Inflação a disparar. Poder de compra a diminuir. Uma maioria absoluta que tornou a geringonça uma lembrança do passado. Uma esquerda – sobretudo o PCP – a sentir-se “sob ataque” e diminuída na sua capacidade de influenciar e negociar, pelo menos quando o palco é o Parlamento. Quatro meses depois das eleições que deixaram o PS de mãos livres, está a formar-se uma espécie de tempestade perfeita que encerra definitivamente o capítulo da harmonia à esquerda – e que vai devolver partidos e sindicatos às ruas.
Os sinais estão dados e à esquerda já se vai dizendo que a “paz social” terá os dias contados, sobretudo a partir do verão, sobretudo para combater uma quebra de poder de compra só comparável ao tempo da troika.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre o regresso à contestação nas ruas.
Mesmo com a esquerda a recusar a ideia de ter estado parada ou adormecida, a nível reivindicativo, durante o período da geringonça, há, entre os protagonistas ouvidos pelo Observador, quem faça a distinção: se antes as greves, paralisações e protestos serviam para exigir (e em alguns casos conseguir) respostas concretas do Governo, agora, com cada um por si, as manifestações de grande porte devem regressar.
No PS, a aposta é na desmobilização: com a esquerda diminuída e a dificuldade do PCP em explicar a sua posição em temas como a guerra na Ucrânia, os socialistas preocupam-se com os efeitos da inflação, mas apostam as suas fichas numa esquerda demasiado enfraquecida para agarrar o descontentamento social e fazer dele sua bandeira, reorganizando o discurso para os quatro anos de maioria absoluta. A prova estará, nos próximos tempos, nas ruas.
Protestos mudaram desde a geringonça (e vão aumentar)
No 25 de Abril e no 1º de Maio, o PCP avisou: os motores estariam apenas a aquecer para lançar os maiores protestos nas ruas. A 10 de maio, a CGTP e a Confederação Nacional de Reformados, Pensionistas e Idosos convocaram protestos para Lisboa, Porto, Évora, Faro e Coimbra contra o aumento de custo de vida e por aumento de reformas e salários.
A CP entrou em greve esta semana, o Metro tem duas paralisações marcadas (uma delas já para quarta-feira). Para 20 de maio está marcada uma concentração de trabalhadores dos sindicatos da Administração Pública, acompanhada de greves de 24 horas em vários setores e protestos que incluem de enfermeiros e professores.
Quando a análise incide sobre os pré-avisos de greve registados pela Direção-Geral do Emprego e Relações do Trabalho, há algumas tendências a registar, descontando o efeito da pandemia. Depois do maior pico da última década, com 1.534 pré-avisos em 2013, em plena crise, o número baixou para mínimos — 488 — no primeiro ano da geringonça e voltou a subir até um novo máximo, 1.077, no ano final dos acordos à esquerda (2019).
Com a pandemia, caiu — mas em 2021 voltou a subir (872) e em janeiro e fevereiro deste ano (os dados mais recentes) superava em 40% o período homólogo do ano passado (embora, mais uma vez, aí possa entrar o fator pandemia).
Dentro do PCP, garante-se que o movimento sindical, assim como a influência do partido sobre ele, não esteve adormecido durante a geringonça. No entanto, assume-se que a “luta” acontecia, nessa altura, de uma forma mais low-profile, na intervenção em locais de trabalho, e não tanto a nível visível para o público. Agora, o partido regista que começa a ser necessário trazer a luta para o plano nacional, para junto das câmaras de televisão e de formas de pressão mais visíveis e audíveis – e incómodas.
E mesmo que os protestos não tenham pura e simplesmente desaparecido durante a geringonça, há um reconhecimento no partido de que essa legislatura foi de uma devolução de direitos “em toda a linha”, sem cortes em salários ou pensões, com baixa de propinas e reforço das verbas para Saúde – pelo que não se justificaria a insistência nas manifestações nacionais.
Outro ponto enfatizado dentro do partido desenha uma nuance entre os protestos de então – nos tempos da geringonça – e os de agora: é que nessa fase havia um propósito diferente, uma vez que a esquerda à esquerda do PS tinha interlocutores e possibilidade de negociar.
Logo, os protestos eram usados como forma de puxar pelo Governo e de reivindicar medidas que já se sabia que poderiam ter resposta, mesmo que mais recuada do que os cartazes e os gritos na rua pediam. Agora, a ideia é mesmo voltar ao protesto puro e duro – há pouco ou nada a ganhar na negociação, insiste-se na rua.
“Não se luta contra o que se reivindicou”
Em conversa com o Observador, Arménio Carlos, o antigo secretário-geral da CGTP cujo mandato incluiu os tempos da crise e, depois, da recuperação e acordos à esquerda (2012-2020), não mostra dúvidas: “Estamos perante o maior ataque ao poder de compra, pensionistas e famílias desde que a troika passou por Portugal”. Por isso mesmo, acredita que a “prioridade dos trabalhadores” deve ser “intervir para defender o poder de compra” — e o nível de mobilização tem de aumentar, sobretudo a partir dos locais de trabalho.
