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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Entrevista a Catarina Martins: "Extrema-esquerda está associada a totalitarismos, perseguição, ódio. Não encontra disso no BE".

A líder do Bloco prefere "esquerda radical" por ter a ver com raíz. Em entrevista ao Observador, acusa ainda o governo de "irresponsabilidade" e de fazer "populismo" com professores

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Em quase hora e meia de conversa, só por uma vez Catarina Martins hesitou a meio de uma resposta. Foi quando lhe pedimos um defeito que apontava a António Costa. Não porque não tenha críticas a fazer-lhe (tem várias, do ponto de vista político, a ele, ao governo e ao PS), mas porque estava à procura da melhor formulação para aquilo que queria dizer: “Tem esperança de que os problemas se resolvam mais depressa, quando eles precisavam de um pouco mais de olhar.” Que é como quem diz, fica à espera que as coisas se resolvam por si. De resto tinha frase pronta para quase todas as perguntas do Observador, naquela que é a primeira grande entrevista deste ano eleitoral para a dirigente bloquista.

A conversa começa na Lei de Bases da Saúde (a do governo seria “perfeita” se tivesse lá escritas as palavras da nova ministra da Saúde), segue pela legislação laboral, Europa, propinas. E quando chega ao tema professores, Catarina Martins ataca com palavras duras: “O governo está a fazer populismo. É absolutamente irresponsável”. Estabelece como uma das prioridades económicas do país e da Europa as alterações climáticas. Não traça metas nem cenários de governo para as próximas legislativas, diz apenas que a esquerda precisa de “mais força”. Até porque “o Partido Socialista é o Partido Socialista”.

[Veja o “best of” da entrevista em vídeo:]

“O Ministério das Finanças não percebe nada de saúde”

Disse recentemente que a legislatura ainda não terminou e que havia muito trabalho pela frente. Onde é que ainda existe espaço para entendimentos com o PS e onde é que o BE tem espaço para apresentar conquistas?
Há vários dossiers em aberto, um deles é a Lei de Bases da Saúde. Temos de decidir se queremos a financiar com o dinheiro do Estado os privados da saúde ou se achamos que é preciso reforçar o Serviço Nacional de Saúde e, portanto, dirigir o esforço do erário público para o SNS.

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O governo está hoje mais próximo daquilo que o Bloco defende, ou não?
O Governo já esteve mais distante da esquerda do que está. Há propostas na lei de bases do Governo que ainda são algo ambíguas, ainda tem algum problema em considerar o setor privado complementar e utiliza a palavra cooperação. Temos de ver o que isto significa do ponto de vista dos meios. Tem algumas dificuldades em assumir que o SNS deve expandir-se, parece pôr muito o futuro nas mãos dos privados. E ainda tem ambiguidades em relação aos seguros de saúde e ao setor privado. Não há da parte do BE vontade de acabar com o setor privado da saúde, mas sim acabar com o financiamento público ao setor privado da saúde. O privado não pode ficar apenas quando dá jeito e quando não dá, mandar tudo para o SNS.

O vosso grande objetivo na Saúde é acabar com as PPP?
As PPP são um problema no sentido em que põem os privados a gerir unidades do SNS, portanto dão mais capacidade aos privados de levar recursos próprios do SNS para o setor privado. É o que têm feito com problemas graves de fragilização do SNS. Mas é, de facto, do ponto de vista do Orçamento, uma pequenina parte do problema, porque quatro em cada dez euros do Orçamento da Saúde (ou três euros se descontarmos o que vai para medicamentos) vão para os privados. E não é das PPP.

Há vários estudos que o mostram que nas PPP o Estado poupa dinheiro e ganha eficácia.
Não, o Estado gasta dinheiro com as PPP. Os estudos mais sérios mostram exatamente o contrário.

"As PPP não trouxeram nada ao Serviço Nacional de Saúde"

Há um do Ministério das Finanças que diz que sim. 
Eu até já vi um estudo a dizer que as unidades que estavam melhor em AVC’s eram PPP, onde não se tratam AVC’s. Portanto, há estudos para todos os gostos no país. Muitas vezes, as PPP mandam casos mais caros para outros hospitais do SNS e são pouco colaborativas em receber outros casos do SNS. Têm opção, até pelo tipo de contrato de eficácia daquela unidade, mesmo que comprometa a eficácia de toda a rede. Acrescem depois problemas laborais vários, no tratamento de problemas mais caros. E há uma vantagem competitiva das PPP: enquanto os hospitais geridos pelo Estado tiveram cortes e tiveram de alterar a sua forma de financiamento e de planificação da sua atividade, as PPP nunca tiveram cortes. Souberam sempre com o que contavam.

O que também facilita a vida de um utente.
Sim, claro, mas significa que não se pode comparar uma PPP com um hospital público e dizer que ela é mais eficiente. O Estado deu aos privados condições que não deu ao público.

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Mas nos estudos, a comparação é feita entre as PPP e hospitais públicos de dimensão semelhante. 
Mas não dizem que esses hospitais públicos de dimensão semelhante não mandaram pacientes para as PPP e receberam todos os pacientes reencaminhados pelas PPP. E não dizem que as EPE (Entidades Públicas Empresariais) tiveram de gerir quebras, cortes que não estavam planeados, enquanto as PPP nunca tiveram cortes. Se quer comparar, comparemos o comparável. Esse estudos são normalmente manipulados porque comparam quem teve sempre a receita que estava à espera e quem assumiu as responsabilidades que quis, com hospitais que não têm tanta latitude de escolha do que fazem e que ainda por cima tiveram cortes.

Portanto, não são úteis?
As PPP não trouxeram nada para o SNS.

Nem poupanças?
O que poderiam trazer os privados? Know how. Uma vez que é pago pelo Estado, com trabalhadores formados pelo Estado, num sistema integrado do Estado. O que podia ser dos privados? Eventualmente o know how de gestão.

O risco, por exemplo. 
O risco não têm.

O risco têm. Se o negócio correr mal, o risco é deles. Ou seja, não existiu, como nas PPP rodoviárias, uma transferência de risco para o Estado. 
O risco não existe, sabe porquê? Porque um hospital é uma responsabilidade do SNS de fornecer saúde. Se houver um problema naquele hospital e aquela população não tiver acesso à saúde, a responsabilidade é sempre do Estado. O privado sabe que o risco não existe, porque em última análise, para evitar falência, o Estado chega-se sempre à frente. O risco do privado é claramente um mito urbano.

