O verão está a chegar ao fim e com ele termina a temporada dos festivais de música. Para trás ficam as elevadas faturas pagas pelos municípios, mesmo em eventos que estão lotados e em que os festivaleiros chegam a pagar centenas de euros pelos bilhetes ou passes. Só em 2023 e em apenas seis autarquias os apoios dados a promotoras de festivais ou de concertos de artistas internacionais ultrapassaram os 3,4 milhões de euros. Os executivos justificam os apoios com retorno financeiro (nem sempre comprovado) e as oposições queixam-se de falta de transparência nessas ajudas.
O Observador analisou as autarquias onde se realizaram os principais festivais em 2023 (Lisboa, Porto, Gaia Oeiras, Paredes de Coura e Odemira) ou concertos de grandes dimensões (Coimbra) e constatou que o apoio assume várias formas: comparticipações financeiras, apoio logístico ao evento e, muitas vezes, a isenção de taxas municipais. A acompanhar essas ajudas existem contrapartidas exigidas pelos municípios que vão desde bilhetes para distribuir por funcionários e eleitos, créditos ao apoio do município nos materiais de divulgação e a disponibilização de espaços de promoção à autarquia e região nos recintos dos eventos.
Os gastos levam muitas vezes a críticas acesas da oposição que condena a falta de critério na atribuição de apoios, que acusam, por exemplo, de beneficiar as empresas maiores e de deixar as entidades locais à mercê de taxas municipais. As câmaras defendem-se, quase sempre, com o retorno que os grandes eventos trazem à economia das respetivas cidades, com a taxa de ocupação de restaurantes e hotéis a aumentar nas datas em que fãs nacionais e internacionais rumam aos concertos.
Mas vamos a contas, quanto pagam afinal as autarquias para receberem grandes festivais de verão e grandes concertos?
Lisboa. 250 mil euros para o Iminente e um Kalorama de polémicas
É o mais recente dos apoios de autarquias a festivais: a Câmara Municipal de Lisboa (CML) aprovou por unanimidade na quarta-feira, 13 de setembro, a transferência de 250 mil euros para a realização da edição de 2023 do Festival Iminente. É certo que este não é apenas um festival de música, já que cruza esta vertente com as artes plásticas, visuais e urbanas em diversas zonas da capital. Mas o próprio protocolo assinado pela organização do evento e o município de Lisboa assinala as atuações musicais, que este ano decorrem no Terreiro do Paço, como um dos pontos fortes do evento que decorre a 14 e 15 de outubro, com entrada livre.
Se o apoio a este festival promovido por uma plataforma de intervenção cultural reúne o consenso dos membros do executivo lisboeta, o mesmo não aconteceu em relação ao Kalorama. Vai apenas na segunda edição, mas tem o mesmo número de polémicas sobre o financiamento da autarquia ao festival, uma por cada ano de existência.
O protocolo para a edição de 2023, entre o município de Lisboa e a empresa que organiza o festival de música, foi aprovado em junho passado pela coligação “Novos Tempos”, que reúne PSD, CDS, MPT, PPM e Aliança. Os vereadores socialistas abstiveram-se (o que foi fundamental para viabilizar o apoio) e mais à esquerda a rejeição de um acordo que previa apoios não financeiros no valor de 843 mil euros foi clara – PCP, Bloco de Esquerda e Livre votaram contra a isenção de taxas municipais e restantes apoios.
Entre as ajudas à organização do evento — que juntou mais de 100 mil pessoas no Parque da Bela Vista para assistir a concertos dos cabeças de cartaz Blur, Florence+The Machine e Arcade Fire — faz parte uma contribuição no valor de 395 mil euros na atribuição de bens, serviços e meios humanos. Mas o maior apoio do executivo de Moedas à empresa Kalorama Festival Unipessoal Lda. foi a isenção da taxa de ocupação temporária de espaços verdes. São mais de 410 mil euros que a organização do festival de verão ficou isento de pagar em taxas municipais pela utilização do parque público localizado em Marvila. Também não teve de pagar a licença especial de ruído nem as taxas relativas à publicidade ao evento.
Na semana passada, os vereadores do PCP exigiram esclarecimentos urgentes a Carlos Moedas sobre o estado avançado de degradação em que se encontrava o Parque da Bela Vista após a realização do evento. Denunciaram ainda o incumprimento do protocolo celebrado entre o município e o festival.
