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Дети. Dietzi — o som da palavra russa escrita em cirílico assemelha-se a dietzi. Crianças. Era essa a palavra, escrita duas vezes, em letras colossais ao lado de um teatro na cidade de Mariupol, para poder ser lida do céu, em caso de bombardeamento. Crianças. Escrever de novo. Crianças. De nada serviu.
A 16 de março, o refúgio de civis, onde se encontravam centenas de mulheres com os seus filhos, foi bombardeado pelas forças russas. A 25 de março, nove dias depois, as autoridades ucranianas apontam para mais de 300 mortos no ataque ao Teatro Drama, em Mariupol — que não é o único alvo civil a ser atacado pelos russos. Os números ainda não foram verificados, mas as próprias agências internacionais têm noção de que as mortes por elas confirmadas na Ucrânia pecam por defeito e não por excesso.
Estratégia deliberada, como na Síria, ou erro humano? Se nem todos os analistas ousam falar em plano premeditado, não hesitam em acusar as tropas russas de fazer ataques indiscriminados, que constituem crimes de guerra. E há quem diga, como um analista russo ouvido pelo Observador, que este é o modo de fazer guerra no país de Vladimir Putin.
Dias antes do ataque — que o presidente ucraniano prevê que marcará a História da Humanidade —, Sting voltava a cantar Russians, a música lançada em plena Guerra Fria. A 5 de março, sussurrava a icónica frase “I hope the Russians love their children too”, na companhia de um violoncelo. [Espero que os russos também amem as suas crianças.]
No vídeo, partilhado no Instagram, o cantor britânico terminava a sua mensagem dizendo. “Todos nós amamos as nossas crianças. Parem a guerra.”
O ataque a alvos civis já não tem como ser desmentido. Resta perceber por que motivo insistem os russos nesta estratégia. Mariupol está em ruínas. Hospitais, maternidades, escolas, nada escapou às bombas russas. No caso do teatro, o ministro da Defesa da Ucrânia insultou o piloto, chamando-o de monstro.
“A palavra ‘crianças’ estava escrita em letras grandes à volta do teatro para que o piloto do avião percebesse que havia crianças lá dentro. Mesmo assim, esse monstro bombardeou o teatro”, disse Oleksy Reznikov. As estimativas do número de civis refugiados no teatro variam entre 800 e 1.300.
Olhar para os números — que estão longe de ser definitivos — ajuda a traçar um primeiro retrato da catástrofe humanitária. No total, morreram 1.232 civis, entre eles 112 crianças, desde a invasão da Ucrânia, a 24 de fevereiro.
A contagem é das Nações Unidas, através do seu Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH) e vai até à meia-noite de 30 de março. Além das mortes, há milhares de feridos, com diferentes níveis de gravidade: 1.935, dos quais 149 são crianças.
No total da soma, as Nações Unidas apontam para 3.167 baixas civis, mas admitindo que “os números reais são consideravelmente maiores”, refere o comunicado, já que há informações que ainda aguardam confirmação ou simplesmente não estão a chegar das zonas mais fustigadas pelo conflito. É o caso de Mariupol e Volnovakha (região de Donetsk), Izium (região de Kharkiv), Sievierodonetsk e Rubizhne (região de Luhansk) e Trostianets (região de Sumy).
Haverá inúmeras vítimas civis que só vão entrar nas estatísticas da ONU depois de serem corroboradas. O relatório do Gabinete do Procurador-Geral da Ucrânia, por exemplo, aponta que 148 crianças morreram e 232 ficaram feridas (até à mesma data).
A Amnistia Internacional, por seu lado, está a investigar uma lista de ataques perpetrados pelas forças russas. Alguns deles, como ataques a hospitais e escolas, ataques indiscriminados que mataram ou feriram civis, e o uso de munições de fragmentação podem constituir crimes de guerra. Desse rol, 11 já foram considerados como ataques indiscriminados a alvos civis. O que ainda não se pode dizer, segundo fonte da Amnistia, é que foram deliberados.
Doutrina secreta ou à vista de todos: os russos não se importam com os civis?
Há uma certa frieza na forma russa de fazer guerra, acreditam alguns dos especialistas ouvidos pelo Observador. “Até os ucranianos — tenho ouvido com atenção os seus testemunhos — ficaram surpreendidos por a Rússia não querer saber dos corpos dos seus soldados”, conta Oleg Ignatov, membro do think tank The Crisis Group. Essa frieza, que se traduz no desrespeito pelos direitos humanos e cívicos, é sentida dentro do próprio país, conta o analista que falou com o Observador, via videoconferência, a partir de Moscovo.