"Quando olhamos só com os olhos das Finanças para as várias áreas da economia, podemos correr o risco de não perceber porque é que é preciso soro fisiológico num hospital."

O know how do privado também é um mito urbano?
Supostamente, a única coisa que traziam era o know how de gestão. E o que fizeram os privados que tiveram PPP? Foram buscar todos os seus gestores e administradores ao SNS. Portanto, não trouxeram nada e até utilizaram as portas das PPP para irem buscar o know how e as pessoas para as levarem para o setor privado. Fizeram uma sangria de bons quadros do SNS para o setor privado. Não há nenhum prova de que tragam alguma coisa ao SNS. Os estudos que há são manipulados e comparam o que é incomparável.

Estudos do ministério das Finanças, por exemplo.
Mas o Ministério das Finanças não percebe nada de saúde. Temos um problema que é achar que o ministério das Finanças pode decidir sobre saúde. Um amigo meu médico conta a história do gestor (que não era médico) e que estava à frente do hospital onde ele trabalha. O gestor andava pelos cabelos porque havia uma coisa que era encomendada em todas as unidades do hospital, com uma fórmula química que eu não sei repetir: “Isto tem de ser fraude, é impossível, um despesismo absoluto.” Era soro fisiológico. Às vezes quando olhamos só com os olhos das Finanças para as várias áreas da economia, podemos correr o risco de não perceber porque é que é preciso soro fisiológico num hospital.

Mas está confiante nesta aproximação do PS ao BE nesta área?
As primeiras declarações do primeiro-ministro eram muito distantes da esquerda. Ouvimos durante muito tempo o PS dizer coisas como “não nos interessa quem fornece os cuidados de saúde, desde que sejam fornecidos bons cuidados de saúde”. Se isso fosse verdade, a lei da bases de Cavaco Silva e as alterações posteriores de Durão Barroso teriam sido um sucesso e teríamos um SNS muito forte e isto estava uma maravilha. Ora, não está. Correu mal e o Governo percebe que para prestarmos bons cuidados de saúde interessa quem presta, sim. O Governo deu algum passo diferente na lei de bases da saúde que entrega agora.

E as ambiguidades e resistências de que falava são ultrapassáveis? É possível chegar a um entendimento à esquerda ou talvez o PSD tenha mais sorte?
O PS terá de se definir, a posição do BE é clara. Nós apresentámos no Parlamento a proposta que apresentámos há um ano. O PS teve primeiro uma abordagem de grande distanciamento da proposta de António Arnaut e de João Semedo e propor ao contrário, a continuação de algo parecido com o que já existe. Se a lei de bases do Governo tivesse as declarações da ministra da Saúde feitas base da saúde, era perfeita. O problema é que a lei de bases é bastante mais ambígua nas relações com os privados do que isso.

Mas pelo menos a ministra é boa? Está alinhada com o pensamento do BE. 
Nós julgamos políticas e a sua eficácia. Se o PS tiver a abertura para colocar a clareza das palavras da ministra na lei de bases da saúde teremos dado aqui um passo importante.

"Se a lei de bases do Governo tivesse as declarações da ministra da Saúde feitas base da saúde, era perfeita."

“O PS tem, do ponto de vista da legislação laboral, uma visão liberal.”

Com a experiência que já tem de negociação com o PS, o facto da ministra ter dito uma coisa que não está escrita, que expectativa tem em relação ao que se vai seguir?
Há espaço de negociação, é possível fazer-se uma lei de bases boa, sólida, estamos cá para isso e esperamos que o PS não falhe. Há outras matérias em que é preciso andar e uma delas é a legislação laboral e aí temos problemas graves com o PS que se aliou à direita para manter a desregulação laboral introduzida pela troika na legislação portuguesa, que é preciso desfazer. Dizia-se que a desregulação laboral ia ser extraordinária e que a subida do salário mínimo ia ser terrível para o emprego. O que vemos é que quando tivemos medidas como a subida do salário mínimo, até se cria emprego, mas como não resolvemos problema da desregulação, a economia cresce mais do que os salários e temos um aumento das desigualdades em Portugal.

Na legislação laboral tem expectativas mais pessimistas do que na lei de bases da saúde?
Sou mais pessimista em relação à legislação laboral, aí estou bastante preocupada. Na votação na generalidade o PS decidiu aliar-se ao PSD e ao CDS para manter instrumentos como a caducidade unilateral da contratação coletiva, ou seja, unilateralmente uma unidade patronal pode decidir da caducidade de um contrato coletivo para o obrigar à negociação de um novo em baixa de direitos. Em vez determos uma economia mais qualificada, aumentarmos a produtividade e as condições de quem trabalha, corremos para o fundo, para menos direitos, uma economia menos qualificada, com trabalho mais precário. E cada vez menos produtiva também.

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Se os resultados desastrosos do que existe são tão evidentes e se os bons resultados do contrário também, porque acha que o PS hesita?
Tem de perguntar ao PS. Hoje temos mais contratos coletivos a serem feitos do que no tempo da troika. Mas na verdade, como a caducidade unilateral se mantém, os contratos coletivos que estão a ser feitos são maus. A contratação coletiva com muita gente e poucos direitos, não resolve o problema que o país tem. Porque é que o PS não percebe isto? Terá de perguntar ao PS. Na UE, a lógica da maioria foi sempre esta: desqualificar o trabalho. Este é o tempo da sensatez, de se compreender que é mesmo preciso reconstruir direitos de trabalho para ter uma economia qualificada e para poder olhar para o futuro.

Se chegarmos ao fim da reforma laboral e o que for aprovado for ao centro, com PS e PSD, que ilação tirará daí?
A ilação vai ser tirada por quem for votar. Não é novidade para o BE que o PS tem, do ponto de vista da legislação laboral, uma visão liberal. O programa eleitoral do PS em 2015 tinha aprofundamento até da liberalização do trabalho, com coisas como o regime conciliatório de despedimento que facilitava mais os despedimentos num país onde já é tão fácil despedir. Essas medidas só não foram para a frente porque o acordo feito à esquerda o proibia. O que é preciso é compreender que continuamos a ter 80% dos deputados que foram eleitos com um programa de liberalização e de desregulação laboral e isso… a política é relação de forças.

