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Quando terminou o “curto” telefonema que António Costa fez a Carlos Costa, poucas horas depois de este ter vetado Isabel dos Santos no BIC, o então governador do Banco de Portugal desvalorizou o “impulso” do primeiro-ministro. Demissão por ter sido pressionado? “Isso seria dar eficácia à tentativa de pôr em causa a independência do banco central”, diz Carlos Costa – até mesmo quando se fala de uma tentativa de pressão por parte do primeiro-ministro de Portugal.
Em entrevista ao Observador e Rádio Observador, o ex-governador do Banco de Portugal – protagonista de um livro da autoria de Luís Rosa, editado pela D. Quixote – revela que o Banco de Portugal teve indícios de branqueamento de capitais por parte de Isabel dos Santos e, por isso, nunca poderia ter participado no alegado “acordo” que Marcelo Rebelo de Sousa disse existir sobre o BPI e o BIC.
Carlos Costa defende ainda que, por haver “dados novos” sobre o caso Banif – que pode ter tido desenvolvimentos por “razões estranhas” –, seria importante olhar novamente para o caso, seja do ponto de vista judicial seja do ponto de vista do apuramento de responsabilidades políticas. E acrescenta que, não tivesse sido o Banco de Portugal “hábil”, a dada altura, Portugal poderia ter falhado com os seus pagamentos da dívida e dos salários e pensões.
Isabel dos Santos. Banco de Portugal tinha “fortes indícios” de branqueamento de capitais
O Presidente da República disse na quarta-feira que a dada altura – em 2016 – estavam “todos” alinhados para um acordo que previa que Isabel dos Santos saísse do capital do BPI mas fosse autorizada a ficar na administração do Banco BIC – ou seja, ao referir todos, está a incluir o governador do Banco de Portugal. Isto é verdade?
O Banco de Portugal não tinha de participar em nenhum acordo sobre alteração da estrutura acionista de um banco, neste caso o BPI. Era conhecido que havia necessidade do lado do BPI de encontrar uma solução para as suas questões de supervisão com o Mecanismo Único de Supervisão…
Mas nunca participou nesse acordo, nem sabia dele?
Nem tinha de participar. O que tinha era consciência de que era necessário que o BPI resolvesse o problema que tinha, em matéria de supervisão, resultante do facto de ter um risco em Angola que era desproporcionado em relação ao seu balanço. Portanto, das duas uma: ou reduzia a dimensão do risco e mantinha o seu balanço ou o BPI passava a fazer parte de um balanço maior e, assim, o risco ficava mais diluído.
Quer dizer que o Presidente da República, ao dizer que estavam “todos” alinhados, não estava a ser rigoroso, no mínimo…
Eu diria que ele presume – e, se presume, presume bem – que o Banco de Portugal estava muito interessado em que o BPI encontrasse uma solução que era um problema de natureza diferente (que tinha a ver com a sua estrutura acionista). Obviamente, o Banco de Portugal, estando interessado, via com bons olhos todos os esforços nesse sentido. Mas não era parte do processo de negociação…
Mas o acordo envolvia também o BIC…
Não. A questão do BIC, como já expliquei, é uma questão de idoneidade. E a questão da idoneidade não é moeda de troca para nenhuma outra decisão – ainda por cima numa instituição terceira. Mesmo que fosse na mesma instituição, nunca seria [possível], porque a idoneidade ou se tem ou não se tem. E o que está em causa com a eng. Isabel dos Santos é o facto de ter havido indícios de não observância das regras em matéria de combate ao branqueamento de capitais, como aliás depois se verificou com os processos que entretanto foram abertos. O que foi dito à eng. Isabel dos Santos é que, como acionista, podia manter-se, como administradora não poderia – na medida em que não tinha condições para lhe ser reconhecida a idoneidade.
A decisão de dar idoneidade é do Banco de Portugal, não é do BCE, como deu a entender o Presidente da República…
O Banco de Portugal faz parte do Mecanismo Único de Supervisão. As decisões são tomadas no interior do Mecanismo Único de Supervisão. O Banco de Portugal é a porta de entrada da decisão sobre a idoneidade, é parte do processo de decisão, mas o processo de decisão sobre idoneidade passa-se no interior de um mecanismo e em processo de co-decisão.
