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Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
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Foram tiradas para todo este trabalho cerca de duas mil fotografias, entre a máquina digital, as máquinas analógicas e o drone

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Foram tiradas para todo este trabalho cerca de duas mil fotografias, entre a máquina digital, as máquinas analógicas e o drone

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Entrevistados e documentos inéditos, fotos à antiga e 21 horas de som para um podcast. Os bastidores de "Os Anos de Chumbo das FP-25"

Os papéis com as memórias inéditas do juiz que mandou deter Otelo. Testemunhas de familiares das vítimas que decidiram falar pela primeira vez. Um método antigo de tirar fotos. E vídeos animados.

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Ao longo de vários meses, uma equipa do Observador investigou a história das Forças Populares 25 de Abril, a organização terrorista de extrema-esquerda que entre 1980 e 1987 matou 13 pessoas, feriu dezenas de outras e cometeu largas dezenas de atentados à bomba e assaltos a bancos. A Justiça concluiu que as FP-25 eram o braço armado do partido político FUP (Força de Unidade Popular) liderado por Otelo Saraiva de Carvalho, o estratega do 25 de Abril.

Foi preciso ler milhares de páginas: nas caves do Campus da Justiça, em Lisboa, onde está arquivado o extenso processo judicial; e na Biblioteca Nacional, onde existem exemplares de todos os livros publicados sobre o assunto, incluindo os assinados por Otelo Saraiva de Carvalho e por vários ex-operacionais das FP-25, e onde estão também disponíveis todas as edições da imprensa da época.

E foi preciso também falar com muita gente. Ao todo, foram contactadas várias dezenas de pessoas e foram entrevistadas mais de trinta, desde antigos membros da organização aos inspetores da Polícia Judiciária que os detiveram, passando pelos procuradores, juízes e advogados que se defrontaram no Tribunal de Monsanto, e não esquecendo os familiares das vítimas. Algumas dessas pessoas nunca tinham falado publicamente sobre o assunto, como Paula Barradas, filha de José Manuel Barradas, o primeiro operacional das FP-25 a decidir colaborar com a Justiça, ou Francisco Amaro, o homem a quem foi confiada a missão de erguer o Tribunal de Monsanto no prazo recorde de três meses. Outras, como o juiz de instrução Martinho Almeida Cruz, já tinham dado entrevistas a propósito das FP-25, mas revelaram ao Observador documentos inéditos — no caso do juiz, a pasta com a transcrição das suas memórias, que ditou para um gravador já depois de terminado o processo, há mais de 30 anos.

Ouça aqui o primeiro episódio do podcast.

“Porquê? Porquê?” As vítimas das FP-25 de Abril

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Os quatro especiais e outros tantos vídeos já publicados no âmbito da série “Os Anos de Chumbo das FP-25” resultaram de todo este trabalho, a que se juntarão ao longo dos próximos dias mais três episódios de um podcast especial. Contamos-lhe oito detalhes desta investigação — que são também oito dos motivos por que não pode deixar de ler e ouvir esta série especial do Observador.

Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A máquina utilizada foi uma câmara analógica, uma Mamiya RB67 de 1970, de médio formato, com película a preto e branco

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

As memórias inéditas do juiz

A entrevista ao juiz Martinho Almeida Cruz ocorreu numa esplanada na Avenida Todi, em Setúbal. O magistrado contou como foi informado de que ficaria a liderar aquela investigação e lembrou como foi interrogar Otelo Saraiva de Carvalho ao longo de meses, enquanto fazia quilómetros de norte a sul do país para recolher prova para o processo. Duas semanas depois desta entrevista, porém, Martinho Almeida Cruz telefonava a dizer que tinha encontrado uma coisa que poderia ser útil para o trabalho.

As memórias do juiz, inéditas, chegaram ao Observador numa capa de cartão com as cores já meio sumidas e o título “Diários da Répública”— mesmo assim, com dois acentos agudos, escrito à mão.

