A Entidade para a Transparência está a tornar o acesso às declarações de rendimentos e património dos políticos mais difícil, moroso e burocrático do que era a consulta antes de este organismo ser criado. O Tribunal Constitucional, que antes facilitava o acesso presencial tendo por base a mesma lei, desresponsabiliza-se do processo e diz que a nova entidade é independente. Legisladores ouvidos pelo Observador, que elaboraram e aprovaram a lei, explicam que quando criaram este organismo o objetivo era precisamente o contrário do que está a acontecer: facilitar e universalizar o acesso às declarações.

Casos como a imobiliária que Pedro Siza Vieira detinha com a mulher, as vendas imobiliárias de António Costa, as moradas erradas dadas ao Parlamento pelos antigos secretários de Estado Feliciano Barreiras Duarte ou Matos Rosa e o da empresa do pai de Pedro Nuno Santos só foram noticiados porque houve esse acesso livre e quase imediato às declarações de rendimentos. Agora, isso deixou de ser possível.

Em meados de julho, o Observador tentou consultar as declarações de vários ministros do atual Governo, como fez dos anteriores. Apesar da identificação como jornalista do requerente e da justificação de que o motivo da consulta era um trabalho jornalístico, a recém-criada Entidade para Transparência (EpT) recusou-se a ceder a documentação enquanto o Observador não detalhasse mais os fundamentos que tinha dado. Como esses detalhes não foram dados — para proteger o sigilo profissional e a independência jornalística — o pedido foi indeferido e, mais de um mês depois, ainda não foi possível aceder às declarações. Antes da entidade da transparência, uma consulta podia ser feita no próprio dia; com o novo organismo já passou mais de um mês.

Entidade quer saber mais, TC pedia muito menos (mas lei é a mesma)

Uma das razões que levou a Entidade da Transparência a barrar (ou, no mínimo, atrasar) o acesso às declarações foi o nº5 do artigo 17.º da Lei 52/2019 , que diz que no caso dos rendimentos e do património, as declarações podem ser consultadas “mediante requerimento fundamentado com identificação do requerente”. Com uma premissa: para a Entidade para a Transparência, um trabalho jornalístico, com o jornalista devidamente identificado, não é razão suficiente para permitir a consulta.

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A Entidade para a Transparência, na resposta enviada ao Observador, entende assim que o legislador não tomou a opção de “fixar um acesso livre aos mencionados elementos”. Daí que, considera, “o particular, seja ele jornalista ou não, deve, pelo menos, fundamentar o seu pedido, não bastando, s.m.o. [salvo melhor opinião], descrever o seu pedido em modos de tal forma genéricos que se considere não haver uma verdadeira fundamentação.” A EpT também diz, por outro lado, que a fundamentação do requerimento não tem de ser “exaustiva ou prolixa.” Mas acrescenta, na mesma resposta, que essa mesma justificação deve ter “um conjunto de razões sólidas que demonstrem clareza e suficiência que permitam à EpT concluir que a recolha da informação não consubstancia um abuso do direito”.

A Entidade para a Transparência chega a recorrer ao Estatuto do Jornalista para justificar que não basta dizer que a consulta é para um trabalho jornalístico, pois pode estar a violar a norma do mesmo estatuto que alerta para o perigo de o jornalista “encenar ou falsificar situações com o intuito de abusar da boa fé do público”. Ou seja: perante um pedido de um jornalista identificado e a explicar que o faz para um trabalho jornalístico, a entidade criada para facilitar o acesso às declarações de rendimentos dos políticos assume também a autoridade de travar a consulta por não ter garantia de que os dados serão utilizados de boa fé.

“Entendimento informal” valida prática que cria mais obstáculos à consulta

Ora, tendo por base a mesma lei, que pedia que a mesma “fundamentação” fosse dada à entidade responsável pela análise e fiscalização das declarações (que era até março o Tribunal Constitucional), o TC optou sempre por pedir apenas um requerimento simples com o nome e número da carteira profissional do jornalista. Apesar de a norma também se aplicar quando a consulta é feita “presencialmente junto da entidade”, quando questionado pelo Observador o TC respondeu que entende que esta disposição na lei só passou a “vigorar plenamente” quando a plataforma eletrónica começou a funcionar (o que aconteceu apenas em 2024).