Além das cinco reformas estruturais que apresentou na Convenção do BE, voltou a sublinhar que continuamos  a ter uma dívida externa grande demais. Mas o assunto não dominou a legislatura. O BE sentiu que não tinha força ou não quis incomodar o PS?
O BE não tem problemas com incómodos e mantemos aquilo em que acreditamos de forma determinada. Quando fizemos acordo com o PS, um dos trabalhos que fizemos foi ver que havia matérias em que, não sendo possível chegar a acordo, tinham de ser estudadas durante a legislatura e um deles foi sempre o peso da dívida.

"As pessoas precisam de saber que estamos a pagar a um sistema financeiro — que salvámos repetidas vezes e que nunca quer socialização de ganhos — tanto como gastamos no SNS. "

Mas não teve grandes consequências.
Teve algumas, como as alterações sobre os dividendos do Banco de Portugal ou mesmo trocas de dívida que foram feitas que são pequenas reestruturações e estavam previstas nesse grupo de trabalho. Agora a parte essencial, que era abrir o processo de reestruturação das dívidas da periferia do euro, precisa de ser resolvida. Uma das possibilidades de resolução, em que estivemos de acordo com o PS, foi a abertura de um processo para a reestruturação das dívidas soberanas dos países da periferia do euro no Conselho Europeu. O PS disse que estava de acordo, o problema foi que o Governo do PS depois achou sempre que podia esperar por melhores condições na Europa e as condições foram sempre piores. E, à espera disso, o Governo nunca apresentou propostas e a situação foi-se deteriorando.

Mas o PS não queria fazer isso de forma unilateral, esperaria ter um acordo ou a concordância dos nossos credores. Presumo que o objetivo do BE não seja unilateralmente o país deixar de pagar uma parte da dívida ou toda. Não é esse o vosso objetivo, ou é? 
O que foi acordado, a proposta que está no grupo de trabalho é que Portugal abriria essa discussão no Conselho Europeu e nunca abriu. Temos um problema grave na União Europeia, que está à vista de forma claríssima em processos de desagregação vários. Nenhum de nós hoje aposta como a UE vai estar daqui a um ano. Todos os governos, que tendo compreendido de forma sincera os problemas vários da forma como a UE lidou com a crise financeira, a arquitetura do euro, o impacto das políticas de austeridade, ficaram sempre à espera que a situação estivesse melhor para apresentar uma mudança. E como todos esperaram, todos são co-responsáveis pela deterioração das condições da economia e da democracia na UE.

Para o Bloco, o Governo italiano não é recomendável, mas até tem dito coisas muito semelhantes sobre esse assunto. Há várias frases do ministro do interior italiano, Matteo Salvini, sobre isso que poderiam ser ditas por um dirigente do BE, a aposta do crescimento, os orçamentos que passaram por Bruxelas terem aumentado a dívida…
Subscreve o que diz Orbán na Hungria, ou acha que ele é um parceiro para alguma coisa na Europa?

Só estou a tentar perceber se, no fundo, partilha a visão deles ou não. Se acha que estão a dizer o mesmo sobre a necessidade de os governos não ficarem presos a metas de dívida e défice. 
Bem, Duterte das Filipinas quer privatizar a Segurança Social e presumo que os partidos de direita que em Portugal defendem essa privatização não o considerem um parceiro. Eu acho que há discussões que na política não têm sentido.

“O PS mantém, na essência, as ideias que levou a votos em 2015”

Há uma posição em que se revê que é a de Marisa Matias, obviamente. Ela fez um vídeo a dizer que Portugal dá lucro, mas que o serviço da dívida levava 8 mil milhões de euros. Se não pagássemos dívidas, todos daríamos lucro, ou não?
A chatice é que a banca nunca paga as suas dívidas. Passámos por uma crise financeira em que nacionalizámos todas as perdas, mas nunca nacionalizámos ganhos. A dívida deve ser tratada como algo que é exterior. Não é dívida que tenha sido feita para construir hospitais ou para fazer universidades. Foi uma dívida fruto direto do sistema financeiro e da forma como lidámos com ele. As pessoas precisam de saber que estamos a pagar a um sistema financeiro — que salvámos repetidas vezes e que nunca quer socialização de ganhos — tanto como gastamos no SNS. Isso tem de ser debatido.

Teria sido possível ter deixado cair os bancos e as pessoas que tinham lá o seu dinheiro terem-no perdido?
Está brincar não está? Não tem absolutamente sentido nenhum, o BE sobre isso foi muito claro. Quando é preciso o Estado entra, porque não se deixa cair a economia, mas a seguir, o que é intervencionado pelo Estado é do Estado. Fica do Estado e responde pelos critérios de interesse público. Nós fomos chamados a intervir porque houve uma desregulação do sistema financeiro absolutamente irresponsável. Agora, o que defendemos muito claramente é que é preciso haver intervenção pública, mas quem socializa as perdas, tem de socializar os ganhos. O que fizemos foi limpar bancos privados com dinheiro público e voltámos a entregá-los a privados para fazerem o que quiserem. Isso é absolutamente irresponsável. Neste momento os bancos já voltaram aos lucros e, com as alterações feitas na legislação fiscal pelo anterior Governo, nem impostos pagam sobre esses lucros. É brilhante do ponto de vista financeiro, é desastroso do ponto de vista público. É irresponsável, foi absolutamente irresponsável.

E porque é que o ministro das Finanças não agiu já nessa matéria?
O ministro das Finanças decidiu usar o PSD e o CDS para limpar os bancos com dinheiro público para continuarem privados. Veja o que aconteceu ao Banif. Era um banco pequeno, não havia um risco sistémico grande, até esse banco em vez de haver incorporação na CGD, limpámo-lo com dinheiro público e entregámos aos privados e o PS apoiou-se na direita para fazer isso.

"O ministro Mário Centeno, com quem nós temos claras e óbvias divergências, fez um programa em que algumas das medidas nunca foram para a frente, porque houve força suficiente à esquerda para as travar."

Mário Centeno não tem correspondido às expetativas? Não concorda que tenha sido o melhor ministro das Finanças europeu?
Para os critérios europeus, provavelmente é verdade. Pergunto-me é se a União Europeia está em tão boa forma que possamos achar os critérios europeus os ideais para o nosso país.

