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A economia portuguesa vai continuar “empatada numa taxa de crescimento baixinha” e está a ser “ultrapassada pelos países que vêm de trás”, por muito que o Governo fale em “convergência com a média da UE” e os últimos números do PIB tenham sido positivos. A relevância destes números para o futuro é zero, diz João César das Neves, assumindo algum exaspero porque, apesar dessa “mediocridade”, está “toda a gente contente, a maioria está contente”.
Em entrevista ao Observador, o economista, Professor Catedrático da Universidade Católica, concede, à luz dos resultados das últimas eleições: “Este Governo satisfaz a maioria da população, alimenta os grupos instalados e, assim, o país está calmo. Portanto, quem sou eu para dizer que isto está mal?”.
Ouça aqui a entrevista a João César das Neves em podcast.
Ainda assim, interpretando os primeiros sinais, João César das Neves diz recear que o novo Governo – mesmo sendo agora maioritário – “continua a estar muito virado para a imagem mediática” e com uma conduta “infantil”. Foi isso que se viu na forma como o Orçamento foi aprovado (sem alterações face ao que tinha sido chumbado) e na maneira como o PRR foi apresentado – isto para não falar, também, da forma como o mesmo PRR foi pedido à cabeça de apenas “um génio”, uma farpa ao agora ministro da Economia, António Costa e Silva.
A sorte, diz João César das Neves, é que esse mesmo PRR (o Programa de Recuperação e Resiliência), “é apenas um papel para entregar em Bruxelas”. “Quando vier o dinheiro, a gente logo vê, como aliás sempre foi.”
“É um país que está parado, com outros a passar-nos à frente”
Portugal terá tido neste primeiro trimestre o crescimento económico em cadeia mais forte na UE: 2,6%. A Comissão Europeia explica isso dizendo que Portugal está a ter uma trajetória de recuperação diferente. Qual é a leitura que faz deste número?
Nós tivemos um solavanco como nem sequer se imaginava possível, com a pandemia. Por isso, os números agora são números aberrantes, todos eles. A queda foi brutal, 16% no segundo trimestre de 2020 – e, desde então, estamos a comparar com esses períodos… Eu acho que não tem outro significado que não ‘estamos a crescer, ainda bem… caímos muito, agora estamos a crescer, ainda bem’. É normal que o que cai mais recupere mais, é uma questão aritmética. Mas o que é que isto quer dizer para o futuro? Nada. E comparar com outros países também não faz sentido porque a trajetória não foi igual em todos. São números engraçados, dão para mostrar, mas sobretudo comparando com crises anteriores isto não tem nada a ver – foi outro filme, não tem nada a ver.
Por vezes vê-se no discurso político, incluindo por parte do primeiro-ministro, comparações à resposta que se deu à crise pandémica e a resposta que se deu à crise das dívidas soberanas. Faz sentido comparar as duas?
Tenho um gráfico que uso muito nas aulas, que mostra todas as crises [económicas], o 25 de abril, as crises dos anos 80, as crises dos anos 90, esta mais recente dos anos da troika… E o que se vê é que as crises umas foram mais fortes, outras mais fracas e, agora, tivemos uma outra coisa completamente diferente. Não tem nada a ver, é uma queda de 16% [no PIB] quando o máximo que tínhamos caído antes eram 5% ou 6%…
Mas o primeiro-ministro compara frequentemente a resposta que foi dada, dizendo que não houve austeridade e na outra crise houve austeridade…
Vai sempre fazer isso, tem uma função política. Mas, em termos económicos, não tem nada a ver. São duas coisas completamente diferentes.
PIB cresce 2,6%, mas até quando o consumo poderá levar a economia às costas?
Os números do INE mostram, porém, que o consumo privado está a ter uma importância muito grande, mas tendo em conta a subida da inflação e das taxas de juro, até quando é que o consumo irá levar a economia às costas, sabendo nós que o investimento desacelerou neste primeiro trimestre?