“Essa é a essência deste governo, do governo de Vladimir Putin. Sempre ignoraram os direitos cívicos da sociedade na Rússia e na Ucrânia. Nesta guerra, pensaram que apenas a demonstração de força militar seria suficiente para fazer cair o país, ignorando que a sociedade ucraniana seria contra uma invasão”, acrescenta Ignatov. Na sua opinião, essa seria a primeira ideia: chegar, mostrar e vencer. Quando não aconteceu, as tropas russas mudaram para a estratégia a que se assiste agora: bombardear ferozmente tudo e todos.
“Fizeram o mesmo na Síria, em Alepo, cercaram cidades sírias através dos bombardeamentos e usaram as mesmas táticas. É quase como se não quisessem saber de nenhum aspeto humanitário da guerra”, defende o analista russo que já trabalhou para o Rússia Unida, o partido de Putin. Baseado em Moscovo, não deverá ficar muito mais tempo na cidade, já que não é segura, diz, para quem como ele trabalha numa organização internacional que promove a paz e divulga informação sobre situações de conflito.
Questionado sobre se os ataques das tropas russas a alvos civis são intencionais, Oleg Ignatov não hesita em dizer que sim, e recorda o que aconteceu na Chechénia e na Síria, quando a ofensiva russa destruiu Grózni, Alepo, Palmira. Na Ucrânia, estão a seguir o mesmo guião, considera Ignatov. Do lado de Vladimir Putin, diz o analista russo, o contra-argumento será dizer que o exército dos EUA destruiu Raqqa, na Síria, na luta contra o ISIS.
Olya Oliker, também do Crisis Group, defendeu algo semelhante numa entrevista recente à rádio norte-americana NPR. Mas foi mais criteriosa na escolha de palavras. “A Rússia tem a reputação de não se importar muito se houver morte de civis, justas ou injustas”, disse, o que está ligado à forma como usam preferencialmente a artilharia, sendo habitual “haver muitas baixas civis” nas guerras em que os russos se envolvem.
“Penso que se pode argumentar, olhando para a forma como as tropas russas combatem, que pode ser parcialmente intencional, que podem estar a atacar alvos civis para tentar convencer o adversário a recuar. Mas há pessoas no Afeganistão ou no Iraque que dirão que foi intencional quando os americanos atingiram edifícios onde estavam civis”, argumenta a analista. Se for intencional, é um crime de guerra, “mas isso é muito difícil de provar, e por isso sou cuidadosa” com a escolha de palavras, sublinha Olya Oliker.
Apesar de tudo, acredita que há uma linha que separa a atuação de norte-americanos e russos. “Os EUA têm maior cuidado, seja devido à lei internacional seja devido aos seus conceitos de moral, de tentar evitar mortes de civis — embora nem sempre sejam bem sucedidos. Se olhar para a forma como os russos lutam, tradicionalmente, parece que as baixas civis não contam muito. Podemos culpar a falta de armas de precisão, mas uma guerra russa tende a causar muitas baixas civis”, argumenta Olya Oliker.
A cartilha russa na Ucrânia é fotocópia da usada na Síria
Mick Ryan é um militar australiano na reserva, frequente convidado nos canais do seu país. Foi no canal 7 News que deixou a sua opinião sobre a estratégia russa. “As tropas russas estão a rodear cidades, continuam a tentar cercar Kiev, e vemos bombardeamentos fortes das cidades, continuam a destruir infraestruturas, aeroportos, [alvos] militares e não militares. E estão a destruir cidades, como em Mariupol e no Donbass”, argumentou o major-general, a 15 de março.
“De certa forma, a Rússia está a usar a sua velha cartilha, que também usou na Chechénia e na Síria, e que é também um sinal de que estão desesperados. Esta tem sido uma campanha militar fracassada. E o pensamento dos russos é, na minha opinião, de que se aterrorizarem o suficiente os ucranianos eles vão ceder na mesa de negociações”, frisou o militar, lembrando os ataques a alvos civis.
Os corredores humanitários são outra semelhança entre os dois conflitos, recorda Olya Oliker. Foram várias as tentativas falhadas de retirar civis de cidades sitiadas porque o cessar fogo simplesmente não era cumprido. “Parece que há um acordo sobre onde os civis serão retirados e depois aparecem os russos. É reminiscente de coisas que vimos na Síria. De novo, ir a um tribunal tentar provar é difícil”, acrescenta a analista. Para ela — nascida na Rússia do tempo de Leonid Brejnev e que chegou criança aos EUA, como refugiada —, os russos também mudaram a sua atuação face aos civis desde o início da guerra.