Os comunistas garantiram que estavam em causa restrições parciais e totais de acesso do público ao parque, que permaneciam uma semana após a realização do festival. No ano passado, a isenção de taxas e outros encargos à primeira edição do festival Kalorama já tinha criado uma polémica que se arrastou até 2023. O primeiro protocolo firmado previa apoios no valor estimado de 2,15 milhões de euros, dos quais 1,76 milhões através da isenção de taxas municipais. Valores avultados que valeram críticas duras da oposição a Moedas.
Em março deste ano, a liderança PSD/CDS-PP propôs a retificação do valor inicialmente atribuído para um valor mais modesto e ajustado às necessidades reais do novo festival: 367 mil euros. A proposta acabou chumbada, com o voto contra de todos os vereadores da oposição e o voto a favor da liderança PSD/CDS-PP, que não foi suficiente. O festival foi obrigado a pagar o valor das taxas municipais devidas na sua totalidade, decisão justificada pela oposição com a opacidade de todo o processo.
Porto. Rui Moreira justificou valor com a manutenção do Primavera Sound no Porto
Em março deste ano, Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, anunciou que o seu executivo municipal tinha aprovado um apoio anual de 650 mil euros para manter na cidade o Primavera Sound. Apesar do anúncio da ajuda camarária, criticou os apoios “insultuosos” de entidades públicas a outros festivais, bem como a “concentração das agências publicitárias em Lisboa”.
O autarca — que além de liderar o executivo municipal detém o pelouro da Cultura — garantiu que o apoio camarário iria gerar um retorno económico de cerca de 36 milhões de euros, com a mobilização de 45 mil pessoas ao Parque da Cidade do Porto em cada um dos quatro dias de festival onde atuaram, por exemplo, Rosalía, Kendrick Lamar e Pet Shop Boys. “Ao contrário de festivais idênticos, que decorrem um pouco por todo o país, desde Lisboa ao Sudoeste, ao Alentejo, a Viana do Castelo, este festival não tem tido apoio do Turismo de Portugal”, criticou o presidente da Câmara.
Além da falta de verba pública, Moreira destacou a perda do patrocinador principal que dava o primeiro nome ao Festival, a empresa de telecomunicações NOS. Foram as duas justificações para que o valor do apoio da autarquia ao evento tenha mais do que triplicado de 2022 (quando rondou os 200 mil euros) para 2023.
Segundo Maria Manuela Rola, vereadora do Bloco de Esquerda no Porto, foi concedido e aprovado em reunião camarária o apoio ao Primavera Sound, que implicou um “compromisso para 2023, 2024 e 2025 no valor de 650.000 euros s/IVA, com IVA aproximando-se dos 800 mil euros por ano”. Ou seja: na verdade, em 2023 foi decidido um apoio global e trianual de (1,95 milhões de euros, que corresponde a 2,4 milhões com IVA).
A autarca bloquista entende que os apoios da Câmara Porto são “pouco transparentes na forma de atribuição” e muito variáveis. Vão desde a dispensa de poucos milhares de euros, à cedência de espaços e à isenções de taxas de valores que não ultrapassam centenas, ou “podem chegar a mais de meio milhão de euros só em apoio financeiro”, como sucedeu com a décima edição do Primavera Sound.
A vereadora sem pelouro assinala os casos em que a atribuição de apoios ou isenções escapam à decisão da vereação e são concedidos através das empresas municipais, como a ÁGORA – Cultura e Desporto do Município do Porto ou a Sociedade de Transportes Coletivos do Porto (STCP). E recorda o destino que poderia ser dado a fundos camarários para promover a cultura, se as prioridades políticas fossem outras.
“Deveria ser [prioridade] garantir apoio aos espaços culturais relevantes da cidade”, revelou, destacando o caso do Coliseu do Porto, “a necessitar de obras avultadas, que recebeu um apoio de apenas 100 mil euros”.
A representante do Bloco garante que há um problema de falta de regulamentação na atribuição destes apoios. “Existe uma evidente discrepância entre projetos e não é conhecido o processo da sua formulação e atribuição”, afirma. E apela a que os apoios municipais passem a ser atribuídos “apenas a entidades sem fins lucrativos”.
Oeiras. Isaltino atribuiu 850 mil euros a promotoras de concertos
Na câmara de Isaltino Morais não faltam verbas para apoiar festivais de verão e concertos. A maioria decorre no Passeio Marítimo de Algés, com vista privilegiada para o Tejo. Só em eventos neste local, em 2023 foram atribuídos apoios e isenções de impostos ao Nos Alive e a vários concertos promovidos pela Everything is New — como o de Harry Styles, The Weeknd e Maroon 5 — que somam mais de 650 mil euros.