Uma das questões de que mais se falou na convenção do BE foi a hipotética ida para o Governo, sendo que ficou claro também que o Bloco fazia depender isso da força que tivesse nas eleições…
Chama-se democracia.

Certo, mas já houve casos de partidos que foram para um governo com percentagens de votos parecidas com as que o Bloco teve nas últimas eleições. O Bloco quer mais força que isso, até para influenciar um programa de governo. Podemos tirar a conclusão de que num governo em que participasse o Bloco de Esquerda, mesmo que fosse com o PS, não haveria lugar para um ministro com as características de Mário Centeno?
Não sei de que características é que está a falar. Do ponto de vista negocial, não tenho nenhuma razão de queixa do ministro Mário Centeno.

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E do ponto de vista político?
Aí temos uma oposição clara. Eu lembro que o programa macroeconómico que foi apresentado por Mário Centeno e que o Partido Socialista levou a eleições em 2015 foi, na verdade, muito limitado pelo acordo. Lembram-se seguramente da ideia de crédito fiscal, que era uma forma de financiar patrões para salários baixos, essa ideia nunca pôde ser executada porque o acordo não deixou. O regime conciliatório de despedimento também era uma ideia, tal como o congelamento de pensões. A política é uma questão de relação de forças. E quem decide a força de que política é seguramente de quem vai votar em programas vários. O ministro Mário Centeno, com quem nós temos claras e óbvias divergências ao longo deste tempo, fez um programa em que algumas das medidas nunca foram para a frente, porque houve força suficiente à esquerda para as travar.

Mas Centeno continuará a pensar exatamente o mesmo.
Mas não o fez, pois não? Se me pergunta, é o ministro das Finanças do Bloco de Esquerda? Acho difícil. Não faz nenhum sentido, nem Mário Centeno se sentiria confortável nessa posição. Não tenho nenhuma animosidade pessoal com nenhum ministro. Muito menos com o ministro das Finanças. Divergências políticas, sim. As nossas são naturais e são públicas.

Nesta experiência que já leva de legislatura, e conhecendo agora o PS de uma outra forma, acha que já passou de forma clara para a área da esquerda, ou acha que se o país se vir a braços com uma crise semelhante à de 2011, o PS e os seus protagonistas não hesitarão em aplicar a mesma receita de cortes, de congelamentos?
O Partido Socialista é o Partido Socialista.

O que é que isso quer dizer?
É um partido suficientemente grande para ter diferenças de opinião internas. Mas eu chamo a atenção que o PS mantém, na essência, as ideias que levou a votos em 2015. Isso vê-se na legislação laboral, vê-se por exemplo na decisão do Governo Regional dos Açores de privatizar a SATA, onde o PS tem maioria absoluta. Ou seja, onde não está limitado por um acordo à esquerda, a primeira coisa que decide é que a solução para um problema é a privatização.

O PS não aprendeu nada com a “geringonça”, é isso?
Aprendemos todos uns com os outros.

“O governo está a fazer populismo com os professores.”

E na questão dos professores, o Partido Socialista continua a ser o Partido Socialista?
Em Portugal existe a ideia de que é bom bater nos professores, que é das coisas mais perigosas que se pode fazer a um país. É achar que se pode cavalgar uma perceção social. Os professores têm uma carga imensa neste país, devastadora. Quando o ensino obrigatório aumentou para o 12º ano, a crise social abateu-se sobre as famílias com toda a força e a escola, de repente, deparou-se com problemas enormes: muito mais gente na escola até ao 12º ano, pessoas que nunca tinham tido enquadramento para vida académica, pessoas que à partida não estariam na escola, estava toda a gente lá. Ao mesmo tempo, com as famílias a desagregarem-se com o desemprego, com a pobreza, com crise social fortíssima, tudo bateu na escola – como é normal.

Mas onde é que entra aí o PS?
É que em vez de ter existido apoio, mais professores, pensamento de currículos, pensamento a sério sobre a escola, no que é hoje o conhecimento, no que é que tem de preparar, não se fez nada disso. Fez-se listas burocráticas gigantescas aos professores, ao mesmo tempo que se diminuía o número de professores por aluno, porque as turmas ficaram maiores, diminuiu-se o número de pessoal não docente nas escolas e desprezou-se completamente a existência e a necessidade de equipas multidisciplinares. O que quer dizer que os professores ficaram numa escola que não pode correr bem.

Na entrevista ao Observador, Catarina Martins acusa o governo de estar a fazer populismo com os professores

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A escola pública corre mal?
Os professores fazem milagres todos os dias porque mesmo assim não corre tão mal quanto isso e a escola pública em Portugal felizmente tem resultados extraordinários face às condições que nós vemos. Mas quando os pais ou os alunos se confrontam com uma escola com estas condições, isso cria um conflito permanente. E em cima disso, alguém achou por bem ter um discurso populista sobre professores. É absolutamente irresponsável. Absolutamente irresponsável.

É isso que o PS está a fazer?
Os professores em Portugal têm tido uma vida infernal. E o que o PS está a fazer, até porque já gastou muito mais dinheiro noutras despesas que não descongelamento de carreiras, é fazer um braço de ferro com os professores por razões laterais aos professores. Uma razão é permitir que no resto da função pública também não sejam contadas as carreiras todas. Há também outras carreiras na função pública que não têm a mesma visibilidade, não tiveram a mesma capacidade reivindicativa e portanto não se fala. O Governo, ao travar os professores, não está só a travar os professores.

Sempre que há uma cedência ou uma aparência de cedência aos professores, essas carreiras aparecem. Como é que se resolve isso?
Resolve-se respeitando as pessoas. Em segundo lugar, o governo também está a utilizar uma perceção de má vontade contra professores para fazer populismo. Está a dizer: “Estes não podem ter, porque estamos a dar de outro lado.” É desastroso, porque de cada vez que se ataca os direitos de alguém que está a trabalhar, significa que os que se estão a rir, a seguir vão ser atacados.

Mas há capacidade para acolher a todas as reivindicações?
O Estado tem toda, toda a capacidade para fazer o descongelamento das carreiras. Não tem capacidade, é verdade e nós concordamos, para num único orçamento dar saltos.