Foi uma enorme surpresa: em 1986, com o objetivo de mais tarde escrever eventualmente um livro sobre o processo, o juiz ditou para um gravador todas as suas impressões desses dias — e encheu seis cassetes no total.

Aquilo que tinha para partilhar com o Observador, explicou, não eram esses áudios, a que entretanto perdeu o rasto, mas a sua versão datilografada, já em Bruxelas, onde acabou por ser colocado por questões de segurança, por uma secretária que estava há tanto tempo na Bélgica que já tinha perdido o domínio do português escrito.

As memórias do juiz, inéditas, chegaram ao Observador numa capa de cartão com as cores já meio sumidas e o título “Diários da Répública”— mesmo assim, com dois acentos agudos, escrito à mão. Lá dentro, ao longo de 80 folhas, com alguns erros ortográficos corrigidos a caneta pelo próprio Martinho Almeida Cruz, estava um documento nunca antes publicado e essencial para compreender o processo que levou as FP-25 de Abril ao Tribunal do Monsanto.

Naquelas páginas dactilografadas, o magistrado descreve os arguidos um a um e o seu comportamento no  primeiro interrogatório judicial. E lembra também os vários telefonemas que foi recebendo da hierarquia, assim como episódios que viveu já sob segurança pessoal enquanto investigava o processo principal das FP-25 e, logo de seguida, o chamado processo dos operacionais. Conta também como conseguiu que os primeiros arrependidos do caso, detidos no Porto, fossem libertados e ficassem sob a alçada da Polícia Judiciária para continuarem a dar informações.

Ao todo, foram contactadas várias dezenas de pessoas e foram entrevistadas mais de trinta, desde antigos membros da organização aos inspetores da Polícia Judiciária que os detiveram, passando pelos procuradores, juízes e advogados que se defrontaram no Tribunal de Monsanto, e não esquecendo os familiares das vítimas.

Nove prateleiras em duas estantes de documentos

Os documentos do processo das FP-25 de Abril não estão todos no mesmo sítio. Na altura foram apreendidos papéis a todos os arguidos, incluindo os valiosos cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho — e, além disso, foi também apreendida diversa documentação na sede e nas filiais da FUP.

Na cave do Campus da Justiça, em Lisboa, onde estão arquivados milhares de processos antes de seguirem para o arquivo geral em São João da Talha, estão todos os processos das FP-25. Anexo ao processo principal, estão os processos que correram por todo o país, que ocupam nove prateleiras de duas estantes — e que com o passar dos anos e das consultas já não estão arrumados por ordem. Vale a memória da procuradora Cândida Almeida, que fez as acusações, e ainda sabe quais são as partes mais importantes dos 65 volumes e cerca de 90 apensos que compõem o processo, o que poupou inúmeras horas de consulta.

Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. Fotografias do processo das FP-25 que se encontra no arquivo do Tribunal de Lisboa. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. Fotografias do processo das FP-25 que se encontra no arquivo do Tribunal de Lisboa. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. Fotografias do processo das FP-25 que se encontra no arquivo do Tribunal de Lisboa. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. Fotografias do processo das FP-25 que se encontra no arquivo do Tribunal de Lisboa. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Todos os processos das FP-25 estão arquivados na cave do Campus da Justiça, em Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Na Polícia Judiciária também existe um acervo considerável de material, a que o Observador teve acesso, e que inclui desde armas apreendidas e usadas nos crimes a vários caixotes de documentos originais — no processo estão apenas as cópias feitas pela Polícia Judiciária.

O que ninguém sabe bem é onde estão hoje os cadernos originais de Otelo Saraiva de Carvalho. Os dois cadernos de capa preta e verde que lhe foram apreendidos em casa, e que ditaram a sua detenção a 20 de junho de 1984, foram à data dactilografados pela PJ, para uma melhor e mais fácil interpretação. O Observador conseguiu uma cópia dessa transcrição no escritório do advogado Artur Marques, em Braga. O advogado, que representou seis arguidos do caso, tem também um arquivo pessoal onde guardou as principais partes do processo. Curiosamente, no dia em que o copiou para ceder ao Observador, percebeu que o seu nome estava inscrito nas páginas onde Otelo registava as reuniões da organização.

Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Os rolos utilizados, os Ilford Delta, de 3.200 ISO, fez com que todas as fotos tivessem o grão que era tão característico nas fotografias captadas durante os anos em que as FP-25 estiveram em ação

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Os entrevistados que nunca tinham aceitado falar

Ao todo, foram mais de trinta as pessoas entrevistadas para este trabalho. Muitas já tinham participado noutras reportagens sobre as FP-25, outras aceitaram falar pela primeira vez sobre aquilo que passaram.

Luís Monteiro Pereira, filho de Bernardo Monteiro Pereira, o administrador da Fábrica de Loiças de Sacavém que foi o primeiro empresário condenado à morte pelas FP-25, nunca tinha falado publicamente sobre o assunto. Depois de alguma hesitação, acabou por aceitar ser entrevistado — mas não quis ser fotografado nem permitiu que os áudios da conversa, que aconteceu a meio de maio, na esplanada de um hotel em Lisboa, fossem utilizados.

Luís Monteiro Pereira, filho de Bernardo Monteiro Pereira, o administrador da Fábrica de Loiças de Sacavém que foi o primeiro empresário condenado à morte pelas FP-25, nunca tinha falado publicamente sobre o assunto.

Jorge Champalimaud Raposo de Magalhães, filho do proprietário da Ivima, que numa noite de janeiro de 1984, depois de cinco anos de ameaças, acordou com o som de metralhadoras a serem disparadas contra a sala de estar, também falou pela primeira vez sobre o atentado de que a família foi alvo. E não só aceitou ser fotografado como aceitou que isso acontecesse no lugar onde tudo aconteceu — e voltou, pela primeira vez em muitos anos, à quinta de Leiria de onde a família acabou por fugir em 1986 e que hoje está ao abandono.

Paula Barradas não teve de regressar: trabalha a poucos metros do sítio onde o pai, o primeiro operacional das FP-25 a depor contra a organização e o único a ser assassinado pelos ex-companheiros, foi crivado de balas e deixado para morrer. Na altura, tinha 8 anos e ouviu tudo. Durante anos não falou sobre o assunto — e nunca tinha contado a sua história. Quando o Observador a procurou na escola da Costa da Caparica onde trabalha, aceitou imediatamente participar neste trabalho.

Francisco Amaro, o construtor que em três meses pôs de pé o Tribunal de Monsanto, feito de propósito em 1985 para receber o julgamento das FP-25, também falou pela primeira vez desses tempos, em que chegou a estar quatro dias sem ir à cama e andava sempre de caçadeira pronta a disparar. Não tinha voltado a entrar no tribunal desde a década de 80, mas já tinha percebido pela televisão que precisava de uma pintura nova.

A história do padre que esteve preso dois anos, foi julgado e absolvido das FP-25

Manuel Crespo tem 78 anos e há quase 40 passou dois anos na prisão, acusado de pertencer às FP-25. No final, acabou absolvido, mas o processo deixou marcas para sempre. Agora, aceitou relembrar o que aconteceu, numa conversa na casa paroquial da aldeia de Guilhufe, Penafiel, onde há 13 anos é padre.

“Nunca encaixei o facto de me terem prendido. Para mim, isso foi uma perseguição, uma injustiça. Não faz parte do meu ideário nem da minha maneira de agir meter-me numa coisa daquelas”, contou ao Observador, enquanto gravava a conversa no seu próprio telemóvel para garantir que tudo o que fosse publicado correspondia ao que disse.