O Alive, que já se realiza em Oeiras há 15 anos, recebeu este ano um apoio financeiro da autarquia anfitriã no valor de 349 mil euros, ao qual se somam cerca de 14 mil euros em isenção de taxas municipais.
Os concertos dos artistas The Weeknd, Maroon 5, Def Leppard e Mötley Crüe e Harry Styles foram comparticipados em 288 mil euros pelo município. A Everything is New ficou ainda isenta de pagar 16.500 euros em taxas municipais para concretizar os espetáculos.
Mariana Leitão, deputada municipal da Iniciativa Liberal em Oeiras, afirma ao Observador que as taxas municipais “são um instrumento financeiro com grande flexibilidade, que as autarquias portuguesas podem criar, abolir e adequar às suas necessidades com grande rapidez e quase com inteira liberdade de manobra”. Ou seja, considera que a abolição é preferível à isenção.
Segundo a liberal, Isaltino Morais garantiu em sessão da Assembleia Municipal, que é “política do executivo camarário isentar todas as taxas nos domínios da cultura e ciência, tempos livres e desporto”. No entanto, garante existir o favorecimento de uns em detrimento de outros. “Assistimos a uma política assente única e exclusivamente na vontade discricionária do executivo, que demonstra de forma inequívoca que apenas alguns são isentos, enquanto todos os outros têm de pagar as taxas, ficando os promotores dependentes apenas da vontade do executivo”, garante.
Mariana Leitão apresenta um exemplo concreto, revela que nas Festas de Oeiras vários comerciantes têm de pagar taxas para conseguirem obter as licenças necessárias para terem os seus espaços no local. “E depois temos festivais como o Alive, o Panda, Jardins do Marquês, que ficam completamente isentos de taxas. Ou seja, pelas mesmas licenças camarárias, os grandes promotores não pagam taxas, os médios pagam taxas reduzidas e os pequenos pagam tudo por inteiro, o que é inadmissível”, critica a deputada municipal.
A representantes da Iniciativa Liberal na Assembleia Municipal de Oeiras denunciou, em junho passado, a oferta de bilhetes a vereadores e deputados municipais para o festival Nos Alive depois de votarem a comparticipação financeira de 349 mil euros à entidade promotora. A contrapartida do valor atribuído e da isenção de taxas na edição de 2023 era a cedência de 3.600 bilhetes por parte da Organização ao município de Oeiras. Pelo menos uma centena desses bilhetes foram distribuídos por membros dos órgãos executivo e deliberativo da autarquia.
Mariana Leitão, que recusou os dois bilhetes que lhe chegaram às mãos, garante que esta oferta constitui uma “discriminação dos funcionários públicos em relação a todos os oeirenses, que aqui vivem e aqui pagam os seus impostos e, como tal, permitem que a autarquia tenha condições para prestar este apoio logístico e financeiro”.
Por outro lado, há vários eventos que têm como contrapartida bilhetes que, segundo a informação prestada pela autarquia, são oferecidos a famílias carenciadas ou associações sem fins lucrativos. No entanto, não há qualquer relatório que evidencie essa atribuição de forma que seja do conhecimento público quais os beneficiários destes bilhetes ou quais os critérios para a sua atribuição.
Mas há mais apoios do executivo de Isaltino Morais para festivais que acontecem no município, mas fora do Passeio Marítimo de Algés. O Out Jazz, que decorre de maio a setembro em vários locais do concelho e tem entrada livre, conta com 160 mil euros de apoio financeiro e quase 6 mil euros em isenção de taxas. Recorde-se também o festival que se realizou nos Jardins do Marquês, em junho e julho, apoiado em cerca de 35 mil euros pelo município de Oeiras.
Feitas as contas, olhando para todos estes festivais, chegamos a pelo menos 850 mil euros dispensados pela Câmara de Oeiras a grandes promotores de festivais e concertos que ocorreram durante o verão no concelho.
Gaia deu 300 mil euros ao Marés Vivas, isentou o festival de taxas e ainda ficou responsável pelo apoio logístico ao recinto
Mais a Norte, desta vez na outra margem do rio Douro, há outro festival que se destaca, não só por arrastar multidões ao antigo parque de campismo da Madalena, em Vila Nova de Gaia, mas também pelo financiamento autárquico que recebe anualmente. O Meo Marés Vivas, que já vai na 15ª edição.
Em junho, a autarquia liderada pelo socialista Eduardo Vítor Rodrigues aprovou um acordo entre o município e a PEV Entertainment, Lda, a empresa responsável pela organização do festival de música. Previa a atribuição direta de uma comparticipação financeira no valor de 300 mil euros. A cargo da autarquia ficaram ainda os trabalhos de preparação, montagem e desmontagem de equipamentos de apoio ao festival, garantir a vedação provisória do espaço através de estruturas metálicas, bem como a criação de pontos de alimentação de energia.