Mas se não se pode fazer tudo de uma vez, porque é que vocês não apoiaram, pelo menos agora, no dia 1 de janeiro, que dois anos estivessem descongelados?
A posição do Bloco foi a de devolver em duas legislaturas. Isso permitia dois anos agora e o resto depois. Não foi aprovado. Nós até dissemos mais: se o decreto-lei do governo, que o Presidente da República vetou, e bem, do nosso ponto de vista, tivesse passado, nós faríamos a apreciação parlamentar no seguinte sentido: descongelam já dois anos, mas não podem dizer que é tudo o que vão descongelar. As posições até são bastante conservadoras, de toda a gente. Os próprios sindicatos não pedem retroativos, só pedem descongelamento.

E as outras carreiras viriam a seguir?
Teriam de vir, não é? Todas as pessoas têm de ser respeitadas.

"Alguém achou por bem ter um discurso populista sobre professores. É absolutamente irresponsável. Absolutamente irresponsável."

Neste momento, só se está a falar de professores. Para o bem e para o mal. Para o mal, pelas razões que referiu, e para o bem porque são os primeiros a ter esse direito.
Não são, aliás os professores — porque estão em braço de ferro — ainda não viram nenhum descongelamento. E há áreas em que já começou a haver consequência prática do descongelamento, expressão remuneratória. Nos professores ainda não. Esta luta está a sair cara aos professores.

Exato, mas era essa a questão. Não valia mais ter-se avançado com alguma coisa já?
Mas porque é que não pergunta isso ao governo? Nós defendemos isso.

Não é verdade o que o governo diz, que estavam a zeros quando se entrou para a negociação, avançaram para dois anos e os sindicatos mantiveram a posição na recuperação integral?
O governo queria que os sindicatos aceitassem dois anos e, em contrapartida, os professores tinham de esquecer sete anos da sua carreira. Os sindicatos nunca se opuseram a ter dois anos em 2019. Na verdade, a única posição intransigente aqui, até agora, foi a do governo que chegou a ter um observação que, no mínimo foi infeliz, de um ministro a dizer “ou aceitam isto ou ficam sem nada”. Um governo não chantageia parceiros sociais, sindicatos. O faseamento sempre esteve em cima da mesa de toda a gente, menos do governo.

O que significa que toda a gente está de acordo que isto coloca um problema de finanças públicas.
Julgo que toda a gente está de acordo que fazer tudo num ano seria muito exigente para as Finanças Públicas, face a outras opções que são tomadas, que eventualmente poderiam ser diferentes. Na atual relação de forças, seria difícil fazer isso num ano. Isso toda a gente está de acordo.

Há hipótese de haver mudanças de posição nas negociações que agora foram reabertas? Mário Centeno disse na entrevista à RTP que havia a possibilidade de equacionar soluções diferentes.
Tem de existir. Aliás, isto é um pouco absurdo. Vamos ter na Madeira e nos Açores o tempo integralmente contado e no continente, não. Ninguém consegue explicar isto.

Nesses casos, quem paga depois as pensões é o governo da República.
Quem paga as pensões são os trabalhadores, que fazem os descontos. E o sistema de Segurança Social está bem. Aliás, tem hoje mais sustentabilidade do que tinha.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mas não vem dos cofres nem da Madeira, nem dos Açores.
Os salários vêm. É disso que estamos a falar agora.

Mas um dos grandes problemas é que a prazo, tudo isto se vai refletir…
A prazo, um salário baixo é um desconto baixo para a segurança social. Aí é que está o problema também. De cada vez que temos um puxar para baixo dos salários, seja no público ou no privado, estamos a descontar menos para a segurança social. Como as pensões refletem as carreiras contributivas, a Segurança Social mantém as desigualdades salariais que existem na sociedade. Mas é ligeiramente mais redistributiva que os salários. E quando nós temos salários baixos, temos poucos descontos, poucas pensões. Na verdade, melhorar os salários é a melhor forma de solidificar a Segurança Social.

Mas as contas compensam? O valor que se vai descontar compensa o valor das pensões, se formos para o descongelamento?
O Estado não são prateleiras estanques. Os salários que as pessoas recebem hoje são contribuições para a Segurança Social que pagam pensões hoje, mas são também a constituição da sua carreira contributiva que serão as suas pensões de amanhã. Esperamos que não sejam tão baixas como as de hoje, para não termos tantos problemas sociais e tanta pobreza como temos agora. Acresce que os professores não são uma despesa, são a qualificação deste país. Há alguma economia desenvolvida sem qualificação? Se acharmos que os professores são uma despesa, temos um grande problema.

Também são despesa. Podem ser uma despesa boa, virtuosa, mas também são despesa.
Tudo é despesa.

Põe completamente de parte a ideia de que o descongelamento, a reposição integral deste tempo possa ter um efeito de bola de neve (citando uma expressão sua), em que um governo daqui a uns anos tenha uma despesa estrutural de tal ordem que seja mais difícil de gerir um orçamento?
A despesa estrutural em Portugal acaba por ser relativamente baixa quando pensamos no que gastamos no sistema financeiro. O que estamos a gastar agora com o sistema financeiro não trará ao país retorno como traz a educação. E digo mais, não é possível mantermos os salários baixos dos professores, ou mais baixos ainda em boa parte das forças de segurança. Alguém acha sustentável salários deste género, face às funções e responsabilidades que lhes entregamos?

“O argumento de que os ricos não vão pagar propinas é hipócrita”

Falando em qualificação, houve uma vitória do BE na diminuição do valor das propinas. Fala-se agora no fim das propinas e membros do governo e até o Presidente da República apoiaram a iniciativa. Mas os críticos fazem outra leitura: os alunos que têm dinheiro para pagar propinas do ensino superior, vão deixar de fazê-lo. Não há aqui um fator de injustiça?
Portugal tem um problema de qualificações, menos licenciados do que os países com os quais se deve comparar. Precisamos de ter mais gente a estudar, há entraves vários, a propina é apenas um dos entraves – há mais. As pessoas começam a perceber que é preciso acabar com eles e ainda bem.

Mas há quem ache que o fim das propinas beneficia especialmente quem tem mais dinheiro.
É um argumentário pobre que tem dois problemas: o primeiro é que é hipócrita. As pessoas dizem sempre “ah, os mais ricos agora não vão pagar propinas”, mas não nunca dizem a partir de que limite é que as pessoas devem pagar propinas. E as famílias com salários médios em Portugal que lutam tanto para ter os filhos nas universidades pagam essas propinas. O que estão a dizer é que essas pessoas devem continuar a pagar.

