados Unidos, mas de todo o mundo, a querer cumprimentar os clérigos que iam à embaixada."
Reverendo William Howard Jr.

A chegada ao edifício diplomático norte-americano — decorada com elementos natalícios, mas também com retratos do ayatollah Ruhollah Khomeini — foi tensa. Os clérigos foram encaminhados com uma venda para uma sala e cada um ficou ao pé de alguns reféns. A primeira reação das pessoas que estavam há um mês e meio em cativeiro foi de desconfiança, avalia William Howard Jr. “As pessoas, os norte-americanos que lá estavam, não tinham ideia de que nós íamos. Eles queriam saber logo quem nós éramos, de onde tínhamos vindo, e como tínhamos chegado ali”, narra, sublinhando que todos estavam bem de saúde.

Tendo falado com alguns reféns, o jornalista Mark Bowden apresenta uma perceção ligeiramente distinta. Enquanto alguns viram a ida dos clérigos de forma positiva — “trazia-lhes de volta memórias da família e de Natais passados, ganhando uma sensação de conexão” —, outros ficaram “horrorizados” por fazerem parte de uma “ação de propaganda” montada por Teerão.

40 anos depois, entrevista a um sobrevivente do sequestro de Teerão: “Ataram-me, vendaram-me e apontaram-me uma arma à cabeça”

No caso de William Howard Jr., os reféns com quem falou tiveram de ser “convencidos” de que não era um “intermediário” dos estudantes iranianos e que o seu “objetivo” era estritamente “religioso”, sem quaisquer intenções políticas. “Falámos sobre muitas coisas. Eles não sabiam de nada do que se estava a passar e não quiseram rezar imediatamente”, relata. Na entrevista à Universidade Rutgers-New Brunswick, o clérigo recorda que muitos quiseram saber como estava a correr a NFL, a liga de futebol americano.

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Reféns norte-americanos na embaixada em Teerão

Bettmann Archive

Nos reféns que William Sloane Coffin visitou, o líder da Igreja Riverside chegou mesmo a cantar músicas de Natal, como a Silent Night (“Noite Feliz”). O momento foi gravado e foi depois divulgado nas televisões norte-americanas. De acordo com a versão de Mark Bowden, muitos “recusaram cantar e um bom número de reféns mostrou pouca emoção ou entusiasmo”. “Coffin abraçou cada um no fim das cerimónias e houve um jovem que lhe disse que ‘era tudo uma treta'”, escreveu o jornalista no livro Guests of the Ayatollah. 

Os reféns com quem William Howard Jr. esteve tinham várias dúvidas. Em entrevista à Universidade Rutgers-New Brunswick, o reverendo conta que alguns nem sequer tinham noção se que o mundo sabia da situação em que se encontravam. “Eles queriam saber se as suas famílias sabiam da sua situação. Não tinham conhecimento da cobertura noticiosa”, refere, recordando que a crise dos reféns foi uma “obsessão nacional”. “Eles estavam totalmente sem noção deste fenómeno e isso elevou-lhes o ânimo. Ficaram agradados.”

Os estudantes iranianos que controlavam a embaixada permitiram que os reféns enviassem mensagens às suas famílias através dos clérigos. “Foi a primeira ligação a membros das suas famílias” desde que foram sequestrados, disse o reverendo no podcast da New Yorker. Depois de conversarem e rezarem, abraçaram-se. “De um momento para o outro, o tempo acabou. Abraçámo-nos. Foi muito emocionante, porque eles não sabiam quando é que sairiam [da embaixada]. Nem nós sabíamos bem quando sairíamos.”

"De um momento para o outro, tempo acabou. Abraçámo-nos. Foi muito emocionante, porque eles não sabiam quando é que sairiam [da embaixada]. Nem nós sabíamos bem quando sairíamos."
Reverendo William Howard Jr.

Depois de os clérigos estarem reunidos com os reféns, ainda tiveram tempo para uma “pequena troca de ideias com os estudantes” iranianos, que William Howard Jr. definiu como “muito religiosos”. “Eram liderados por uma mulher. Dizia que se chamava Mary; não sabia o seu nome real”, pormenoriza. De madrugada, os três norte-americanos e o cardeal de Argel voltaram para o hotel — mas não foi o fim da visita a Teerão.