Mesmo num banco não-sistémico, um banco mais pequeno?
Mesmo num “banco não-significativo”. A questão da idoneidade tem uma dimensão de aplicação uniforme das regras e as regras são regras europeias.
“O telefonema [de António Costa sobre Isabel dos Santos] morreu ali”
No SMS que António Costa lhe enviou recentemente, que foi noticiado pelo Observador e que confirmou na apresentação do livro, o próprio primeiro-ministro reconhece que em 2016 lhe telefonou a dizer que era “inoportuna” a sua iniciativa de não permitir que Isabel dos Santos continuasse no BIC. Carlos Costa já disse que o telefonema foi curto e agreste, mas recorda-se mais sobre o que foi dito – designadamente o que é que lhe respondeu?
O que respondi foi muito simples: trata-se da aplicação da lei.
E António Costa não compreendeu?
Eu diria que o telefonema foi curto e teremos ficado por aí.
O telefonema foi em abril de 2016, mas Isabel dos Santos só sai da administração do BIC em junho quando foi para presidente da Sonangol – e saiu do BIC ao mesmo tempo que saiu também de outras empresas, da Nos e da Efacec. Ou seja, ainda passaram alguns meses entre uma coisa e outra, o Banco de Portugal não conseguiu andar mais depressa, arrastou os pés?
A reunião com Isabel dos Santos teve lugar porque estava em curso a nomeação de um novo conselho de administração. E o conselho de administração que tinha sido proposto foi rejeitado pelo Banco de Portugal.
Oficialmente?
Oficiosamente, porque foi dito que não preenchiam os requisitos necessários do ponto de vista da idoneidade – incluindo a pessoa que estava a ser proposta para CEO [Jaime Pereira]. A reunião surge nesse contexto e o que foi solicitado aos dois acionistas de referência [Isabel dos Santos e Fernando Teles] foi que indicassem um conselho de administração formado por independentes com reconhecida idoneidade na sequência das dificuldades que nós teríamos em aceitar aquilo que nos iriam propor. É uma reunião, eu diria, preventiva… O que se fez ali, com muito cuidado do nosso lado, foi avisar os acionistas de que teriam de ser cuidadosos na apresentação de novo conselho de administração no sentido de assegurar que, à partida, as pessoas tinham a idoneidade requerida.
António Costa pressionou Carlos Costa para não retirar Isabel dos Santos do BIC
Numa das audições parlamentares sobre o Banif, Carlos Costa citou o artigo 130.º do Tratado que funda o BCE e que diz, basicamente, que não se pode dar nem receber instruções de governos. Considera que António Costa violou este ponto do tratado quando lhe telefonou para falar de Isabel dos Santos?
Eu considero aquilo que já disse. Houve um telefonema agreste, um telefonema do qual eu não estaria à espera…
Mas que consequências é que se devem tirar disso? Ou seja, se houve uma violação dessa legislação, a quem cabe julgar e sancionar essa matéria?
A questão é muito simples: eu tenho o dever de não ter em consideração o telefonema – não tive em consideração o telefonema e, a partir daí, salvaguardei a independência do Banco de Portugal e a independência do sistema europeu de bancos centrais tal qual como está previsto no artigo 130.º dos Estatutos do BCE.
Alguns comentadores têm defendido que se se sentiu tão desconfortável como sugere, porque é que não se demitiu? E porque é que não falou, logo na altura, no problema?
Se eu me demitisse estava a dar eficácia a qualquer tentativa de pôr em causa a independência do banco central. Bastava telefonar-me, bastava eu sentir-me afetado e logo me demitia – isso é um absurdo, como é óbvio. E qualquer linha de reporte é uma linha de reporte no interior do sistema europeu de bancos centrais, porque é aí que se salvaguarda a independência.
Mas fez alguma coisa, a esse nível? Ou o telefonema morreu ali?
Morreu ali, o telefonema morreu ali por uma razão muito simples: eu não senti que tivesse dali qualquer condicionamento para a minha atividade e exerci a minha atividade com total independência…
“António Costa disse que se sentia melindrado pela minha recondução”
Sentiu sempre que tinha uma espada de Dâmocles por cima da sua relação com António Costa e Mário Centeno?