“Vimos os russos a tentar evitar baixas civis nos primeiros dias da guerra e penso que isso tinha a ver com a expectativa de que a população ucraniana era uma população amigável. Quando percebes que as pessoas não estão contigo, podes deixar de ter tantos escrúpulos. No entanto, se pensas ocupar partes da Ucrânia que estás a bombardear, ocupar será muito mais difícil”, conclui.
O futuro não é otimista. “Espero ver mais e pior. Se olharmos para a Síria e para a Chechénia, vemos que as tropas russas podem fazer muito mais e pior estragos. A minha expectativa é de que provavelmente vão fazer [mais bombardeamentos]. E isso preocupa-me muito porque vai matar muitas pessoas e fazer muitos estragos”, termina Olya Oliker.
Encolher de ombros na Síria foi luz verde para a Ucrânia
“Na Síria, sentimos-nos abandonados pela comunidade internacional.” As palavras são do ativista Hamza al-Kateab, um médico sírio, refugiado em Londres. “Estou contente de que na Ucrânia estejam a receber respostas” do resto do mundo. Aos microfones da rádio CBC, Canadá, o médico, sempre com a voz embargada, falou de como a experiência síria e a ucraniana têm muitas semelhanças e muitas diferenças. Já na CNN, assina um texto de opinião onde conta como rapidamente percebeu que os hospitais eram os locais mais perigosos da Síria, já que eram alvos a abater pelos aviões russos. “Não haverá ética, nem boas maneiras, do seu inimigo russo”, escreveu Hamza al-Kateab.
Na rádio canadiana, não deixou de apontar o dedo aos líderes mundiais.“O falhanço em parar os crimes de guerra na Síria, ao longo de dez anos, foi uma luz verde para se cometer mais crimes de guerra e pisar mais linhas vermelhas”, defendeu o ativista no programa diário matinal The Current, que contou também com a presença de Yassin al-Haj Saleh, antigo preso político.
“Esta situação não estaria a acontecer na Ucrânia se o Governo russo tivesse sido condenado pelo que fez na Síria”, defende o escritor e ativista sírio. “Há continuidade entre as duas guerras.”
No mesmo programa, a analista Natasha Hall, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, converge com estas opiniões. Especialista em emergências humanitárias, lembra que nos conflitos da Geórgia, da Crimeia e da Síria “quase não houve reação”. No fundo, os russos “foram testando as águas” e perceberam que não havia consequências de maior.
“Na Síria, vimos pessoas a matar cães para comer, como já está a acontecer em Mariupol. Vimos hospitais a ser atacados. E quase não houve reação”, acrescenta a analista. “Estamos a ver as consequências agora.”
Apesar dos horrores da guerra, nem todos a condenam
A guerra na Ucrânia, a invasão não provocada de um Estado, os ataques a civis acordaram o Ocidente. Houve uma unidade sem precedentes na condenação e nas sanções impostas ao regime de Vladimir Putin. No entanto, se para muitos a guerra começou a 24 de fevereiro quando a Rússia passou a fronteira da Ucrânia, essa leitura não é universal. “A Ucrânia e a Rússia estão em guerra desde 2014. Não é uma guerra nova”, defende Jeremy Friedman.
“Não estivemos em paz no mundo desde a Guerra Fria. Primeiro foi a Jugoslávia, tivemos os EUA no Iraque e no Afeganistão, a Primavera Árabe, a Guerra Civil na Síria. Não estávamos numa era de paz e agora entramos numa era de guerra. É uma guerra diferente, numa localização diferente, e atraiu a atenção do mundo de forma diferente”, explicou ao Observador o investigador do Centro Davis para Estudos Russos e Euroasiáticos da Universidade de Harvard, onde é também professor.
A diferença não se prende à geografia — a guerra na Jugoslávia também foi na Europa e Sarajevo está mais perto de Berlim do que Kiev. “É diferente por ser a invasão não provocada de um Estado por outro. A maioria dos outros conflitos não cairia nessa definição. Essa é a diferença”, diz Jeremy Friedman.
Mesmo esse pormenor não é suficiente para ter o mundo inteiro a condenar a invasão militar russa. “Adorava dizer que há uma opinião global de que este tipo de guerra está datada e é impossível nos dias de hoje, mas houve 35 países da ONU que se abstiveram de votar a sua condenação, e incluem boa parte da população do mundo. A Índia e a China abstiveram-se. Não podemos dizer realisticamente que há um consenso global de que esta guerra deva parar”, termina o professor de Harvard.