“Recebemos a notícia que o ayatollah Khomeini estaria a pensar encontrar-se connosco”, frisa William Howard Jr. Porém, os quatro clérigos recusaram. “Decidimos sair do país antes que isso acontecesse, porque sabíamos que o ayatollah nos ia dar um sermão. Não era uma conversa”, justifica, destacando igualmente que o encontro seria filmado. Apesar disso, encontraram-se com um “grupo de mullahs” — líderes religiosos do islamismo. “Eles deram-nos o seu ponto de vista da experiência do povo iraniano com o xá”, explica o referendo, recordando que lhe ficou na memória dessa conversa a “brutalidade” com que Mohammad Reza Pahlavi governava o Irão.

A chegada aos EUA, as perguntas e a reunião com Carter

Os três norte-americanos regressaram a casa no dia 26 de dezembro — e com informações muito valiosas para a Casa Branca, nomeadamente quantos reféns havia na embaixada, uma informação que Washington nunca conseguiu confirmar. Segundo a cronologia do Departamento de Estado sobre esta crise, lê-se que o bispo Gumbleton, o reverendo Coffin e o reverendo Howard “tinham uma lista com 43 nomes”, ainda que o Departamento de Estado apontasse para 50.

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O reverendo William Sloane Coffin que passou o Natal na embaixada norte-americana em Teerão e cantou com os reféns

Denver Post via Getty Images

A administração Carter entrou depois em ação e convidou os três clérigos a partilhar aquilo que tinham visto na embaixada em Teerão. William Howard Jr. conta que houve uma reunião no Departamento de Estado e desconfia que havia membros dos serviços de informações presentes no encontro. “As minhas conversas com eles centraram-se em identificar indivíduos que eu tinha visto. Nem todos tinham enviado notas, por isso, tentei descrever as pessoas”, afirma, sinalizando que nunca sentiu que estava num “interrogatório”.

Não foi só o Departamento de Estado. William Howard Jr. reuniu-se mais tarde com Jimmy Carter. O reverendo recorda uma questão do antigo Presidente em particular: “‘O que me podes dizer sobre aqueles [estudantes] que fizeram reféns?'” O presidente do Conselho Nacional de Igrejas norte-americanas aproveitou para desmentir a ideia de que os aliados do ayatollah eram “comunistas”. “Isso não podia estar mais longe da verdade. Eles são religiosos islâmicos muito devotos, que odeiam o comunismo mais do que o Presidente”, expõe.

Crise dos reféns. O marco na propaganda iraniana e o fim da presidência Carter

Em termos de propaganda, os iranianos acreditavam que a visita de três cristãos norte-americanos a Teerão durante o Natal mostrava o respeito que o regime tem pelo cristianismo — e é um sinal de humanismo. No entanto, esta demonstração de boa-vontade foi inserida num “ato de rebeldia”, como descreve Pierre C. Pahlavi, que considera que a tomada dos reféns traduziu-se na “fundação simbólica de uma identidade independente islâmica em oposição ao imperialismo do Ocidente”. 

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Manifestantes em Teerão queimam a bandeira norte-americana em 1979

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A tomada de reféns na embaixada norte-americana foi mesmo a maneira que o regime encontrou de se consolidar, ao mesmo tempo que se definia ideologicamente como anti-imperealista ocidental e anti-Estados Unidos. “Foi um momento-chave para a Revolução Islâmica de 1979. Este evento deu uma oportunidade decisiva ao ayatollah Khomeini e à fação mais radical para neutralizar aqueles que advogavam uma abordagem mais moderada e que favoreciam a normalização das relações com os Estados Unidos”, constata Pierre C. Pahlavi.

Politicamente, a tomada de reféns foi igualmente um trunfo político para o ayatollah Ruhollah Khomeini. “Proporcionou-lhe a oportunidade de se reafirmar no centro político e reforçar o seu poder. Era a oportunidade que esperava para se livrar dos colaboradores mais moderados, cortar definitivamente os laços com os Estados Unidos e declarar uma ‘segunda revolução islâmica'”, explica Pierre C. Pahlavi. Nunca foi líquido se a iniciativa de invadir a embaixada dos Estados Unidos foi premeditada ou espontânea; em todo o caso, continua o especialista, o Líder Supremo apoiou-a desde o primeiro momento. “Ele publicamente adotou-a [como se tivesse sido a sua ideia] e chamou ao Presidente Carter ‘burro’.”