Quando foi ordenado padre, Manuel Crespo, que viria a ser um dos 17 chamados padres-operários portugueses, já era operário na Lisnave, em Almada, há cerca de cinco anos. Desde então, passou a viver como religioso mas continuou a envolver-se em movimentos sindicais. Enquanto mantinha o trabalho religioso, ligado à Juventude Operária Católica e também ao Movimento dos Trabalhadores Cristãos, também integrava movimentos sindicais e políticos. Chegou a ser representante do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) no distrito de Setúbal, fez campanha por Otelo na sua primeira candidatura às Presidenciais e pertenceu à FUP.

“Nunca encaixei o facto de me terem prendido. Para mim, isso foi uma perseguição, uma injustiça. Não faz parte do meu ideário nem da minha maneira de agir meter-me numa coisa daquelas”.
Padre Manuel Crespo

Naquele 19 de junho de 1984, quando centenas de polícias saíram à rua para prender cerca de 70 suspeitos de integrarem o grupo terrorista FP-25 de Abril, Manuel Crespo estava a almoçar com um casal amigo na zona do Marquês de Pombal, em Lisboa, e diz que se apercebeu da ação policial. “Até comentámos. Disse que não tinha nada a ver comigo”, recorda. Mas a polícia tinha um mandado de detenção em seu nome e até já tinha ido bater à porta da sua casa em Almada, onde não vivia há dois anos. “Eu estava no Porto, tinha vivido em Almada e foi lá que eles foram à minha procura. Não me encontraram. Por acaso até estava em Lisboa nesse dia.”

Seria detido um dia mais tarde, quando saía de um banco da capital, onde tinha ido depositar dinheiro. A informação do seu paradeiro acabou por ser dada pelos seus colegas da cooperativa onde trabalhava, em Valongo, que disseram às autoridades que Manuel Crespo naquele dia estava em Lisboa  para entregar uma “carrada de móveis para o convento de Sassoeiros”.

“Eles próprios me disseram, a equipa da Judiciária, que havia um mandado de captura para mim… Lá um parvo qualquer começou a fazer perguntas e eu disse: ‘Eu não respondo a nada, só respondo com um advogado na minha presença’. E o responsável disse que tinha esse direito”, lembra.

Manuel Crespo diz não compreender por que motivo foi detido — e esse sentimento de injustiça tornou-se evidente na altura da detenção. No primeiro interrogatório, destacou o juiz de instrução Martinho Almeida Cruz nas memórias que partilhou com o Observador, acabou mesmo por ser posto fora da sala por causa da forma “indelicada” como falou com a funcionária que passava perguntas e respostas à máquina. “Recordo também que quando cada preso entrava, e depois de devidamente identificado, eu o acusava formalmente de pertencer a uma organização terrorista, sendo certo que as reações eram todas negativas, a deste padre foi mais negativa que toda a gente”, escreveu o magistrado.

O padre acredita que quem o arrastou para o processo só pode ter sido José Manuel Barradas, o arrependido que acabaria por ser assassinado por operacionais das FP-25. “Ele declarou que eu devia ser [das FP-25], porque de vez em quando me via com o Claro, colega da Lisnave. Ele via-me com o Claro porque o Claro tinha feito parte do PRP e portanto éramos conhecidos”, defende-se, 37 anos depois das detenções. Manuel Claro também foi acusado no processo mas, ao contrário de Manuel Crespo, que foi absolvido, acabou condenado a uma pena de cadeia de 11 anos, que os tribunais superiores agravariam em um ano.

À pergunta sobre se era já um revolucionário, responde: “O que é isso? Eu defendia os meus interesses e os interesses da minha classe, não sei se se chama revolucionário. Se calhar os bombistas da direita também são revolucionários porque defendiam os interesses da classe deles ou dos patrões que lhes pagavam”, respondeu, recusando sequer a existência de um braço armado no partido fundado por Carlos Antunes e Isabel do Carmo, as chamadas Brigadas Revolucionárias. “Isso era da comunicação social, até antes do 25 de Abril”, começou por dizer. “Não sei se tinham, se não tinham. A violência naquela altura e a indefinição política era muito grande. Portanto, havia uma luta pelo poder; nessa altura, a esquerda lutava pelo poder. Um poder que foi sempre de direita, da opressão. Portanto, a esquerda lutava pela libertação dessa opressão. Houve pessoas que antes do 25 de Abril se organizaram. O PC também tinha um braço armado, o PS depois do 25 de Abril teve um braço armado, o Palma Inácio e companhia. E não foram distribuídas armas pelos militantes do PS? E houve muita gente com dificuldade em desfazer-se dessas armas”, afirma. Garante que nunca disparou uma arma na vida. “Nunca dei um tiro. Para quê armado? Isso não vale nada”.