Isto vem na sequência de uma trajetória de vários anos. Quando chegou lá, em 2015, António Costa disse explicitamente que se ia estimular o consumo, ajudar as famílias… E assim continua. Na base disto está uma lógica de curto prazo e uma lógica baseada na descapitalização da economia. Já vinha de trás, não é só com ele [António Costa], mas nós temos uma coisa que, às tantas, já não vai dar mais, vai parar… Agora, quando é que para? Ninguém sabe, agora vem mais uma data de dinheiro da Europa, pode ser que alimente isto mais uns tempos, pelo que vamos continuar nesta linha. Depois, fazemos assim umas coisinhas para fingir que temos dinâmica mas, de facto, a economia portuguesa está empatada numa taxa baixinha…
Como assim?
Depois deste soluço, que como disse não tem nenhum significado, o que se prevê é que voltaremos ao mesmo: uma taxa de crescimento à volta de 2%, talvez um pouco mais, talvez um pouco menos. É um país que está parado, com outros a passar-nos à frente. Mas, é importante dizer, está toda a gente contente… Ninguém está preocupado com isso. Temos um governo de maioria absoluta, somos aliás o único país ocidental com maioria absoluta. Porquê? Porque este governo satisfaz a população, alimenta os grupos instalados, e o país está calmo. Portanto, quem sou eu para dizer que isto está mal? Isto é um país democrático e, claramente, o governo tem sucesso, evidente. Isto vai ter consequências sobre a dinâmica futura, sobre as próximas gerações? Claro que sim…
“Fazer reformas significa partir loiça. Portanto, mantém-se tudo como está”
O que falta?
Outro aspeto até mais importante é as reformas necessárias nos vários setores, da Justiça à Saúde, passando pela Educação, onde fazer reformas significa partir loiça, significa incomodar os que estão. Mas não é essa a abordagem, porque isso cria anticorpos e, portanto, mantém-se tudo como está… E isso consegue manter a situação, está tudo contente, como dizia, não podemos protestar porque somos um país democrático e as pessoas gostam disto. A maioria gosta disto.
Mas onde é que isto nos vai levar?
Vai ter custos, não vai ser de borla, evidentemente. E quem está a olhar para as coisas um bocadinho à distância vai sentir os problemas que, aliás, se notam, porque também há protestos, há problemas nos serviços de Saúde que não funcionam como deviam, porque a Justiça está atrasada, ou seja, os protestos estão lá. Mas enquanto os salários forem subindo um bocadinho, enquanto o dinheiro vier de lá de fora…
E não faltar o acesso ao crédito…
E houver acesso ao crédito, está toda a gente contente. É uma estratégia virada para o consumo, é esse o objetivo – consumo que, no fundo, é sempre a finalidade última. Quer dizer, a única coisa que se justifica numa economia é o consumo, é a satisfação das necessidades das pessoas, melhorar as condições de vida – é isso que significa ‘consumo’. Protestar contra o consumo é estúpido, evidentemente. Quando o Governo diz que é preciso promover o consumo, todos estamos de acordo. É evidente que a questão é a [escolha entre] o consumo hoje e o consumo noutras alturas. Para que é que nós fazemos poupança? Poupança parece ser uma coisa muito estúpida, deixar de consumir. Poupança tem a ver com aumento da capacidade produtiva, investimento, melhoria das condições para o consumo futuro. Para que é que nós exportamos, por exemplo? Exportar é estúpido, é produzir uma coisa e, depois, em vez de a consumir, mandá-la lá para fora. Mas porque é que fazemos isso? Para receber dinheiro e depois, mais tarde, poder consumir mais. O problema é quando o consumo atual – dos funcionários públicos, das câmaras, da banca, das infraestruturas etc – vai endividar e vai criar um problema futuro para o consumo das próximas gerações e vai atrasar a dinâmica e vamos perdendo a nossa posição no mundo e na Europa. Esse é o custo.
Disse que outros países estão a passar-nos à frente. Mas o Governo fala em convergência com a União Europeia. Onde é que está a verdade?