Durante a Guerra Fria, a crise dos reféns beliscou a imagem da superpotência Estados Unidos, que continuava, em 1979, em competição direta com a União Soviética (URSS). Como reconhece o Departamento de Estado, esta crise fez com que se levantassem várias dúvidas sobre a forma como Jimmy Carter geria a política externa: “A crise fez a administração parecer fraca e ineficaz”.

Aiatolá Ruhollah Khomeini viu a tomada de reféns na embaixada norte-americana como um trunfo político

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Numa política de confronto entre blocos e conquista de espaços de influência, a União Soviética “tirou partido da fraqueza” demonstrada pelos Estados Unidos. Em 1979, por exemplo, segundo o Departamento de Estado, a URSS “apoiou” os seus correligionários na “Etiópia, Angola e Moçambique”. Houve ainda outra consequência no Médio Oriente — e esta bastante mais profunda. Ao mesmo tempo que os quatro clérigos se deslocavam a Teerão, a 24 de dezembro de 1979, tropas soviéticas atravessam a fronteira e invadiram o Afeganistão para permitir que o seu aliado, o ex-Presidente Babrak Karmal, chegasse ao poder.

Ao mesmo tempo que geria a conturbada política externa norte-americana, o Presidente Jimmy Carter envolveu-se nas diretas do Partido Democrata para concorrer às eleições de 1980. Ganhou a confiança do seu partido, mas acabou por perder as presidenciais. “Enredado na crise de reféns, Jimmy Carter perdeu as eleições, tornando-se o primeiro Presidente da época moderna dos Estados Unidos a não conseguir garantir um segundo mandato”, nota Pierre C. Pahlavi.

Ganhando em 44 estados, o republicano Ronald Reagan vence as eleições com relativa facilidade. A 20 de janeiro de 1981, minutos após o novo Presidente na altura tomar posse, os iranianos concordaram em libertar os reféns, que passaram 444 dias em cativeiro na embaixada. Foi ainda a presidência de Jimmy Carter que determinou os contornos do acordo entre Washington e Teerão. Os EUA comprometeram-se que não se envolveriam militarmente no Irão e descongelavam alguns ativos iranianos, ao passo que o regime dos ayatollah prometia libertar os reféns.

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Celebração da chegada dos reféns na embaixada dos EUA em Teerão após Ronald Reagan tomar posse

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Apesar do impacto mediático do evento, a crise dos reféns desvaneceu-se na memória coletiva norte-americana. No Irão, a situação é diferente. Pierre C. Pahlavi enfatiza que a data foi “mitificada” na propaganda iraniana. A 4 de novembro, data em que os estudantes invadiram a embaixada, celebra-se o “Dia Nacional da Luta contra a Arrogância Global”. Neste dia, costumam ser organizadas manifestações com slogans contra o Ocidente e os Estados Unidos.

Ainda no domínio da propaganda, o local onde era a embaixada norte-americana tornou-se num museu conhecido como o “covil da espionagem”. “Podem ver-se muros e exibições que mostram os Estados Unidos como uma força malévola”, explica Pierre C. Pahlavi. A tomada de reféns é, assim, um “símbolo de resistência” que continua, de acordo com o especialista, a “moldar a postura doméstica e internacional do Irão, retratando a República Islâmica como um bastião da luta anti-imperialista”.

45 anos depois da visita dos quatro clérigos à embaixada, ainda são os ayatollahs a governar o Irão. O país continua numa cruzada ideológica contra o Ocidente, tendo montado um “Eixo de Resistência” com grupos armados aliados em países como o Líbano, a Síria e o Iémen para enfraquecer a presença norte-americana no Médio Oriente e para prejudicar outro dos principais inimigos de Teerão: Israel. 

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Celebração do Dia Nacional da Luta contra a Arrogância Global em 2022

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Nos últimos anos, com o início da guerra na Faixa de Gaza controlada por um grupo aliado (o Hamas), o Irão tem enfrentado vários desafios. O “Eixo” perdeu fulgor e o país enfrenta uma fase conturbada, continuando a ser alvo de múltiplas sanções internacionais. Na propaganda, contudo, a “luta contra o imperialismo”, visível em episódios como a tomada de reféns e o Natal de 1979, continua a ser um dos motores que mantém vivo o regime iraniano.

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