Os retratos foram feitos sempre com um pano preto a servir de cenário

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os quase dois anos que passou na prisão foram duros e ainda não lhe saíram da memória. Aliás, o seu advogado, Magalhães e Silva, sabendo da pressão que sofria por parte dos outros presos e temendo pela sua saúde mental, conseguiu mesmo que o libertassem ao fim de dois anos — Otelo, por exemplo, esteve cinco em prisão preventiva.

Apesar de nunca ter escondido a prisão e o julgamento por que passou, nem sequer na aldeia onde é hoje responsável pela paróquia, o padre garante que nunca foi maltratado por isso. Também diz que esse percalço do passado nunca o limitou: “Não tive ligações clandestinas, tive ligações legais. Não há nenhuma razão para fugir de ninguém, para me excluir ou me sentir excluído. Até porque acredito que os motivos por que as pessoas lutaram, talvez não utilizassem as melhores decisões, mas a base da luta pela libertação do povo trabalhador e dos pobres é correta. E nobre”.

Quase dois mil cliques e as fotografias à antiga

No início desta investigação, o editor de fotografia João Porfírio retratou todos os entrevistados com as câmaras digitais que utiliza no dia a dia. Mas, no regresso à redação, começou a pensar que, tendo em conta o tema, talvez devesse fazer algo diferente. E foi assim que teve a ideia de fotografar todos os entrevistados com o equipamento que se utilizava na década de 1980.

Depois de decidir que máquina queria usar — uma câmara analógica, uma Mamiya RB67 de 1970, de médio formato, com película a preto e branco —, foi preciso encontrar um colecionador com uma disponível para alugar.

Depois de decidir que máquina queria usar — uma câmara analógica, uma Mamiya RB67 de 1970, de médio formato, com película a preto e branco —, foi preciso encontrar um colecionador com uma disponível para alugar.

A seguir foi só telefonar para todos os entrevistados, pedir-lhes que se deixassem fotografar novamente e voltar a viajar para locais como Leiria, Grândola, Sintra ou Évora, agora com uma equipa alargada aos fotojornalistas Diogo Ventura e Tomás Silva, que filmaram o making off das sessões, que decorreram nos locais onde a história aconteceu, sempre com um pano preto a servir de cenário.

Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Os retratos foram feitos, maioritariamente, nos locais onde a história aconteceu

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O resultado final é o mais cru possível. Propositadamente, os negativos não foram limpos, como é costume fazer-se, para retirar as impurezas dos químicos de revelação. A sensibilidade muito elevada dos rolos Ilford Delta, de 3.200 de ISO (o valor que indica quão sensível à luz um rolo de filme é), fez o resto e deu aos retratos o grão que era tão característico nas fotografias captadas durante os anos em que as FP-25 estiveram em ação.

Há outro fator visual distintivo nesta série: as fichas dos detidos pela Polícia Judiciária, que fazem parte do processo, foram fotografadas com Polaroid.

Foram tiradas para todo este trabalho cerca de duas mil fotografias, entre a máquina digital, as máquinas analógicas e o drone. Foram também consultados diversos arquivos fotográficos: da Agência Lusa, da Global Imagens e do arquivo do Exército. Foram descarregadas cerca de uma centena de imagens de arquivo com datas desde 1970 até 2001.