O Governo tem uma grande capacidade, que já vem de trás, de maquilhar muito bem as coisas. É um dom que tem. De facto, nem sempre aconteceu isso nos governos portugueses – tivemos vários governos que, aliás, quando caíram disseram que não souberam comunicar o que estava a tentar fazer. E este sabe comunicar e muito bem. Nós temos uma enorme quantidade de informação sobre a situação atual e eles vão sempre buscar a única coisa que dá bom aspeto e é para aí que é virada a atenção – em tudo o resto ninguém repara. Nós, de vez em quando, convergimos. É verdade. Mas convergimos com quem? Com a média da totalidade. Mas não é disso que estamos a falar. Estamos a ficar para trás porque os que estão atrás de nós estão a passar-nos à frente. Isso não tem a ver com a convergência com a média, tem a ver com a divergência em relação aos que vêm de trás e estão a passar-nos à frente.
“A carga fiscal atingiu os limites. Mas se calhar, ainda vai subir mais…”
Falou sobre a prioridade dada ao consumo – mas ouvimos, há poucos dias, o primeiro-ministro falar nas exportações e no objetivo de elevar o peso das exportações até 50% do PIB até 2030. É uma mudança de opinião?
Bem, quer dizer, promessas para 2030 todos nós fazemos com grande facilidade. Todos os políticos fazem promessas para três ou quatro anos depois do mandato. O problema não é 2030, é este ano, é o próximo – é isso que é importante. Querer que as exportações sejam 50% em 2030 não tem a ver com o primeiro-ministro, o senhor primeiro-ministro não trata das exportações, não é um assunto que lhe compete. Ele falar sobre as exportações é como eu falar sobre a juventude. ‘Eu acho que a juventude devia isto ou aquilo…’. Claro que ele tem de falar nisso. E as exportações que, coitadas, foram oprimidas durante muito tempo (e, por isso, as que sobreviveram são muito boas) – tivemos longos períodos de favorecimento dos setores internos (muito antes deste Governo) com desfavorecimento dos setores externos, portanto morreram muitas empresas que exportavam – por isso, as poucas que sobreviveram são muito boas. Portanto, assim que se alivia um bocadinho, dá logo um crescimento. Foi assim que nos alimentámos nos últimos tempos. Ou seja, o sucesso das exportações é consequência lateral de erros graves que foram cometidos contra as exportações. O que é que o primeiro-ministro pretende fazer para estimular as exportações? Isso seria interessante saber… Provavelmente não vai fazer muito, primeiro porque não lhe compete…
Costa quer que exportações representem 50% do PIB nesta década
Pode tomar medidas, pode reformar o IRC, pode dar…
Isso tem a ver com as reformas estruturais e esse é, talvez, o problema mais importante em cima da mesa e aquele de que, curiosamente, pouca gente fala. Temos uma maioria absoluta, por isso é altura de fazer reformas estruturais. Desde os impostos, à Saúde, passando pela Educação, as questões sociais, enfim, temos uma enorme variedade de campos onde muita gente do partido que está no poder falava de projetos e coisas extraordinárias – agora pode. Com maioria absoluta são poucas as coisas onde não se pode mexer. É isso que vamos ver. Acho que não podemos já fazer acusações porque não há tempo suficiente. Este Governo, um Governo para quatro anos, vai realmente deixar uma marca no país? Vai resolver problemas a sério? Não sei. Talvez já devêssemos estar a começar a saber, talvez já estivéssemos na altura de saber, em cada um dos setores, o que é que os senhores ministros querem fazer nas suas áreas – certamente não é agora que vão começar a pensar nisso…
Em que áreas?
Por exemplo, nos impostos, no IRC das empresas, por exemplo. Mas o que estamos a ver não é isso. Não vamos já julgar uma coisa que tem três ou quatro meses, mas a tradição que vem de trás é uma tradição de não mexer nas coisas para não afrontar os interesses instalados. Vimos anteriores maiorias absolutas que tentaram fazer reformas e que foram trucidadas na comunicação social, nas ruas…
O Tribunal Constitucional…
O Tribunal Constitucional, sim, e depois tiveram de recuar. Ou seja, maioria absoluta não é poder absoluto – e o Governo sabe isso. E a tradição que tem tido até agora é contentar as várias instâncias que controlam os poderes essenciais do Estado. Primeiro, há uma dúvida sobre se haverá, finalmente, uma coragem para enfrentar problemas que são graves.
Quais problemas?