Mas com a ação social, quem não tem dinheiro não paga.
O que é não ter dinheiro? Uma família em que os adultos que estão a trabalhar e ganham os salários médios em Portugal é rica? É que essas pessoas pagam propinas por inteiro. É bom não falarmos de um país que não existe.

Fim das propinas: "Normalmente quem diz que esse não é o problema é para manter todos como estão. E o que eu digo é, se resolvermos agora o das propinas não ficamos pior, ficamos melhor."

Qual é o segundo problema do argumentário a favor do pagamento de propinas?
É mais uma questão de substância, mais política. Tem a ver com o país que queremos ser. Quando eu estava na escola, o ensino era obrigatório até ao sexto ano. Na altura, alguém acharia normal que se tivesse proposto propinas até ao nono ano ou 12º ano? Se percebemos agora que temos um problema de baixas qualificações —  não digo transformar o ensino superior em obrigatório, não é isso que estou a defender –, devemos criar condições de universalidade e gratuitidade (que é a única forma de ser universal) do ensino superior, para termos mais gente. As propinas são apenas um dos problemas.

E nem são o maior, a grande fatia das despesas…
Sim, eu ouço sempre isso. E normalmente quem diz que esse não é o problema é para manter todos como estão. E o que eu digo é, se resolvermos agora o das propinas não ficamos pior, ficamos melhor.

E estes 330 milhões de euros, custo estimado para a eliminação das propinas, virão de onde?
Do Orçamento do Estado. É poucochinho, já viu? Tendo em conta o bolo total. Mas a proposta que nós fizemos não custa isso. É uma redução do valor este ano e no outro também. São 50 milhões por ano.

Tem já uma ideia de onde é que se podia cortar para compensar?
Porque é que tem de se cortar? O Serviço Nacional de Saúde foi criado numa altura em que em Portugal se debatia o problema de não haver contas públicas que o permitissem. E uma das coisas que perguntavam a António Arnaut era quanto é que ia custar e ele respondia: “Logo se vê”. Porquê? Porque fez bem as contas. Sabia que o SNS aumentaria de tal forma as condições de saúde da população e a saúde pública, que iria ter uma reprodução tão positiva na economia que se iria pagar e tinha toda a razão. Um dos maiores problemas que temos tido com a direita e com a política que quer encolher tudo o que é intervenção, é que não tem longo prazo, é muito curtinha, é sempre no momento e fica cada vez mais caro, porque cada vez destrói mais o Estado. Sabemos que a economia para ser mais forte, precisa de mais gente qualificada, precisa de mais licenciados. E tem de investir nisso, porque se não o fizer, à conta de uns tostões neste momento, seremos um país cada vez mais pobre.

O país está preparado para um novo solavanco? “Veremos”

O ensino superior tem também um problema de demografia. O secundário já está a sentir isso e já está a chegar ao ensino superior, porque na realidade quando foram introduzidas as propinas, há alguns anos…
Por Cavaco Silva.

… o número de alunos aumentou, não diminuiu. Essa relação direta que estabelece…
Porque os salários estavam a aumentar. Em Portugal, todos os indicadores mostram que ter filhos é condição de empobrecimento no país. A generalidade dos salários são baixos, mesmo os chamados salários médios são baixos, as pessoas ficam com muito pouco salário disponível depois de pagarem as despesas fixas. E depois não temos um estado social universal. As pessoas pagam impostos e quando têm filhos têm de pagar propinas. Tinham de pagar os manuais escolares, acabou agora. Têm de pagar transportes, vamos mudar isso com os novos tarifários este ano. Uma das condições para inverter este problema é dar condições e isso é dar estado social universal.

"A política do BCE permitiu ao Partido Socialista empurrar com a barriga o problema da dívida."

Essa é a vossa solução para resolver o problema demográfico?
Num país em que as mulheres podem ter filhos porque o decidem – que é o país em que eu me revejo – a condição para isso é um Estado Social universal, é terem acesso à creche gratuita, é terem acesso ao transporte público gratuito, é não pagarem propinas, é ter filhos e isso não ser condição de empobrecimento. Esse é caminho essencial para resolver a crise demográfica, sendo certo que não chegue pelos dados que estão à vista. A imigração também pode ser parte da solução.

Uma das ideias que tem sido defendida pelos partidos comprometidos com esta solução de governo é a de que a política de recuperação de rendimentos e de pensões permitiu pôr a economia a crescer. Admite ainda assim que houve circunstâncias externas que permitiram que os resultados fossem estes e não outros?
Claro que sim, houve condições externas muito favoráveis, nós temo-lo dito. Achamos até que com essas condições podíamos ter ido mais longe porque, quando fizemos o acordo em novembro de 2015, não tínhamos ainda a noção da melhoria das condições externas.

Quais foram as condições externas mais relevantes?
A política do BCE, seguramente, por causa do nível dos juros da dívida. Foi isso que permitiu ao Partido Socialista empurrar com a barriga o problema da dívida.

O BCE é uma coisa boa de Bruxelas, então.
Se considerar que ganhar uns anos a empurrar com a barriga é uma coisa boa, então sim. O problema é que não está resolvido. Varrer para debaixo do tapete pode dar jeito antes das visitas entrarem na sala, mas a seguir continuamos lá com o problema. Houve também questões energéticas que foram favoráveis durante um período, depois deixaram de ser. O final do governo PSD/CDS, quando teve ligeiramente melhores indicadores económicos já teve a ver com essa conjuntura externa. Sendo que eu ainda estou à espera de uma nota de agradecimento grande à esquerda, por parte do PSD e do CDS, por termos posto no Tribunal Constitucional o corte dos subsídios de férias e de Natal, porque quando foram repostos houve logo um crescimento da economia.

Acha que o país se preparou para a eventualidade de haver um solavanco também lá fora que possa complicar as contas cá dentro?
Veremos.

Mas essa possibilidade preocupa-a?
Preocupa-me sempre a vulnerabilidade do país a choques externos. Por isso é que defendemos que o problema da dívida não está resolvido e que é preciso resolvê-lo. É preciso fortalecer os serviços públicos, porque eles são a maior almofada que um país tem quando está em crise – serviços públicos robustos aguentam socialmente um país. A direita deteriorou muito os serviços públicos, mas eles tiveram força para aguentar. Se há outra queda de investimento igual àquela, não há robustez, está tudo muito frágil.