“Matar pela fome.” Para além de residências, russos atacam infraestruturas agrícolas
No final, podemos ou não concluir que a Rússia tem como estratégia atingir deliberadamente alvos civis? Na União Europeia e nos Estados Unidos, acredita-se que sim.
Além do resto, “os russos estão também a atacar deliberadamente infraestruturas agrícolas”, o que pode ser visto como uma vontade “de criar fome como método de agressão”, disse o comissário europeu da Agricultura, a 23 de março. “É um método semelhante ao usado na década de 1930 pelos soviéticos na Ucrânia e no Cazaquistão, onde milhões de pessoas morreram à fome”, acrescentou o polaco Janusz Wojciechowski, em conferência de imprensa.
No mesmo dia, a administração de Joe Biden — o presidente dos EUA já tinha chamado criminoso de guerra a Putin — concluiu, oficialmente, que as forças russas estão a cometer crimes de guerra, com base nos inúmeros relatos que têm analisado. “O ataque deliberado a civis é um crime de guerra”, anunciou o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken.
Joe Biden chama a Vladimir Putin “criminoso de guerra”. Kremlin diz ser “inaceitável”
Antes disso, a 21 de março, foi o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, a dizer que Vladimir Putin deve responder pelos “crimes de guerra” que está a praticar em “larga escala” na Ucrânia.
Na Síria, ataques a civis foram estratégia de guerra. Na Ucrânia, Amnistia ainda não tem provas
Ataques indiscriminados contra civis? Sobre isso, a Amnistia Internacional não tem dúvidas. Farão parte de uma estratégia de guerra? Ainda faltam provas para poder afirmá-lo.
“O que estamos a ver agora tem algumas semelhanças com outras situações passadas de emergências humanitárias causadas pela Rússia, sendo a mais flagrante a da Síria, que ainda se desenrola”, explica ao Observador Ana Farias, coordenadora de campanhas da Amnistia Internacional — Portugal.
Além dos ataques a maternidades, jardins de infância, escolas e hospitais, está também em causa o tipo de armas usadas, como as bombas de fragmentação, que são proibidas pelo direito humanitário internacional.
“A Amnistia já concluiu que num total de 11 investigações todas se trataram de ataques indiscriminados. Isto na Síria também acontecia e, em 2016, foi possível provar que os ataques a hospitais eram uma estratégia de guerra”, explica Ana Farias. Apesar de haver semelhanças, não se pode dizer que os conflitos sejam exatamente iguais e, no caso da Ucrânia, “ainda não conseguimos dizer que os ataques a civis foram deliberados, foram sistematicamente planeados, que aconteceram de propósito”, acrescenta a ativista da Amnistia Internacional.
A diferença prova-se com o que se encontra no terreno. Ataques indiscriminados são aqueles que não atingem alvos militares nem têm alvos militares por perto — “temos relatos de pessoas que foram bombardeadas enquanto estavam numa fila para comprar pão” — e constituem potenciais crimes de guerra. Para se considerar que foram deliberados, tem de ser possível provar que há um padrão.
“Na Síria, havia uma lista das Nações Unidas com edifícios que estavam com proteção especial. Essa lista era conhecida. Se aqueles edifícios perdem proteção e vão ser atacados, tem de ser emitido um aviso para que as pessoas possam proteger-se”, explica Ana Farias.
No caso da Ucrânia — e porque as regras internas da organização, em 2005, mudaram, por força da invasão militar do Iraque —, pela primeira vez na sua história, a Amnistia Internacional opôs-se à invasão de um país por outro.
“Quando houve a invasão do Iraque, havia um sentimento de grande impotência na Amnistia Internacional. Hoje, podemos tomar partido quando há uma clara violação da Carta das Nações Unidas, quando há a invasão de um país soberano sobre outro soberano sem o seu consentimento”, explica Ana Farias. Essa é a diferença de fundo entre a Síria e a Ucrânia, não em termos de emergência humanitária, mas antes na forma como o conflito começou.
“Foi a Síria que pediu ajuda à Rússia e ela entrou no país com autorização. A Ucrânia é invadida militarmente sem autorização. Não temos nenhuma outra situação destas atualmente, a mais semelhante foi a do Iraque. Nessa altura, as regras internas não nos permitiam tomar partido, mas pedimos o fim imediato da invasão e o respeito pelo direito humanitário internacional.”