Senti que havia desacordo relativamente à minha recondução e isso infetava as relações com o governador do Banco de Portugal…
Atribui esse desacordo apenas às questões que têm a ver com a nomeação (ou não nomeação) de Mário Centeno para diretor do gabinete de estudos económicos do Banco de Portugal? Ou mágoas do Partido Socialista relativamente à forma como foi gerida a chegada da troika e o seu papel, a par do papel de Teixeira dos Santos…?
Não sou capaz de identificar a causa. A única coisa que posso afirmar, como vem escrito no livro, é que o sr. primeiro-ministro – ainda quando era apenas secretário-geral do Partido Socialista [líder da oposição] – me comunicou que se sentia melindrado pelo facto de não ter sido consultado pelo primeiro-ministro Passos Coelho aquando da minha recondução. Eu não posso dizer mais do que isto, porque foi a única coisa que me foi comunicada.
Mas sabia que havia todo o período anterior, o período em que esteve cá a troika, em que teve várias audições no parlamento em que o PS – particularmente João Galamba, na altura – tinham sido muito agressivos consigo…
Sim, mas eu penso que o resultado do programa de assistência económica e financeira veio demonstrar, por si, primeiro, a sua necessidade, segundo, as suas virtualidades, e terceiro, deixou o país no momento da saída numa condição francamente melhor do que a que existia em 2010.
Mas António Costa tinha a tese de que não tinha havido “saída limpa”. A saída tinha sido suja e mascarada…
A única coisa que posso dizer, em termos objetivos, é que havia três instituições internacionais envolvidas – o BCE, a Comissão Europeia e o FMI – que faziam uma verificação rigorosa de todo o processo, estávamos sujeitos a exames trimestrais e foram eles que constataram que a saída tinha sido consequente do ponto de vista da carta de compromissos que tínhamos aceitado. E, para mim, o critério supremo é o critério de mercado: a partir do momento em que o mercado valida o nosso regresso e aceita que passemos a emitir dívida no mercado significa que recuperamos a nossa reputação e esse é que é o critério último da saída limpa.
Primeiro-ministro deve prestar contas? “Não é uma questão que diga respeito ao ex-governador”
Voltando à questão do telefonema de António Costa, disse que seria absurdo demitir-se e continuou a agir de forma independente – pelo que “morreu ali”. Mas a questão é: até que ponto é que não devia ter feito queixa – publicamente ou não? Receber aquele telefonema não devia ter sido algo que deveria ter suscitado uma reação da sua parte que não apenas pensar no que aquilo significava para si e para o Banco de Portugal, mas também para a sociedade como um todo?
Os órgãos independentes avaliam-se em função da consequência das pressões que recebem. Se as pressões que recebem são inconsequentes, significa que quem os dirige é independente. Depois, a forma como estas pressões são geridas – ou não – é uma questão que tem a ver com a estrutura do Estado em que está inserido ou a estrutura organizacional em que se está inserido (no caso, o sistema europeu de bancos centrais). E o facto de eu considerar que o assunto tinha morrido ali levava-me tranquilamente a pensar que tinha sido contida qualquer tentação ou, melhor, sentimento que poderia ter estado subjacente à iniciativa.
Mas tentar pressionar também é censurável, mesmo que não tenha consequência…
Eu acho que o banco central tem de ter a capacidade para ouvir mas não se desviar da sua trajetória só porque recebe um ou outro impulso que não é conforme com o seu estatuto e com o seu mandato.
No livro, há uma referência a “não se tratar assim a filha do Presidente” de Angola. No SMS o primeiro-ministro diz que apenas lhe disse que era “inoportuno” [retirar idoneidade a Isabel dos Santos no BIC, quando se negociava solução para o BPI]. Qualquer uma das coisas seria uma pressão mas disse uma coisa, disse a outra, disse as duas?
O que foi dito é aquilo que está no livro.
Acha que António Costa deve prestar contas aos portugueses sobre este caso?
Isso não é uma questão que diga respeito ao ex-governador. Diz respeito ao quadro institucional português.
Afastar Ricardo Salgado era mais difícil do que afastar Isabel dos Santos
Porque é que sentiu que tinha segurança jurídica para afastar Isabel dos Santos? Se é dito que não afastou Ricardo Salgado mais cedo do BES por ter receio de não ter segurança jurídica para o fazer, arriscando processos perigosos depois, porque é que teve essa “ousadia” com Isabel dos Santos? Também não tinha “indícios fortes” com Ricardo Salgado?