"Ainda estou à espera de uma nota de agradecimento grande à esquerda, por parte do PSD e do CDS, por termos posto no Tribunal Constitucional o corte dos subsídios, porque quando foram repostos houve logo crescimento da economia."

Está a dizer que o país não está preparado para um eventual choque?
O país deve preparar-se.

Deve preparar-se ou já está preparado?
Está melhor do que já esteve, mas não está bem. Mantém uma enorme dependência externa, temos os sectores estratégicos privatizados, não temos decisão sobre aquilo que é estratégico para o nosso país, o que é difícil. Além disso, mantemos a vulnerabilidade da dívida. Por isso, achamos que é preciso fazer opções fortes que garantam a soberania popular sobre os nossos recursos mais importantes.

Ao fim de três anos a apoiar este governo, acha que o PS foi o mais à esquerda que lhe foi possível?
Ou que teve que ser…

Foi obrigado a isso?
Não tenho dúvida nenhuma.

E há flexibilidade para obrigar o PS a ir mais longe?
O meu objetivo não é obrigar o PS a nada. Nós apresentamos um programa que achamos importante para o país. Com a força que tivermos, tentaremos ir o mais longe possível. Para isso é preciso uma relação de forças diferente e a esquerda tem de ter mais força.

Ter mais força é conseguir entrar para o governo?
Vamos apresentar o nosso programa, vamos a eleições e agiremos com a relação de forças que tivermos.

Mas já se chegou a um limite no relacionamento com o PS ou é necessário ir para outro patamar?
Vou dar-lhe um exemplo: Portugal foi um dos primeiros países a aprovar o Tratado Orçamental. Na altura tínhamos um governo PSD-CDS, mas o PS ficou entusiasmadíssimo com a aprovação do tratado. Recentemente, no Parlamento Europeu, mudou a sua posição. O que é preciso saber — e isso é algo que o PS irá definir, e se calhar a relação de forças nas eleições é importante também para essa definição — é se o PS é capaz de tirar consequências práticas dessa mudança de posição.

“A Europa deixou de ser um espaço para onde as pessoas olham com esperança.”

O BE parece ter um discurso mais eurocéptico. Essa vai ser a estratégia na campanha para as Europeias de maio deste ano?
Acha que o BE está eurocéptico?

Parece-me que sim. Nesta entrevista, por exemplo, tem criticado muito a Europa que existe.
O BE é um partido internacionalista e, por maioria de razão, também europeísta.

Certo. Mas não era mais optimista há uns anos?
O problema não é a posição do BE — o problema é a União Europeia. Quem é que, vendo Orbán e Salvini, está optimista em relação à UE? Quem é que, com o Brexit, acha que a UE é um espaço em expansão?

Mas o BE não critica só Orban e Salvini. Criticou Angela Merkel durante anos, fez um cartaz célebre quando a chanceler alemã visitou Portugal.. O BE não está só contra os partidos extremistas — está também contra os países que têm governos moderados.
Como é que Orbán e Salvini apareceram? Os extremismos não nascem do vazio, nascem de políticas concretas. E a política europeia esqueceu as necessidades de coesão social, faz dumping fiscal e social e deixou de ser um espaço para onde as pessoas olham com esperança. Essa Europa criou extremismos por falta de horizontes. O ódio só cresce quando não há esperança em nada melhor. Portanto, naturalmente, as políticas de Merkel, e dos dirigentes…

… de praticamente todos os dirigentes europeus, segundo o BE. O Bloco tem criticado quase todos os governos da União Europeia. Já nem há a exceção da Grécia.
Os governos da direita conservadora e da social-democracia tradicional tiraram horizontes às pessoas. E, portanto, eu não me revejo em quem acha que mais vale meter a cabeça na areia e deixar a Europa continuar a desagregar-se. Precisamos de resgatar projetos de futuro. Em cada um dos países da Europa há uma responsabilidade absoluta de fazer três coisas: reconstituir direitos de trabalho e de salário; reconstituir o Estado social universal, porque essa é a única forma de combater os fossos sociais; e ter um projeto estratégico para a economia.

Qual é esse projeto?
Está mesmo aí à nossa frente: chama-se alterações climáticas. E se nós ficarmos todos parados a achar que não há nenhum problema em continuarmos a ter a indústria que temos, ou se acharmos, como Macron e a nossa direita (que nisso são muito parecidos), que se resolve a questão com impostos e não com investimento, controlo público de sectores estratégicos e programas claros, vamos caminhar para um abismo. O BE não fica na posição de quem caminha para o abismo. Ficamos na posição de quem pensa “Como é que podemos fazer melhor?”. Isto não é ser mais pessimista – é não pôr a cabeça na areia.

Esquerda radical, sim. Extrema-esquerda, não

Numa entrevista que deu há pouco tempo ao Observador, Jerónimo de Sousa teve alguma dificuldade em classificar o BE como um partido de esquerda. Porque é que acha que ele tem essas dúvidas?
Acho que não tem… Até fico surpreendida.

Olhe que pareceu ter.
Nós temos diferenças grandes com o PCP, nomeadamente do ponto de vista de balanços que fazemos de experiências internacionais concretas. Para o BE, as questões da democracia, do pluralismo e da liberdade de expressão nunca são pormenores que possamos esquecer. Agora, entendamo-nos: temos votado com o PCP, com orgulho e gosto, propostas que são extraordinariamente importantes do ponto de vista do controlo público dos setores estratégicos da economia, do emprego, dos direitos do trabalho, dos salários, das pensões, da resposta a situações de pobreza e desigualdade, do combate a um sistema financeiro que é absolutamente predador dos nossos recursos. O PCP é uma parte integrante deste processo e não tenho dúvida nenhuma de que é essencial.

Jerónimo de Sousa: “50 milhões para aumentar função pública é claramente insuficiente”

Mas admitiria que o BE fosse para um governo com o PS sem o PCP? Ou isto só funciona a três?
Nestes anos, foi importante a experiência comum que tivemos, com as nossas diferenças, ainda que haja momentos… Quando projetos como a despenalização da morte assistida são chumbados, claro que é difícil compreendermos como é que o PCP pode ter posições daquelas, extraordinariamente conservadoras. Mas, na generalidade das matérias, o PCP é muito importante. E nunca esquecemos que, quando se negoceia um Orçamento com o PS, que teve mais de 30%, a relação de forças é diferente quando somamos aos 10% do BE os mais de 8% do PCP.