REPORTAGEM FP25: Fotografias dos processos do caso FP25, detidas pela polícia judíciaria. 21 de Dezembro de 2021 JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR REPORTAGEM FP25: Fotografias dos processos do caso FP25, detidas pela polícia judíciaria. 21 de Dezembro de 2021 JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR REPORTAGEM FP25: Fotografias dos processos do caso FP25, detidas pela polícia judíciaria. 21 de Dezembro de 2021 JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR REPORTAGEM FP25: Fotografias dos processos do caso FP25, detidas pela polícia judíciaria. 21 de Dezembro de 2021 JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

As fichas dos detidos pela Polícia Judiciária, que fazem parte do processo, foram fotografadas com Polaroid

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os vídeos e a avó da jornalista multimédia

A jornalista da equipa multimédia Ana Moreira não fez as contas às horas que levou a fazer os quatro vídeos animados que acompanham a série multimédia “Os Anos de Chumbo das FP-25” — mas, minutos antes da publicação do primeiro especial, percebeu que os tinha começado em maio e que ainda não tinha conseguido pôr um ponto final na empreitada, que foi sempre acompanhada pela editora-coordenadora da equipa Multimédia Catarina Santos.

Para reproduzir os carros conduzidos por operacionais das FP-25 e das forças de segurança e as fardas militares usadas há quase quatro décadas, a jornalista e ilustradora passou horas em bancos de imagens. Desenhar as ruas e os edifícios da Malveira, tal como eles eram em 1980, foi mais complicado, mas acabou por conseguir resolver o problema mais uma vez com recurso à tecnologia. Primeiro, no arquivo da RTP, viu as reportagens emitidas na época sobre os assaltos aos bancos e a posterior retaliação contra os militares da GNR. Depois, com recurso ao Google Maps, sobrepôs essas imagens às das vistas aéreas atuais da vila. Só não conseguiu mesmo obter a fachada do posto da GNR da Malveira naquela altura, até porque o posto mudou de sítio. Nem o comandante do destacamento ou mesmo o arquivo do Comando Geral da GNR conseguiram uma imagem para a ajudar.

Já para desenhar a sogra de Otelo Saraiva de Carvalho, que no segundo vídeo animado, tal como aconteceu em junho de 1984, abre a porta aos inspetores da Polícia Judiciária, precisou de utilizar a imaginação. Como não havia uma única foto disponível da sogra de Otelo, inspirou-se na sua própria avó.

A vida de José Barradas, protagonista de um dos vídeos, contada pela filha

Paula Barradas tinha apenas 3 anos quando as FP-25 de Abril foram fundadas, mas teve toda a vida marcada pela atuação do grupo terrorista. Para além de membro da organização, o seu pai foi o primeiro arrependido do processo judicial e também o único operacional a ser assassinado pelos antigos companheiros, o que faz com que Paula não se enquadre em nenhuma categoria — ou com que, pelo contrário, tenha lugar em várias.

Na altura, Paula tinha apenas 8 anos, mas ao Observador, na primeira conversa que aceitou ter publicamente sobre a história da família, garantiu que nunca vai ser capaz de esquecer o que ouviu na noite em que José Manuel Barradas foi perseguido e atingido com várias rajadas de metralhadora no descampado das traseiras do apartamento onde moravam, na Costa da Caparica.

Durante anos, não falou. Foi acompanhada por psicólogos e teve de suportar uma tentativa de suicídio da mãe, que mais tarde voltou a casar e a ter outra filha mas nunca esqueceu o primeiro marido — tanto que, quando morreu, há dois anos, Paula lhe cumpriu a vontade e a sepultou junto a ele. “Dantes não conseguia sequer abrir a boca. Durante muito tempo, primeiro que me abrisse, primeiro que falasse, era muito difícil. Agora já consigo, já desabafo. Assisti a tudo. E isso não me sai da cabeça”, disse ao Observador, na sala do apartamento onde mora, em Almada, com o marido, as duas filhas, de 18 e 20 anos, e o neto, de 2.

