A evacuação de Mariupol falhou, este domingo, pela segunda vez consecutiva, depois de no sábado bombardeamentos russos terem impedido a retirada de civis desta cidade portuária na Ucrânia.

A notícia foi confirmada esta tarde pela Cruz Vermelha, citada pelo jornal britânico The Guardian, que apontou o dedo à falta de “acordo” entre as duas fações do conflito.

A segunda tentativa de dar início à retirada de cerca de 200 mil pessoas da cidade foi cancelada. As tentativas fracassadas de ontem e de hoje demonstram a ausência de um acordo detalhado e funcional entre ambas as partes do conflito”, lê-se num comunicado do Comité Internacional da Cruz Vermelha.

Segundo a organização, citada pela BBC, a Rússia e a Ucrânia não acordaram questões essenciais para a saída dos civis, nomeadamente as “horas específicas, localizações e as rotas de evacuação“, “quem seria retirado” e se “ajuda” humanitária poderia entrar na cidade em vez de as rotas servirem apenas para as pessoas que quisessem sair.

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Fonte municipal da cidade, à semelhança do que aconteceu este sábado, adiantou que a evacuação não foi possível devido ao bombardeio russo: “É extremamente perigoso levar as pessoas nestas condições”, adiantou a autarquia, num comunicado divulgado pela agência de notícias Reuters.

Segundo o conselheiro do Ministério do Interior ucraniano, citado pela agência de notícias russa Interfax, as “forças de ocupação” não garantiram condições de segurança, o que resultou na morte de civis.

“Não pode haver corredores de segurança”, porque só a “mente doente dos russos é que decide quando começa a disparar e sobre quem”, afirmou Anton Gerashchenko, na rede social Telegram.

A situação de ontem [sábado] repetiu-se hoje e os militantes abriram fogo sem cumprir um cessar-fogo humanitário.”

Este domingo, as autoridades de segurança ucranianas informaram os civis de Mariupol de que não era seguro usar os corredores humanitários e um responsável do Ministério do Interior ucraniano apelou a que os moradores se mantivessem nos abrigos até que se pudesse garantir o cessar-fogo, lê-se na Interfax.

Do lado russo, um separatista pró-russo da região de Donestsk acusou a Ucrânia de não respeitar o cessar-fogo.

No entanto, houve quem conseguisse sair. Um responsável da região separatista de Donetsk adiantou que apenas 300 pessoas conseguiram sair de Mariupol este domingo, referiu a Interfax. Já de Volnovakha, uma cidade a 65 quilómetros de Mariupol e que também iria ser evacuada, conseguiram sair 400 pessoas, avançaram as autoridades ucranianas.

O que estava planeado para este domingo?

A retirada de cerca de 200 mil civis da cidade portuária ucraniana, localizada junto ao Mar de Azov, estava marcada para esta manhã, depois de uma tentativa falhada na véspera — com atribuições de culpa de ambas as partes do conflito.

Bombardeamentos impediram retirada de 200 mil civis: o que aconteceu em Mariupol?

O município de Mariupol e o governador de Donetsk, Pavlo Kyrylenko, avançaram que a evacuação iria acontecer entre as 12h e as 21h locais (10h e 19h em Lisboa). Também este domingo os separatistas adiantaram que os corredores humanitários de Mariupol e Volnovakha, em direção a Zaporíjia, voltariam a ser abertos.

Pela manhã, os corredores humanitários serão abertos novamente tanto em Mariupol quanto em Volnovakha”, disse o vice-chefe da Milícia Popular da República Popular de Donetsk, citado pela TASS.

“Esperamos que os comandantes ucranianos encarregados de defender as localidades povoadas comandem os seus subordinados para desbloquear as saídas para que os civis possam deixar esses locais”, referiu Eduard Basurin, segundo a agência estatal de notícias russa.

Mas se no sábado estavam disponíveis 50 autocarros para retirarem as pessoas que quisessem sair de Mariupol, essas viaturas já não estavam todas disponíveis para a segunda tentativa de evacuação, relatou o autarca, numa entrevista citada pela CNN.

Tínhamos 50 autocarros cheios de combustível e estávamos apenas à espera de um cessar-fogo para que as estradas abrissem e pudéssemos tirar as pessoas daqui. Mas agora já só tínhamos 30 autocarros. Escondemos esses autocarros noutro lugar, longe dos bombardeamentos, e perdemos mais 10 lá. Portanto, já só temos 20”, disse Vadym Boichenko.

Segundo a Cruz Vermelha, as equipas no terreno “começaram a abrir” o corredor humano que sai de Mariupol em direção a Zaporíjia “antes de as hostilidades recomeçarem”. A organização disse que irá manter as equipas no terreno, mas que, apesar de estar a facilitar o diálogo entre as duas parte do conflito, não pode “garantir o cessar-fogo” nem pode garantir a sua “implementação”.