Há uma grande diferença entre a avaliação de idoneidade para efeitos de início de um novo mandato [de administrador] e a retirada de idoneidade em pleno exercício de mandato.
É mais complicado retirar idoneidade.
É mais complicado porque há uma jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que exige que a retirada do mandato se apoie numa decisão transitada em julgado, por um tribunal, e que essa decisão releve do ponto de vista da matéria que está em causa – ou seja, que seja uma questão relacionada com a gestão. Quanto a Ricardo Salgado, no entender dos juristas do Banco de Portugal, a margem de manobra era superior no momento da recondução do que a que temos quando se trata de retirar idoneidade em pleno exercício do mandato.
Houve várias pessoas, como Fernando Teixeira dos Santos, que disseram que foi muito “corajoso” por ter enfrentado Ricardo Salgado, ao dizer “não” a Ricardo Salgado. Sabemos que não foi o único a fazê-lo, Passos Coelho também o fez. Os protagonistas políticos de hoje também diriam que não a Ricardo Salgado, qual é a sua intuição?
Já não tenho experiência suficiente para ter intuição a propósito do comportamento dos atuais protagonistas. O quadro mudou completamente, os equilíbrios entre os poderes económicos e o poder político é diferente, os protagonistas são diferentes, seria altamente especulativo formular qualquer opinião nessa matéria.
Nunca ninguém lhe disse que era uma pena o BES ter desaparecido?
A questão é que foi inexplicável que tenham sido feitas operações que levaram à descapitalização do banco quando o banco estava já blindado relativamente às empresas de um acionista, tinha o capital necessário para fazer face às perdas dessas empresas, e o conselho de administração foi surpreendido, em julho [de 2014], por operações que reduziram significativamente o capital porque envolveram grandes perdas. E quando os membros de conselho de administração que tinham sido cooptados tomaram posse [liderados por Vítor Bento] eles não sabiam, tanto quanto eu sei, das operações que vieram a ser a causa da descapitalização do banco que levou a que o rácio de solvência tivesse sido colocado na ordem dos 5,1%.
Olhando a posteriori, teria feito tudo da mesma forma se pudesse repetir?
É sempre muito difícil julgar quando se tem conhecimento do que se passou. O que sou capaz de dizer é que as restrições, as limitações do quadro legal continuavam a ser as mesmas. O que significa que se eu tivesse tido uma premonição sobre a descapitalização no final de julho, eu estaria com uma angústia muito grande para assegurar que teria a capacidade de evitar que tal acontecesse. Porque essas operações [Eurofin] foram feitas em total segredo dentro do próprio banco.
Não se sabe é para onde é que foi esse dinheiro…
Eu não sei. Eu não sei…
Falamos de quanto dinheiro?
É um valor muito grande, superior a 2.700 milhões de euros, salvo erro. Mas eu gostaria de salientar que toda esta informação é, hoje, pública, consta dos processos sancionatórios do Banco de Portugal, consta dos processos estabelecidos pela PGR, e muita desta informação consta dos arquivos da comissões parlamentares de inquérito. Eu diria que toda a informação necessária para fazer um livro como fez o dr. Luís Rosa está hoje disponível e espero bem que os historiadores de Economia do futuro a consultem com o mesmo rigor e com a mesma sagacidade.
Banif. Condições podem ter sido apertadas por “razões estranhas”
Luís Marques Mendes, que fez a apresentação do livro, apresentou a questão do Banif dando a entender que suspeita que houve um favorecimento do banco que adquiriu o Banif – neste caso, o Santander Totta. Houve favorecimento?
Eu não posso dizer isso porque tomei conhecimento de dados novos que são trazidos pelo Luís Rosa no seu livro. E relativamente ao Banif eu digo que há questões que têm de ser respondidas, e que resultam do trabalho que foi feito para o livro…
Mas questões relacionadas com um eventual favorecimento?