O que é inegável — e facilmente comprovável — é que o acesso por via da quarta secção do Tribunal Constitucional foi sempre, até março de 2024, mais fácil quer para jornalistas quer para cidadãos do que o novo sistema. Questionado sobre o facto de a entidade que deve promover a transparência dificultar o acesso a documentos, o TC destaca o barrar do acesso pela EpT ao Observador como uma “posição adotada no legítimo exercício das suas competências, sendo a EpT uma entidade administrativa independente, nem sujeita a ordens ou instruções do TC, nem, tão-pouco, vinculada pela prática administrativa precedente do TC.” Prática precedente que, aliás, o TC nega ser aplicável à consulta presencial que ocorreu entre 2019 e março de 2024.

O TC repete também que a fundamentação não tem de ser “exaustiva ou prolixa” e, acrescenta — sem concretizar o que considera ser uma fundamentação “suficiente e equilibrada” – que se trata de “equilibrar a liberdade de imprensa com a proteção de dados pessoais e a reserva da intimidade da vida privada.” Ou seja: o TC valida a tese de que tem de ser a justiça a fazer a análise do que o jornalista deve ou não noticiar, com base na alegada fundamentação mais detalhada — ignorando que a liberdade de informar tem regras próprias e está regulamentada de forma independente da justiça.

Depois de questionado sobre a que título proferia esta posição — que valida os obstáculos criados à consulta — o gabinete de relações externas do TC explicou, afinal, que este é apenas um “entendimento informal do Gabinete do Presidente do Tribunal Constitucional e não uma posição formal do Tribunal Constitucional”. Isto porque, explica, “como é evidente, o Tribunal Constitucional, em si mesmo, apenas emite pronúncias jurídicas no âmbito da respetiva atividade processual e não perante os órgãos de comunicação social.”

Legisladores lembram que objetivo da entidade criada era promover transparência

A Entidade para a Transparência, na mesma resposta, lembrou que para que possa permitir acesso ao documento já não é necessário que exista um “interesse relevante”, mas apenas a “apresentação de um requerimento fundamentado”. A referência torna ainda mais insólito o pedido da EpT que, na verdade, quer um requerimento fundamentado onde não tem de se apresentar um interesse relevante para a consulta.

A EpT explica depois que “não tendo o legislador, nesta sede, definido coordenadas precisas no que concerne aos requisitos a que tal fundamentação deverá obedecer para ser aceite, a resposta terá de ser procurada, caso a caso“. Fica claro que o caso em que um jornalista está a fazer um trabalho jornalístico não é fundamentação suficiente.

A lei que criou a Entidade para a Transparência teve por base uma proposta do Bloco de Esquerda, que depois foi sofrendo alterações de PS e PSD. Pedro Filipe Soares, que era na altura o líder parlamentar do BE, explica ao Observador que “a digitalização do processo pretendia tornar mais simples o acesso e menos discriminatório (só a deslocação a Lisboa para o fazer era uma barreira que colocava cidadãos em desigualdade).”

O antigo dirigente bloquista acrescenta ainda: “Enquanto legislador, a minha ideia era, portanto, facilitar a consulta e as mudanças na lei tiveram o meu voto por serem nesse sentido.” Além disso, e completamente contrário a interpretação da atual EpT, Pedro Filipe Soares considera: “O trabalho jornalístico é, por si só, na minha opinião, motivo bastante para acesso às declarações.”

O então vice-presidente da bancada do PS e responsável pelas negociações da Entidade da Transparência, Pedro Delgado Alves, também está em contraciclo com o que diz a Entidade da Transparência. O socialista diz que a versão aprovada em 2019 tinha, de facto, “em conta as restrições que resultam do RGPD, passando  a “identificar os dados pessoais que não podem ser acessíveis (que não tinham restrições até então — moradas, números de identificação civil e fiscal, contactos telefónicos ou e-mails, por exemplo).”

Porém, destaca o também legislador Pedro Delgado Alves, “a necessidade de fundamentar o pedido de acesso também resulta da lógica subjacente ao RGPD, não limita o acesso, apenas implica que o requerente tenha de demonstrar um interesse relevante para poder consultar dados pessoais de um terceiro. Neste conceito de interesse tem-se sempre enquadrado o trabalho jornalístico”.

Para os próprios legisladores ficam claras duas questões: primeiro, que a Entidade da Transparência deve facilitar a consulta; segundo, que o trabalho jornalístico, por si, é razão suficiente para se considerar que o requerimento é fundamentado. Nada disto foi cumprido pela Entidade da Transparência. Um mês depois, após trocas de emails e até contactos telefónicos com a entidade, o Observador continua sem acesso às declarações.