“Estamos muito cansados e não vemos maneira de sair disto”: os relatos de quem está em Mariupol

Maxim, de 27 anos, estava num apartamento com os avós quando, este sábado, tentou sair de Mariupol. Fez quatro malas com comida e roupas quentes que carregou até ao carro, juntamente com os idosos. Quando se preparava para arrancar, começaram novamente os bombardeamentos. Voltaram para a casa, mas desta vez não foram apenas três pessoas que subiram os seis lances de escadas até ao apartamento.

“Agora somos quase 20”, contou o programador informático à BBC, por telefone. Acabaram por acolher pessoas de outras partes da cidade, que se tinham deslocado até ao centro da cidade portuária, na esperança de poderem entrar num corredor humanitária. “A pessoa mais velha é uma mulher de 70 e a mais nova é uma criança. Temos também dois gatos, um papagaio e um cão.”

Vadym Boichenko, autarca de Mariupol, disse este sábado que centenas de crianças, mulheres e idosos foram atacados quando se preparavam para a retirada, que acabou por ser cancelada.

Esses civis que se juntaram à família de Maxim descrevem um cenário de horror da parte de Mariupol de onde fugiram: “Todas as casas estão a arder e não há ninguém para apagar os fogos. Há vários corpos nas ruas e ninguém para os transportar“, relatou o jovem ucraniano.

Um relato em linha com o que é dito pelo autarca, que fala em “milhares” de vítimas mortais. “Mas este [sábado] é o sexto dia seguido de bombardeamentos aéreos e não conseguimos sair para recuperar os mortos. Eles dizem que querem salvar os ucranianos de serem mortos pela Ucrânia, mas são eles a fazer a matança”, referiu numa entrevista este sábado.

Boichenko, de 44 anos, tem dado a cara para alertar o mundo do que se tem passado na sua cidade. Este engenheiro chegou à autarquia em 2015 e, até há poucas semanas, estava a fazer planos para atrair investimento estrangeiros para Mariupol, mas tudo isso desapareceu com a invasão russa à Ucrânia.

Sinto que estão a arrancar o meu coração e a minha alma”, disse à Reuters.

Os seus dias são agora passados numa cave. É a partir de lá, e através de um telefone, que conta o que está a viver em Mariupol. Da família pouco sabe, uma vez que grande parte das pessoas não tem onde carregar os telemóveis. Apesar de ter o filho longe numa frente de combate, a mãe, duas avós e o irmão estão abrigados numa cave na cidade. “Nem sequer consigo ir ver se estão vivos, porque os bombardeamentos não param.”

Um vídeo do New Yort Times, onde se veem filmagens de Mariupol ao longo da última semana, mostra a destruição desta cidade: “Os bombardeamentos são constantes e aleatórios. As pessoas vão para a rua fazer fogos para se aquecerem e quando estão na rua, a qualquer momento, um míssil pode aterrar ao lado”, disse Diana Berg, uma morada da cidade, ao jornal norte-americano.

A cidade de Mariupol deixou de existir, pelo menos a cidade que um dia conhecemos”, acrescenta Boichenko.

Os relatos de momentos de profundo desespero vividos pelos habitantes de Mariupol têm-se multiplicado nos últimos dias. Os jornalistas da Associated Press estavam num hospital quando um casal entrou disparado pela unidade dentro com o filho de 18 meses nos braços, envolvido num cobertor ensanguentado. Os médicos tiveram de usar as lanternas dos seus telemóveis para observar o bebé, mas nada conseguiram fazer por Kirill, que não sobreviveu aos ferimentos que terão sido causados por um bombardeamento russos.

Dias antes tinha sido uma menina de seis anos, que chegou de ambulância ao hospital com a mãe. “Mostre isto a Putin”, disse o médico que tentou salvar a criança diretamente para a câmara de vídeo do jornalista.

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Este domingo é já o quinto dia sem água, eletricidade e saneamento na cidade e a casa dos avós de Maxim não é exceção. Sem água engarrafada, usam a água que armazenaram na banheira e, uma vez que o gás ainda funciona, fervem-na para conseguirem beber.

“Querem isolar-nos do corredor humanitário e encerrar as entregas de bens essenciais, produtos médicos e até comida de bebé”, disse ainda Vadym Boichenko. “O objetivo deles é sufocar a cidade e colocá-la sob uma pressão insuportável.”

Maxim disse ainda à BBC que, no sábado, a polícia “abriu as lojas” para que as pessoas pudessem levar mantimentos: “[A polícia] disse às pessoas para levarem tudo, porque as pessoas aqui não têm o que comer e o que beber. Os nossos vizinhos conseguiram trazer alguns doces, peixe e bebidas gasosas”, explica o jovem, que diz estar sem esperança.

“A partir de agora, fazemos o que temos de fazer para sobreviver um dia de cada vez e para os nossos vizinhos sobreviveram. Estamos muito cansados e não vemos maneira de sair disto.”