O que eu digo é o seguinte: há no Banif várias fases. A fase da recapitalização, a fase do processo de reestruturação e diálogo com a DGComp – que é um diálogo que se passa entre o Banif, o Ministério das Finanças e a DGComp. A terceira fase é a fase em que, depois de ser aberta uma investigação aprofundada, o Banif inicia um processo de venda voluntária. E nessa fase houve candidatos à compra e, ao mesmo tempo, terá havido uma pressão com antecipação dos calendários de venda. A fase seguinte é que se abre após o banco ter sido objeto de uma perda de liquidez por força de notícias [o rodapé da TVI a dizer que o banco ia fechar, que originou uma corrida aos depósitos]. Nessa altura, o banco está na iminência de ser declarada ilegal a ajuda pública que lhe tinha sido atribuída – o que implicava a restituição do capital – e simultaneamente a necessitar de liquidez.
Em qual dessas fases é que acha que pode haver matéria para que o Ministério Público investigue, tal como sugeriu Marques Mendes?
Eu acho que há que olhar para as fases que correspondem à alteração de condições e alteração de calendários… Uma alteração de calendários que pode ter sido por razões meramente administrativas ou outras… Não estou em condições de avaliar. O que estou em condições de dizer é que ao longo do processo de reestruturação o Banif esteve perante uma sucessão de alterações de exigências da parte da DG Comp [Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia], no sentido de restringir cada vez mais o volume do negócio e a viabilidade do banco. Essas alterações podem ser justificadas ou por razões estranhas que eu não avalio ou por uma vontade política de reduzir o número de bancos na praça.
Até que ponto é que o Banco de Portugal e o Governo deviam ter batido o pé a que esses calendários fossem tão comprimidos? Temos o caso do Monte Paschi em Itália, que com todos aqueles problemas ainda hoje continua…
O Banco de Portugal, indo para além daquilo que era a sua competência, fez saber à DG Comp por várias vezes que considerava que as condições que estavam a colocar aos diferentes bancos, em matéria de reestruturação, eram condições que punham em causa a estabilidade macro-financeira do país. Segundo, o diálogo entre a DG Comp e o país faz-se através do Ministério das Finanças. E o Ministério das Finanças deverá ter avaliado a importância que tinha dar tempo ao banco para ter uma venda voluntária. Do ponto de vista do Banco de Portugal as coisas sempre foram muito claras: a prioridade era a venda voluntária – ora, o que verificámos é que o Banco de Portugal foi informado sucessivamente que a venda voluntária ia ter um prazo de execução muito curto, que a recapitalização obrigatória não ia ser permitida, que a possibilidade de uma intervenção com capital público (conversão de créditos em capital) não era permitida, que o banco de transição não era possível. Portanto, o Banco de Portugal ficou com duas opções na mesa: ou promovíamos a venda de ativos a um terceiro ou liquidava o banco, que teria consequências sistémicas muito graves. E era muito mais cara que a venda.
Carta de Costa a Draghi/Juncker foi “contraditória” com processo de venda em curso
Que consequências tem a carta enviada pelo primeiro-ministro ao presidente da Comissão Europeia e ao BCE?
Acho que só os próprios podem responder. Do lado de lá, seguramente que precipitou a ideia de que tudo estava mais difícil do que aquilo que tinham concluído as suas equipas e nós próprios, no final do ajustamento.
Estamos a falar de uma carta em que o primeiro-ministro diz a Mario Draghi [então presidente do BCE] e a Jean-Claude Juncker [à altura presidente da Comissão Europeia] que o Banif estava em “pré-resolução”, apesar de a venda estar a decorrer.
Exatamente – e isso é contraditório com o processo de venda. A carta não influenciou o Banco de Portugal – até porque não teve conhecimento imediato dela – julgo que não influenciou o conselho de administração do Banif, porque continuou com o processo de venda. O que aconteceu, em paralelo, é que houve um estreitamento de hipóteses: ou seja, inicialmente a venda voluntária contemplava fundos de investimento…
Que estavam a oferecer mais dinheiro, como Apollo, JC Flowers…
E os fundos de investimento foram eliminados como hipotéticos candidatos.
Com que argumento? É que mais tarde deixaram que fosse um fundo de investimento a comprar o Novo Banco.
Essa é a questão que tem de ser colocada a quem tomou a decisão.
Mas o que é que entendeu da justificação para a decisão?