O BE fala de si próprio como pertencendo às forças da esquerda. Mas é também muitas vezes classificado como partido de extrema-esquerda. Identifica-se com essa classificação?
Isso é um insulto, normalmente atirado ao BE, que não tem nenhuma razão de ser. O BE identifica-se com outra coisa: como muitas vezes os partidos tradicionais socialistas (que ainda por cima, com a Terceira Via, aderiram ao liberalismo económico) se autodefinem como esquerda, há uma necessidade de arranjar uma definição para quem não seguiu esse caminho. Até me agradam definições como esquerda radical, que fazem essa diferença. Esquerda radical tem a ver com a raiz da esquerda, a raiz das lutas e, portanto, tem todo o sentido.

Extrema-esquerda não faz sentido.
Extrema-esquerda está associado a totalitarismos, a perseguição, a ódio – não encontram absolutamente nada disso no BE com certeza.

Até me agradam definições como esquerda radical, que fazem essa diferença. Esquerda radical tem a ver com a raiz da esquerda, a raiz das lutas e, portanto, tem todo o sentido.

E identifica o BE como um partido anti-sistema?
É verdade que somos anti-sistema quando tentamos alterar – e alteramos, queremos mesmo alterar – o sistema económico tal como ele está. Ou o sistema patriarcal. Nós somos um partido socialista, feminista e ecologista. E isso é bastante anti-sistema.

Quando João Galamba foi escolhido para secretário de Estado da Energia mostrou-se surpreendida e alertou para que não se recuasse no trabalho feito no combate às rendas excessivas. Ao fim destas semanas, vê sinais de recuo?
Não houve nenhuma reação minha ao nome de João Galamba, houve sim uma preocupação quando se soube que haveria mudanças na pasta da Energia. A preocupação de, num dossier em que, ainda que timidamente, alguns avanços estavam a ser feitos para combater rendas excessivas, nomeadamente da EDP, que houvesse essa mudança.

E houve?
Neste momento temos uma série de dossiers em mãos e em relação a alguns temos perplexidades sobre o caminho feito. Mas eu aguardaria para saber qual é o desfecho de alguns deles.

Alterações climáticas: "Se ficarmos parados a achar que não há nenhum problema em continuarmos a ter a indústria que temos, ou se acharmos se resolve a questão com impostos e não com investimento, controlo público de sectores estratégicos e programas claros, vamos caminhar para um abismo."

Em que dossiers tem essas perplexidades?
Estavam a ser feitas uma série de medidas para assegurar que, no futuro, não se reproduzem sistemas de rendas excessivas garantidas. Há uma série de decisões que vão ser tomadas neste primeiro trimestre, nomeadamente de renovações de licenças, de lançamento de novos projetos, se há ou não leilões, por isso eu aguardaria pelo fim deste trimestre para compreender se se mantém este tratamento de privilégio aos produtores de energia, ou se, pelo contrário, se faz algum caminho.

Costa, o desbloqueador que espera que os problemas se resolvam por si

Nas últimas semanas vimos o BE a ganhar um aliado inesperado, que tem sido o Presidente da República. Não só na questão das propinas, mas também com a proposta de que a pobreza servisse como barómetro de todas as leis do país. Está surpreendida com esta adesão?
Não me surpreende que o Presidente apoie esta ideia de tomar em conta a pobreza na definição das políticas. O Presidente tem tido preocupação social com as desigualdades no país e com a pobreza. Já não estou tão certa se depois teremos as mesmas soluções, mas é bom que partilhemos a preocupação.

Sobre Marcelo: "Compreendeu que a democracia é para ser respeitada."

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

E que balanço faz da ação do Presidente, que tem mostrado poder para, por exemplo, forçar o governo a demitir uma ministra na crise dos incêndios e, ao mesmo tempo, é um Presidente que telefona para programas da manhã das televisões para dar os parabéns?
Confesso que há atitudes do senhor Presidente que eu não sou capaz de perceber — e não tentarei explicar. Em todo o caso, Marcelo Rebelo de Sousa é um homem de direita. Posicionou-se claramente sobre a necessidade de ter muito cuidado com as alterações na Lei de Bases da Saúde porque quer proteger o sector privado — e aí, claramente, temos divergências grandes. Mas é verdade que é um Presidente que compreendeu que a democracia é para ser respeitada. Lembro-me que este governo tomou posse com Cavaco Silva, que era um homem que achava que não podia haver acordos com partidos como o BE e o PCP, mesmo que tivessem tido votos para isso. Marcelo Rebelo de Sousa não é assim. E essa é uma diferença muito importante para a democracia.

E António Costa. Esta experiência governativa aproximou-vos politicamente?
Pessoalmente, conhecemo-nos melhor. Temos pontos de forte convergência e pontos de forte divergência. Mas sabemos viver com isso.

Que avaliação faz dele como governante? Consegue apontar um ponto positivo e outro negativo?
Ter compreendido a necessidade de negociar e ter tido a capacidade para o fazer é seguramente um ponto positivo. Nós fizemos este percurso, não sem solavancos, de uma forma que muitos de nós não imaginavam que fosse possível. E julgo que há uma franqueza nas nossas conversas que é importante.

E o ponto negativo?
Julgo que tende às vezes… (longo silêncio)… eu não diria que não seja atento aos problemas, porque é atento, mas se calhar tem uma esperança de que os problemas se resolvam mais depressa quando eles precisavam de um pouco mais de olhar.

Catarina Martins reconhece a Costa a capacidade de negociar, critica a atitude de esperar que os problemas se resolvam por si

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

É um “optimista irritante”, como dizia o Presidente da República?
Não sei se é um “optimista irritante”, mas às vezes julga que os problemas podem resolver-se mais depressa sem a sua intervenção, quando a sua presença e intervenção seriam importantes.

Tem muitas vezes a expectativa de que os problemas se resolvam por si, é isso?
Sim.

E é um desbloqueador?
Sim, mesmo que às vezes concordemos que não vamos chegar a acordo — mas pelo menos o assunto fica encerrado.

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