Um dos problemas que temos em Portugal é, de facto, um corporativismo muito poderoso que domina os vários setores através de uma clique de interesses instalados. Confrontar isso seria muito importante para desbloquear várias coisas e não sei se haverá coragem. Por outro lado, falámos nas exportações e o que temos visto é que todo o acerto que houve nas contas públicas – e não foi muito – foi feito à custa dos impostos. Baixava-se sempre um imposto ou dois para fazer o brilharete público mas eles subiam sucessivamente e a carga fiscal em Portugal atingiu os limites. É verdade que não sabemos quais são os limites porque, se calhar, ainda vai subir mais… Mas já estamos para lá daquilo que é razoável para uma economia como a nossa. E essa é uma das razões para termos esta tendência de longo prazo de um crescimento medíocre, de que já falámos – não se prevê uma queda, um desastre, somos um país rico, desenvolvido, em crescimento, tudo está a funcionar, mas claramente estamos a ficar para trás no sentido que os outros nos estão a passar à frente e Portugal está um bocadinho a olhar para as paredes e a perder tempo. Uma das explicações para esse atraso é a carga fiscal e regulamentar que pende sobre tudo quanto é atividade económica.
“Uma parte da nossa intelligentsia vê as empresas como caça para esquartejar”
Carga fiscal sobre as pessoas e também as empresas?
Uma parte da nossa intelligentsia– mais do que apenas os partidos na assembleia – vê as empresas como caça para esquartejar. Servem apenas para lhes tirar mais para, depois, fazer os brilharetes desta ponte ou daquele subsídio, deste apoio ou daquele benefício. É uma visão de que o desenvolvimento é feito pelo Estado, é feito por estes políticos, por estas entidades públicas, que sabem tudo e sabem como vão fazer. E as empresas estão lá simplesmente para produzir o dinheiro necessário para eles fazerem as suas maravilhas. O PRR é um exemplo disso.
Porquê?
O PRR, pela forma como está a ser concebido, desde o início: é uma visão de que desenvolvimento significa Estado a tomar conta das coisas e a saber, através de uns especialistas… Começou logo pelo facto de ter sido um único cérebro a conceber o plano. É esta a nossa conceção, que temos em Portugal, não é assim na maioria dos outros países da Europa. É chamada a “bazuca”, é chamada “a última oportunidade”, mas não parece ir, de maneira nenhuma, para um verdadeiro desenvolvimento económico que significava confiar na população, confiar nos empresários, nos trabalhadores, nos consumidores. Confiar! Ou seja, acreditar que não somos nós, os brilhantes, mas que as populações sabem melhor o que têm de fazer.
É a chamada visão estatizante da economia…
Se o senhor ministro soubesse não era ministro, era rico. A única razão por que é ministro é porque não sabe. Eu sou professor porque não sei, se soubesse estava a fazer e estava caladinho. Não é aos professores da universidade ou aos ministros que nós devemos pedir para fazer o desenvolvimento económico – quem faz o desenvolvimento económico é a economia! Não passa pela cabeça da nossa intelligentsia– e, repito, não estou a falar dos políticos, mas a nossa intelligentsia, o nosso poder instalado cultural – não lhe passa isto pela cabeça. Ou seja, desenvolvimento económico significa políticas para aumentar as exportações… Ora, o senhor ministro acordou e disse que “50% do PIB…” não sei que mais… E então? O senhor ministro não exporta nada, não exporta literalmente nada, como eu também não exporto (por acaso até exporto um pouco porque tenho alunos estrangeiros… (risos).