Nós não tínhamos diálogo com a DG Comp e a única coisa que posso dizer é que houve uma comunicação da DG Comp a dizer quem era – ou não – elegível para a aquisição. E, depois, na fase final, ainda se afasta os bancos que tivessem uma dimensão inferior a cinco vezes…
Porque é que o BPI não foi convidado a apresentar uma proposta?
Porque não tinha manifestado interesse até aí. Os bancos que foram convidados [Banco Santander e Banco Popular] foram aqueles que na fase de venda voluntária estavam já a acompanhar o processo.
Mas a carta de António Costa ao BCE e Comissão Europeia só apareceu na comissão de inquérito perto da sua terceira audição, em junho de 2016. Foi trazida por deputados do PSD. Se já conhecia a carta, se já achava que tinha tido um papel decisivo naquele processo, porque é que não a revelou?
Atenção, eu não conhecia a carta. Conheci-a naquela altura pelas mesmas fontes. A carta surge por mão amiga que foi, provavelmente, a mesma mão amiga que a colocou na CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito]. Mas, como se diz, “já Inês era morta”. Mas o que importa não é eu ter tido, ou não, acesso à carta. Teria sido muito útil que o Banco de Portugal tivesse sido consultado para verificar se os termos da carta correspondiam à real situação – porque isto era relevante para apreciação de risco do sistema bancário. Depois, era muito importante que não tivesse sido utilizado o termo “pré-resolução”.
Para um banco que estava a ser vendido.
Porque ainda a autoridade de resolução não tinha tomado nenhuma decisão.
Que papel é que acha que a mudança de Governo teve no processo do Banif? Se não tivesse havido eleições, ou se tivesse continuado o Governo que existia [de Passos Coelho], o Banif tinha tido o mesmo fim?
Eu, isso, deixo para os ouvintes pensarem…
Vou assumir que não, então, que não teria tido o mesmo fim.
O que digo é que havia ponderações e cada Governo faz as suas ponderações. E essas ponderações têm a ver com sucesso da venda, com o diálogo com a DG-Comp, prioridades… E isso não posso avaliar.
Acha que o Governo PS, que tomou posse poucas semanas antes, teve pressa em arrumar com a questão do Banif enquanto ainda podia responsabilizar o executivo anterior? Ou seja, será que não quis correr o risco de se passarem mais seis meses e acabar, na mesma, em resolução – e aí já não podia alhear-se de culpas com a mesma facilidade?
Ou tiveram pressa ou era porque íamos transitar para um novo quadro legal em que a autoridade de resolução do Banco de Portugal ia transitar para o Conselho Único de Resolução (onde o Banco de Portugal faz parte mas como co-decisor). Há várias razões, seguramente que haverá explicações plausíveis mas eu não sou capaz de dar explicação porque não sou o autor da decisão. Nem o autor nem o catalisador da decisão.
Ajuda da troika. Tivéssemos esperado e “teríamos tido cessação de pagamentos públicos”
Voltemos ao seu papel nas negociações com a troika, que também aparecem no livro. Na sua opinião, o que teria acontecido se Portugal não tivesse pedido a ajuda externa naquela altura? Podia haver falhas de pagamento aos pensionistas e aos funcionários públicos?
Estou convencido – mas pode haver quem tenha convicções diferentes – de que nós apanhámos o último comboio que partia para o resgate. Tivéssemos demorado mais uma semana ou mais um mês e teríamos tido um problema de cessação de pagamentos públicos. E estou tão mais convencido disso quanto, na última semana em que ainda estávamos a negociar, foi necessário que o Banco de Portugal fosse hábil no sentido de evitar a cessação de pagamentos da República.
O que é que isso quer dizer? Emprestou-se aos bancos para emprestarem ao Estado?
Quero dizer que se deu liquidez ao sistema bancário para o sistema bancário, por sua vez, ajudar a manter a estabilidade macro-financeira. E, dizendo isto com todo o cuidado, confesso que os meus colegas do conselho de governadores tiveram a compreensão de perceber que, dado o andamento das negociações, era compreensível que houvesse uma aceitação desse financiamento como decorrente de uma situação normal. E estou muito grato por isso, porque corresponde a uma avaliação que vem dos próprios membros da troika que estavam aqui. E eu, aqui, gostaria de fazer uma homenagem às pessoas da troika: nós diabolizamo-las, mal.