Agora com 44 anos, auxiliar de ação educativa numa escola a escassos metros do sítio onde tudo aconteceu, continua a tentar perceber as ações do pai, que se juntou a uma organização “que defendia uma causa, tirar aos ricos para dar aos pobres” com que é incapaz de antipatizar por completo. “Por um lado acho bem, mas por outro não, fiquei sem ele”, diz. “Acho que o meu pai era bom demais para fazer mal a outras pessoas. Se calhar quis desistir por isso, por me ter a mim e por ter a minha mãe.”

Entrevista a Paula Barradas. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Paula Barradas é a filha de José Barradas e tinha oito anos quando o seu pai, o primeiro arrependido das FP-25, foi assassinado

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Não terá sido bem assim. Preso no Porto em fevereiro de 1983, juntamente com José Alexandre Figueira, que também viria a colaborar com a investigação, José Barradas só se tornou arrependido ao fim de mais de um ano. E não necessariamente por vontade própria: só depois de a organização ter deixado de apoiar a mulher e a filha com dinheiro, por acharem que ele tinha traído a organização e estava a falar com as autoridades, é que começou realmente a contar o que sabia.

Para além de ter entregado elementos da organização, bem como os seus responsáveis, José Manuel Barradas, ex-operário da Setenave, confessou os crimes que ele próprio tinha cometido e revelou logo no primeiro interrogatório que era especialista em explosivos, com um curso de minas e armadilhas tirado nos Comandos e posto em prática em Angola, durante a Guerra do Ultramar.

Noutro dos interrogatórios a que foi sujeito pela PJ, a 28 de março de 1984, contou como em 1982 tinha ido ao Restelo com outros dois operacionais, “o António e o João”, estudar as zonas da embaixada do Brasil e da residência do embaixador “a fim de lá colocarem uma bomba como represália pela prisão do cantor” Sérgio Godinho, que tinha sido preso no Brasil por posse de marijuana e torturado com choques elétricos.

“Dantes não conseguia sequer abrir a boca. Durante muito tempo, primeiro que me abrisse, primeiro que falasse, era muito difícil. Agora já consigo, já desabafo. Assisti a tudo. E isso não me sai da cabeça”.
Paula Barradas, filha do arrependido José Barradas, que foi assassinado

Apesar de esse atentado não ter chegado a acontecer, Barradas levou a cabo outras ações. Terá estado nas primeiras reuniões da OUT e da FUP e chegou a ter a responsabilidade de guardar armas e dinheiro, que depois eram distribuídas por outros operacionais — foi nas imediações do restaurante que em 1979 passou a gerir, entre as praias do Rei e da Cabana do Pescador, também na Caparica, que cinco anos depois levou a Polícia Judiciária a descobrir um bidão com nove metralhadoras G-3, enterrado a metro e meio de profundidade.

Depois de tudo o que fez, chegou “à conclusão de que estava errado e que foi enganado” por uma organização liderada por pessoas cujos “interesses pessoais estão acima de tudo” e que se dedicava “a atividades que considera criminosas e nada têm a ver com política” — foi o que explicou às autoridades quando aceitou falar.

A 31 de agosto de 1984 foi libertado, juntamente com Figueira, preso na mesma madrugada no Porto, também arrependido e igualmente residente na Caparica — ambos com termo de identidade e residência e direito a vigilância por parte da PJ.

Entrevista a Paula Barradas. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

José Manuel Barradas foi perseguido e atingido com várias rajadas de metralhadora no descampado das traseiras do apartamento onde moravam, na Costa da Caparica

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A José Manuel Barradas, recorda a filha mais de três décadas depois, calhou a companhia de José Manuel Barra da Costa, então jovem inspetor que conhecera o pai em Custóias, onde entrou disfarçado de padre com o objetivo de ouvir as “confissões” dos detidos. “Estava sempre connosco e ajudava-nos, parecia-me uma boa pessoa”, recordou Paula Barradas, enquanto mostrava fotografias, ainda bebé, com o pai, numas férias na Madeira, e meses antes de ele morrer deitados na cama de uma casa que não conseguiu situar no mapa, mas que garantiu ser o local seguro para onde a família se mudou desde que José Manuel Barradas saiu do cadeia em liberdade condicional.