PRR é “um papel para entregar em Bruxelas. Quando vier o dinheiro, a gente logo vê, como sempre foi”
Tem falado de forma bastante crítica sobre o PRR, críticas que incidem não só no conceito de base a nível europeu – a forma como tudo aquilo foi pensado – mas também critica a forma como foi pensado e está a começar a ser executado em Portugal…
O que tenho dito é que, em termos económicos, isto está errado. Em termos políticos, está muito bem feito. De facto, numa democracia quem manda é quem vota e politicamente está certo. A União Europeia teve um choque brutal da pandemia, como todo o mundo teve. E o que ela faz? Num primeiro momento o impacto da pandemia foi mitigado pelos governos nacionais. A União Europeia apareceu tarde, aliás só em junho ou julho é que acordou, quando já tinha passado a primeira vaga. Mas, de repente tira da cartola um coelho genial que é uma fortuna colossal, pela primeira vez não paga pelos governos mas por dívida da União Europeia – aquilo que os economistas andavam a propor há quase 20 anos…
As eurobonds…
As eurobonds que, afinal, nascem de um dia para o outro. As razões políticas que havia, para que não se avançasse antes, pelos vistos foram varridas pela pandemia. Mas é evidente que aquele fundo – o NextGenerationEU – não tem literalmente nada a ver com a pandemia. Fala sobre digitalização e a descarbonização, ora isso foram duas das poucas coisas em que a pandemia ajudou: digitalização porque de repente tínhamos muita gente a trabalhar no digital porque não tinha alternativa, e a descarbonização, estávamos todos em casa… Não estou a dizer que é mau, acho esses objetivos muito bons, mas não tem nada a ver com a pandemia. E tem uma componente que é a recuperação – que é a única coisa que é automática: acaba a pandemia a economia recupera, quer se queira quer não. Recuperação não é preciso, obrigadinho. Isso seria no momento em que chegou a pandemia. Se a União Europeia tivesse ajudado quando estávamos no meio do sarilho, teria sido excelente. Não fez quase nada, fez alguma coisa…
“Em Portugal, tudo parece acontecer em câmara lenta”, diz economista dinamarquês Steen Jakobsen
Sim, lançou aqueles programas SURE etc…
Sim, mas pouquinho. Mas controlou completamente o discurso político, toda a gente voltou a ficar a favor da União Europeia, que estava combalida com o Brexit, estava com vários problemas e, de repente, passou a controlar a lógica política com toda a gente a salivar por causa de todo esse dinheiro que vem aí. Porém, está completamente desajustado porque já não estamos a falar da pandemia, estamos a falar da guerra – o que mostra como isto é abstruso.
E em Portugal?
Em Portugal fizemos uma coisa que eu acho muito tonta. Decidimos, primeiro, escolher uma pessoa, um génio, que vai planear o País a 10 anos. De onde é que sai o País daqui a 10 anos? Da cabeça daquele senhor. Quer dizer, o Governo tem os grandes especialistas em cada um dos ministérios, que conhecem muito bem a realidade, trabalham com ela todos os dias, cada um na sua área, e tem pessoas de alta qualidade. Não. Foi só um senhor.
E que mais?
Depois, segunda coisa, temos de ser os primeiros. O primeiro é a entregar o papelinho é que é bom. Os outros estavam a fazer uma coisa séria e, portanto, não puderam ser os primeiros – nós tínhamos de ser os primeiros. Ficámos tão orgulhosos por sermos os primeiros. E a fotografia… Tudo isto é de uma infantilidade… Mas, mais uma vez, em termos políticos resultou muito bem. Eu achava que quando foi anunciado um génio para fazer o plano toda a gente ia desatar a rir. Mas ninguém riu. Portanto, se calhar eu estou errado – eles é que estão certos. Depois percebi qual era a lógica disto: é que aquele papel que é entregue em Bruxelas não é para levar a sério. E como não é para levar a sério, faz todo o sentido que não se gaste o tempo das pessoas que estão a lidar com a realidade do País e que têm mais que fazer. Faz todo o sentido contratar uma pessoa de fora. Aquilo é um papel para entregar em Bruxelas, para ser aprovado e depois, quando vier o dinheiro, a gente logo vê. Como sempre foi.
Vai ser assim? O que lhe diz que vai voltar a ser assim?
Primeiro, a história dos fundos que nós usámos no passado. Quando finalmente vier o dinheiro, a situação vai ser completamente diferente, portanto aquele papel não vai ser para levar a sério. É mais para cumprir a tal burocracia de Bruxelas. Assim faz todo sentido, António Costa não é estúpido, é muito inteligente, é um grande político. Eu é que sou estúpido, que estava a julgar que aquilo era para ser mesmo como eles dizem. Não é o que eles dizem, é outra coisa.