Porquê?
As pessoas que vêm para o terreno representar as instituições têm duas preocupações: assegurar que o empréstimo é recuperado e assegurar que o país apresenta bons resultados no final do plano de resgate. Esse vai ser o seu próprio quadro de honra em futuras avaliações internas no quadro das instituições. O que eles têm é uma desvantagem porque não têm o mesmo conhecimento da realidade económica e a realidade social e, aí, o que temos de fazer é um exercício de persuasão e alterar alguns pontos de vista porque estão desajustados da realidade portuguesa. Mas as conversas que tive, ao longo dos muitos trimestres em que fizemos avaliações, de que guardo muito boa memória, são conversas de quem pretende entender e percebe, ao mesmo tempo, que o interlocutor não está ali para os violentar ou para exigir o impossível. Está ali apenas para ajustar a perspetiva no sentido de sermos os dois lados bem sucedidos. Ter sucesso em Portugal…
Nós temos noção do que foi não ter sucesso na Grécia, e o que isso significou para qualquer uma das instituições.
Exatamente, é isso mesmo.
Muitas pessoas notaram que havia um certo desequilíbrio na composição do público no lançamento do livro e já deu uma nota de que estava à espera que lá estivessem outras pessoas [mais à esquerda]… Pessoas que à última hora ou avisaram que não iam, ou não avisaram, não percebemos muito bem. Como é que interpreta isso?
Eu gostaria muito que eles tivessem estado presentes, foram convidados. É evidente que uma lista de convites quando se tem uma sala pequena já é uma lista muito condicionada, mas eu esperava e gostava que tivesse estado um leque mais diversificado na audiência. Mas, como se costuma dizer, só faz falta quem está presente. Eu teria muito gosto de contar com os ausentes, tenho muito respeito por eles, estou convencido de que se lerem o livro compreendem que não corresponde ao cliché que foi feito a seu propósito e algumas coisas foram ditas por quem não leu o livro, incluindo nesta rádio – houve quem dissesse cobras e lagartos deste governador, o 17.º, mas seguramente que não leu. Acho que é importante que as pessoas leiam, e não é para me confortar: é para fazer justiça ao autor e para termos consciência de como se desenvolve um grande problema e como se resolve esse mesmo problema.
Acha estranho os nossos atuais banqueiros terem dito que não iam ler o livro?
Acho que isso se deve a um erro dos assessores de comunicação.
No livro diz que aceitar o convite para ser governador foi uma decisão pessoal, a única decisão profissional que tomou sem consultar a sua mulher e a sua família. Foi uma boa decisão?
Acho que foi uma boa decisão mas confesso que tenho de pedir muita desculpa à minha família pelos custos pessoais que acabei por lhes impor. Porque toda a polémica em torno da pessoa do governador acaba necessariamente por se refletir na vida de quem está connosco. Tenho um grande agradecimento, foram de uma solidariedade total.
Chegou a ter a vida condicionada por ameaças?
Prefiro não falar. Mas não é normal viver num bairro tranquilo e ter uma manifestação à porta…
Autorizada por Fernando Medina, que era presidente da Câmara?
Admito que sim, porque uma manifestação que tem um aparato policial a acompanhá-la, teve necessariamente de ser comunicada previamente.
Está a falar de uma manifestação dos chamados “Lesados do BES”, que não foi à porta do Banco de Portugal mas sim à porta da sua casa particular.
E que não são lesados do BES. São lesados de um acionista do BES.
Mas qual é a sua leitura sobre o facto de a manifestação ter ocorrido à porta da sua casa? Acha que estava a ser intimidado? Uma conspiração?
Houve necessariamente manobras de intimidação. O que estava aqui em causa era utilizarmos o banco para resolver problemas de um acionista do banco. Eu não queria terminar sem dizer que o livro é um guião para 10 anos da vida social e política portuguesa. Era desejável que outros, que tiveram outros ângulos e que a partir de outros ângulos observaram a mesma realidade, trouxessem o seu testemunho, porque acho que isso permitia fazer uma espécie de regeneração na compreensão dos problemas e, provavelmente, uma auto-análise – como diria o Eduardo Lourenço – uma psicanálise do povo português.