Apesar de estar numa casa de refúgio da PJ, e protegido do inspetor Barra da Costa, a família tinha autorização para o visitar e passar o tempo que quisesse com ele, desde que o fizesse sob vigilância policial, explicou ao Observador o antigo inspetor António Coutinho. No dia em que foi atacado pelas FP-25, Barradas estava sem proteção. “O que aconteceu com o Barradas foi uma situação que não devia ter acontecido. O Barradas quis ir à terra e foi sozinho com a família. A terra dele é perto de Martim Longo e as FP souberam que ele estava lá. Pegaram num comando qualquer e foram para lá para o matarem. Mas, quando chegaram, já não o encontraram. Enquanto o Barradas se deslocava para Lisboa, eles deslocavam-se para lá”, recorda o ex-PJ, que diz que, uma vez nas imediações de Lisboa, o arrependido devia ter ligado para o agente responsável pela sua segurança pessoal, para voltar à casa-refúgio, mas em vez disso seguiu caminho até à Caparica. “Metralharam-no… O colega só não foi apanhado também porque ainda não tinha chegado, ia a caminho”, recordou o inspetor Coutinho.

Apesar de ainda ter tentado escapar, por uma zona de descampado onde entretanto foram construídos mais prédios, Barradas acabou por chocar contra um poste. Quando analisou o local, a polícia contou 18 buracos de balas na lateral esquerda do carro e nem um único vidro por partir. “Ouvi os tiros, a porta a abrir-se e o meu pai a cair”, lembra-se a filha, que apesar de não ter visto nada, ouviu tudo.

No hospital de São José, internado em estado crítico, morreu doze dias depois, às 14h30 de 1 de agosto de 1985, um domingo, “após sete paragens cardiorespiratórias”, detalhou O Jornal, quatro dias mais tarde. Apesar do pouco que sabia, foi o único arrependido das FP-25 a morrer às mãos da organização. As memórias de Paula Barradas foram essenciais para a reconstituição feita no vídeo do Observador.

1.269 minutos de entrevistas para três episódios de um podcast

Antes de se lançar à edição dos três episódios do podcast especial que completa este trabalho, o subdiretor do Observador Ricardo Conceição teve de ouvir os 1.269 minutos das conversas que foram gravadas ao longo da investigação — poderiam até ser mais, mas foram vários os entrevistados que não aceitaram registos em áudio.

No fim, depois de passar mais de 21 horas de headphones, passou à fase seguinte: cortar os sons com potencial para usar nos podcasts. Ao todo, encheu mais de 74 páginas com as descrições de passagens de 17 entrevistas. Quando acabou, tinha 341 excertos.

Só lhe faltava mesmo gravar duas conversas, em separado, com as jornalistas Sónia Simões e Tânia Pereirinha, o que lhe tomou cerca de quatro horas mais — e começar a dar forma à história que queria contar.

O processo estendeu-se ao longo de duas semanas, em estúdio com os sonoplastas Diogo Casinha, Bernardo Almeida e Beatriz Martel Garcia com dias a começar às 9h e muitas vezes a prolongar-se para lá da meia-noite. Só para se ter uma ideia do trabalho que a edição implica: no domingo, dia 26 de dezembro, em oito horas, Ricardo Conceição e Diogo Casinha não conseguiram deixar prontos mais do que 15 minutos de áudio.

O resultado final deste esforço são cerca de duas horas e meia, a dividir por três episódios, em que os protagonistas revelam tudo aquilo por que passaram neste que foi um dos processos mais violentos e polémicos da história contemporânea de Portugal. Os episódios vão ser publicados a 1, 2 e 3 de janeiro de 2022.

As quatro partes da série “Os Anos de Chumbo das FP-25 de Abril”:

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