Mas e o que está no papel, qual é a avaliação daquilo que lá está?
O que lá está é bastante assustador, embora perfeitamente compreensível pela tal lógica que já expliquei porque se olharmos para aquilo com cuidado 60% ou 70% do que ali está é construção e Estado, burocracia. Mesmo o que está escondido com outras roupagens. Aquilo está escrito em código, não é fácil de ler, mas, por exemplo, aquilo tem lá uma miséria – acho que não chega a 2% – para ajuda social aos mais pobres. Estão todas as capelinhas e à última hora ainda foram lançar mais uns pozinhos, tirar daqui para pôr ali, para satisfazer todos, foi claramente esse o objetivo. Mas depois, sobre os pobres, vai-se a ver e é a construção de um centro social não sei onde. Ou seja, construção, mais uma vez, é betão, não é para ajudar os pobres. Pode-se dizer que depois, um dia, aquilo vai ajudar os pobres. Talvez vá, não sei…
E outros exemplos?
Depois, é escandaloso que 17%, não chega a um quinto, são para o pilar da inovação, empresas, crescimento económico. É poucochinho mas, depois, vai-se a ver e metade disso é para financiar um banco público [o Banco Português de Fomento]. E, como sabemos, temos tido uma experiência extraordinária com os bancos públicos, têm sido maravilhosos, como temos visto na nossa História (risos), dá sempre jeito ter mais um. Queremos ter dois. Ora, isto passa completamente ao lado daquilo que são as conclusões dos estudos sobre a economia portuguesa. Temos várias organizações internacionais a olhar para a nossa economia, tivemos um programa de ajustamento que teve um cuidado de olhar para os diagnósticos, e aquilo sai tudo completamente ao lado.
O Orçamento. “É tudo muito infantil, parecem criancinhas no recreio da escola”
Com alguma dose de ironia, Cavaco Silva disse que desejava que o atual primeiro-ministro aproveitasse a maioria absoluta que obteve nas últimas eleições para fazer mais e melhor do que ele. Está confiante de que assim será?
O artigo do Professor Cavaco Silva diz duas coisas muito importantes neste momento político. Primeiro, que é o momento de fazer reformas estruturais – ele fez, no seu tempo – e segundo ponto: fazê-lo em diálogo. É muito importante dialogar com a oposição, e a segunda parte do artigo é a falar daqueles casos em que não correu bem o diálogo com o PS, incluindo com coisas que hoje toda a gente acha normais mas que foram feitas sem o apoio do PS, só porque estava na oposição. Claro que o artigo é feito em jogada política, Cavaco Silva apesar de estar afastado continua combativo como sempre foi e, segundo, com uma dose de ironia muito forte. Mas tudo isso é secundário. O ponto essencial é esse: faça-se reformas estruturais e faça-se em diálogo.
Mas já disse publicamente que, na sua opinião, este orçamento que foi agora aprovado é mais do mesmo e que se manteve praticamente igual apesar de o mundo ter mudado (entre outubro e agora) e até o ministro mudou. Que consequências é que tem para a nossa economia o facto de o orçamento ser praticamente igual?
Não tem muitas porque é um orçamento que é uma coisa pequenita, um orçamento que entra a meio do ano… Assusta-me mais a atitude que, agora num Governo de maioria absoluta, continua a ser a mesma atitude de que falámos há pouco: ser o primeiro a entregar em Bruxelas, apresentar o mesmo orçamento que tinha sido chumbado. É um bocadinho aquela coisa do aluno que faz birra, assusta-me por causa disso. É uma orientação que, mesmo com o apoio maioritário no parlamento, continua a estar muito virada para a imagem mediática, para a chicana com aqueles que chumbaram e ‘agora é bem feito que vamos aprovar aquilo que vocês chumbaram’, coisas destas, e não para as necessidades do País. Caramba, isto é governar um País, não é fazer jogo político entre o Largo do Rato e… outras zonas.
O Orçamento devia ter sido adaptado à nova realidade?