O protocolo entre as duas entidades prevê ainda o apoio dos Bombeiros Sapadores ao evento e a disponibilização de meios e recursos humanos para os serviços de limpeza. Mas há mais um apoio que, apesar de não financeiro, poupou alguns milhares de euros à organização do Marés Vivas: a “dispensa do pagamento das taxas municipais”.
Mas foram exigidas contrapartidas à organização do festival. Por exemplo, a disponibilização ao município de dois mil convites de acesso geral e à zona VIP do recinto do espetáculo e a instalação de um stand de promoção ao município. O Marés Vivas ficou ainda onerado a referir o apoio autárquico , “através da inclusão do respetivo logótipo, em todos os suportes gráficos de promoção ou divulgação da atividade, bem como em toda a informação difundida nos diversos meios de comunicação”.
No protocolo firmado entre a câmara e a promotora do festival, justifica-se o apoio público com o “crescente sucesso” do festival, não só junto da população do concelho, mas também promovendo a “afluência de milhares de pessoas oriundas de diferentes partes do país e do mundo”. Segundo a autarquia, esta mobilização justificada pelo festival contribui “para a divulgação de Vila Nova de Gaia e para promoção da sua atividade económica, designadamente, ao nível da restauração, hotelaria e do turismo em geral, assumindo, desta forma, um manifesto interesse municipal”.
Coura, Sudoeste e Coldplay: os apoios fora das maiores cidades
Não é um festival de verão, mas tendo em conta a quantidade de fãs que levou até Coimbra para assistir aos concertos da banda britânica Coldplay, bem podia ser. Em abril passado, a Câmara Municipal de Coimbra votou favoravelmente a atribuição de um apoio financeiro no valor de 440 mil euros à Everything is New, empresa responsável pela realização dos quatro concertos que esgotaram em poucas horas.
José Manuel Silva, presidente da autarquia eleito pela coligação Juntos Somos Coimbra (PSD, CDS-PP, Nós,Cidadãos!, PPM, Aliança, RIR e Volt), garantiu em abril que estes concertos eram “um dos melhores negócios de sempre” para a cidade dos estudantes e para a sua região. “Se cada pessoa deixasse 500 euros, haveria um retorno tangível de 100 milhões de euros. Se cada uma só deixar 100 euros – e isso não chega para a dormida da maioria – são 20 milhões de euros”, exemplificou o autarca, que se apoiou na prática de outras autarquias, que também dão apoio ou isentam de taxas grandes eventos culturais.
Os vereadores do PS, que não votaram a proposta de apoio aos concertos por esta chegar à deliberação do executivo apenas 19 dias antes da realização dos eventos, estimaram um “apoio global direto e indireto aos concertos dos Coldplay a rondar um milhão de euros”. Os socialistas ressalvaram não ter dúvidas que os quatro concertos dariam visibilidade a Coimbra, mas criticavam os “dados ocultos” quanto ao negócio, nomeadamente a receita global de bilheteira e custos globais de produção associados.
Já o Vodafone Paredes de Coura, que assinalou na edição de 2023 o 30.º aniversário, também conta com apoios da Câmara Municipal de Paredes de Coura. O festival que se realiza no Alto Minho contou, segundo a informação cedida pela autarquia ao Observador, com uma comparticipação financeira de 80.000 euros.
Além da atribuição direta de fundos, a autarquia forneceu ainda apoio logístico relacionado com as estruturas de apoio do festival – campismo, casas de banho e chuveiros – bem como, serviços de prevenção contra incêndios para garantir a segurança dos campistas. Os promotores do festival ficaram também dispensados do pagamento das taxas municipais que tivessem lugar pela realização do evento.
Já o Meo Sudoeste, que na edição deste ano recebeu David Guetta, Metro Boomin e Niall Horan, recebeu diversos apoios não financeiros provenientes da Câmara Municipal de Odemira. O Observador questionou o executivo em relação ao valor estimado dos apoios, mas o município não quis revelar o valor.
A autarquia apoiou a entidade promotora do festival que decorre anualmente na Herdade da Casa Branca, na Zambujeira do Mar, com a disponibilização de materiais para o recinto e de outros serviços logísticos. Atribuiu ainda uma redução em 50% das taxas aplicáveis referentes ao licenciamento do festival. Quanto é que isso representa? Não quis dizer.