Percebo que já estávamos avançados no ano e o Orçamento não podia ser aprovado em setembro ou outubro para terminar em dezembro. Mas podia-se facilmente ter revisto a sério o cenário, aconteceu muita coisa muito grave desde outubro do ano passado até ao momento em que o novo Orçamento foi apresentado. Eu já fui assessor de um ministro das Finanças há muitos anos [Miguel Beleza], sei que aquilo é uma coisa complicada e não é fácil mexer nas últimas horas, reconheço a dificuldade técnica do processo, que é grande. Depois é um ministro que acaba de se sentar na cadeira, eu sei que são argumentos válidos mas, mesmo assim, vamos viver mais de seis meses com um orçamento que claramente não está adequado à circunstância.
Mas disse que, apesar de ser praticamente igual, este orçamento que foi aprovado tem “pequenos ajustes” que apenas servem para agradar “certos interesses instalados”. Que interesses são esses?
É uma enorme quantidade de pequenas medidas que são pressões que aparecem à última hora, no parlamento, para dar mais um bocadinho àquela câmara ou àquele setor. É um sinal de quem não está a olhar para o quadro de fundo daquilo que o País precisa mas está a vender benesses àqueles que têm acesso e possibilidade de fazer essas pressões políticas. Este era um Orçamento que tinha sido feito para tentar um compromisso com a geringonça, já era um mau orçamento e avançar com isso outra vez é um bocadinho tonto… Quando o orçamento foi chumbado, era preciso preparar um novo – não era preciso esperar pelas eleições nem pela posse do Governo para preparar o Orçamento. Claro que podia perder, sair do governo, não era provável mas mesmo que acontecesse, deitava-se o trabalho ao lixo. Não ter feito nada disto e apresentar exatamente o mesmo, um Orçamento do qual nem o PS gostava – era um Orçamento para tentar que o PCP ou o BE aprovassem. O PS diz que gosta do Orçamento, mas é mentira e, no fim, para confirmar o bluff, apresenta o mesmo… “Veem? É muito bom…” Parece-me tudo muito infantil, parecem criancinhas no recreio da escola.
Um exemplo concreto: o Governo está a agir corretamente ao não ajustar os aumentos salariais da Função Pública à inflação mais elevada, nem os escalões?
É claro que quando sobem os preços e os salários não aumentam nós perdemos poder de compra. Todas as empresas vivem com esse problema: a maior parte das empresas tem de negociar diretamente com os trabalhadores. Neste caso temos um problema ainda mais complicado, porque quando sobe a inflação sobem os preços de venda dos produtos e há mais margem para ganhar e poder pagar aos trabalhadores. Uma inflação é um aumento das despesas das famílias mas também é um aumento das receitas das empresas. No Estado não é assim: há umas coisas ou outras onde os impostos vão dar mais receita, noutros até vão descer por causa da inflação. Mas, no geral, tudo o que se der mais aos funcionários públicos não é porque aumentaram as receitas do Estado. É por outra coisa…
Mas pode aumentar a espiral inflacionista? Aumentar os salários da Função Pública? Esse é um argumento que é usado…
A questão não é se vai aumentar a inflação ou não. Até porque isto não é inflação no sentido técnico do termo, isto é um choque nos preços, é uma coisa temporária, e os bancos centrais é que têm a função de controlar a inflação. O governo pode fazer os trabalhadores da Função Pública sofrer a perda do poder de compra ou não – essa é que é a questão que está em cima da mesa.
Até porque os inputs da inflação são internacionais e, portanto, alterar os salários da Função Pública portuguesa…
Exatamente, não é por aí. Não quis fazê-lo. Talvez seja um bom sinal, no sentido em que o Governo finalmente está a afrontar um grupo instalado muito poderoso – talvez o mais poderoso de todos, que é a Função Pública, que faz funcionar o Estado, eles estão disponíveis para os afrontar nesta matéria. Ainda não houve grandes protestos, isso vai começar… Até porque a saída da extrema esquerda do apoio ao governo já está a fazer aumentar as greves…
CGTP promete intensificar luta e não exclui possibilidade de greve geral com UGT
Sim, há aviso de que pode haver uma greve geral, greves nos transportes, pré-avisos, como o da CP, de que pode haver greve ao longo de quase um mês…
Isso vai começar, mas se calhar é um sinal de que o governo de maioria absoluta, embora tenha muitas das mesmas caras, se calhar vai começar a confrontar algumas coisas e, por isso, talvez a nossa suspeita de que isso não irá acontecer não se justifica. Isso seria um bom sinal, acho eu.
“Para Costa faz todo o sentido ir-se embora. Daqui para a frente não ganha, só perde”
Mas adivinha-se um sufoco de greves nos próximos meses…
Não é meses, pode ser nos próximos anos. Se calhar vamos voltar a lembrar os tempos das maiorias de Cavaco Silva ou José Sócrates, ou mesmo Durão Barroso, aqueles períodos em que tivemos a extrema esquerda a subir porque conseguia atacar um governo instalado e dizia mal de tudo e mais alguma coisa. Por isso é que depois caiu estrondosamente quando cometeu o erro de apoiar o poder. A extrema-esquerda não pode apoiar o poder, não pode por definição. Por isso é que subiram outras contestações, que de alguma forma sugaram a contestação enquanto a extrema-esquerda esteve enfeudada com o poder. É espantoso que a extrema-esquerda não tenha percebido isto, e esse é que foi o golpe de génio de António Costa que, de facto, é um político genial pelo golpe que deu quando perdeu as eleições e, depois, acabou por sair vencedor das eleições. E ter mantido aquela situação durante tanto tempo, e quanto não manteve ganhou ele… É uma jogada de xadrez genial.
Costa vai lidar bem com essa situação, de ter multidões a protestar na rua?
Vamos ver. Será uma novidade, ele nunca teve isso. Para ele, pessoalmente, faz todo o sentido ir-se embora. É como o Napoleão, se tivesse morrido em Moscovo era o maior homem de todos os tempos – porque depois de Moscovo para cá só correu mal. António Costa chegou ao seu pico, agora as coisas vão começar a correr mal. Primeiro porque já não tem desculpas: já não tem a desculpa do governo anterior [PSD-CDS] e a troika, tinha a desculpa da minoria. Tudo isto desapareceu e não estamos num mundo mais fácil do que estávamos em 2015 quando ele lá entrou. E, por isso, para ele faz todo o sentido ir-se embora.
E se for?
Acho que ficamos muito pior. Não tenho nada a certeza que a alternativa que venha seja melhor do que António Costa. Por isso, espero que não vá, mas do ponto de vista dele faz todo o sentido porque ele, daqui para a frente, só perde, não tem nada para ganhar.
Juros e inflação a subir? "Vamos ter de viver com isso"
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Cada vez mais perto das primeiras subidas das taxas de juro na zona euro, João César das Neves lembra que “nós estivemos a viver numa situação absolutamente aberrante, que são taxas de juro miseráveis, não é saudável“. É certo que “nos habituámos a isso, foi ótimo para toda a gente que tem dívidas, para quem comprou casa ou para quem tem uma dívida pública elevada” e foi “horrível para quem vive de poupanças ou quem tem de as gerir, como as companhias de seguros, os fundos de pensões”.
Agora, “não se espera que as taxas de juro disparem para valores inacreditáveis mas vão deixar de estar nos valores inacreditáveis em que estiveram nos últimos anos”. “Temos de viver com isso, tivemos uma borla ao longo de 12 anos – houve uma enorme transferência de riqueza entre quem poupou riqueza e quem tinha dívidas – agora acabou-se”, atira o economista.
Sobre a inflação, João César das Neves tem alguma esperança que o quadro acabe por não ser tão negativo quando se teme. “Eu diria que este ano está perdido, não é provável que neste ano se resolva o problema, mas talvez algures no próximo ano, as coisas comecem a normalizar”, afirma, acrescentando que “tudo depende do bom senso das partes, que não parece haver muito na tolice que é esta guerra”.
“A questão mais complicada é como é que se lida com a Rússia”, acrescenta. “A Rússia não pode ganhar, porque se ganhar é terrível, vai continuar e outros vão copiá-la. Seria terrível, seria voltar aos velhos tempos dos ataques imperialistas habituais. Mas a Rússia também não pode perder escandalosamente, porque a Rússia é um país importante. Há aqui um equilíbrio muito ténue onde as coisas podem correr bem”, remata.