Para o antigo dirigente sindical, com uma maioria absoluta que é “uma maioria de mãos livres” e não tenta encontrar “entendimentos mínimos”, é óbvio que a situação mudou. “É evidente que a partir do entendimento entre o Governo e a esquerda se verificou a reposição de direitos. E é evidente que não se ia lutar contra o que se tinha lutado para reivindicar. Foi um sinal positivo”, diz, sublinhando que a CGTP insistiu sempre que os acordos à esquerda eram “entendimentos mínimos” que deviam depois alargar-se à revisão da legislação laboral, para retirar as normas da troika que constavam então (e continuam a constar) da lei.
No Bloco de Esquerda, que também tem influência junto do movimento sindical – embora menos peso do que o PCP – a leitura é semelhante. A cúpula bloquista acredita que “os motores vão aquecer” nos protestos sociais assim que a população começar a sentir os efeitos da inflação no bolso – inflação que já atingiu os 7,2% em abril e que, segundo a mais recente previsão do FMI, deverá fixar-se nos 6% este ano, sem que os aumentos salariais acompanhem essa percentagem.
“As pessoas vão começar a perceber que é uma situação impossível, vai começar a haver manifestações e luta”, prevê um dirigiente bloquista, frisando o que o Bloco tem lembrado no Parlamento: se não houver um aumento de salários que acompanhe a inflação, mesmo quando esta parar de crescer – o Governo tem insistido uma e outra vez que se trata apenas de um fenómeno transitório – os preços estabelecidos terão ficado mais altos, o que se traduzirá numa quebra de poder de compra permanente.
A solução do Bloco passa por “fazer esta “pedagogia” e intervir nos conflitos sociais e protestos na rua – e assim tentar conquistar para si o eleitorado descontente, que procura respostas na oposição ao Governo absoluto de Costa.
Os partidos têm, de resto, mostrado vontade de adotar esse discurso, num tom que continua a ser de justificação em relação ao chumbo do Orçamento passado – uma espécie de “eu bem te avisei” dirigido também ao eleitorado.
No 1º de Maio, o primeiro de regresso às ruas após as reivindicações pandémicas, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins falaram praticamente em uníssono, usando os mesmos termos para dizer que a inflação já está a “comer” os salários e até os aumentos nas pensões que entrarão em vigor quando o Orçamento for aprovado.
Já Isabel Camarinha, que depois das eleições tinha defendido que a “prioridade” da Intersindical passaria por “intensificar a ação reivindicativa”, sobretudo contra uma “resistência” do PS, agora “elevada” com a maioria absoluta, a resolver os problemas dos trabalhadores. No 1º de Maio, concretizou o anúncio numa série de propostas específicas contra as “patranhas” do Governo, do aumento de salário de todos os trabalhadores em 90 euros ao salário à subida extraordinária de todas as pensões em 20 euros.
Em dificuldades, PCP volta às massas
Mas a motivação para voltar às ruas não se resume ao contexto político e às dificuldades económicas que a guerra na Ucrânia está a provocar. Basta ler a edição do Jornal do Avante! de 5 de maio, onde se inclui um artigo do dirigente com assento na Comissão Política do Comité Central, João Frazão, sobre a importância da “ligação às massas populares”, na história do partido – e no momento atual também.
Comparando as dificuldades que o PCP atravessa às que atravessou na “longa noite fascista”, o dirigente aponta “o caminho” e o “grande desafio” que o partido tem pela frente: “Sabendo que é na luta que se projetam novas energias e se forjam os melhores quadros, a promoção de uma jornada de luta, de uma greve, ou de uma outra forma mais simples de acção reivindicativa, era sempre o momento em que a organização do partido se reforçava e retomava as suas tarefas”.
Por isso, com os problemas dos trabalhadores “a agudizar-se a cada dia que passa”, Frazão explica: o papel do partido é agora “mobilizar as populações” para o combate à especulação, “organizar” os trabalhadores para o aumento dos salários, “trazer para a ação” reformados e pensionistas, e por aí fora. “Confiar na energia criadora das massas, na sua força, e no que ela vai trazer de positivo para o reforço do partido, com mais militantes e com futuros quadros e dirigentes”.
No PCP, há quem note a importância da “ligação às massas” no difícil momento atual do partido: na grelha de análise dos comunistas, há um “ataque, silenciamento, manipulação” das suas mensagens políticas. E não é só relativamente às posições que assume sobre a guerra na Ucrânia: também pelas críticas que ouviu na fase da pandemia ou quando chumbou o último Orçamento do Estado. Por isso, torna-se “fundamental” lembrar que a base do PCP é mesmo a ligação às massas e aos trabalhadores – e tentar alargar essa própria base, eleitoralmente muito reduzida nos últimos anos.
Sindicatos menos representativos
As dificuldades, no entanto, são evidentes. Fora o quadro político, Arménio Carlos fala numa “negação” do direito ao diálogo social e da entrada dos sindicatos em muitas empresas, seja para falar com os patrões ou os próprios trabalhadores. Admitindo a redução da representatividade dos sindicatos – “resulta globalmente de alterações no tecido produtivo, formas de trabalho diferentes, mas também da precariedade e do assédio” – culpa, ainda assim, uma “ofensiva organizada e surda no terreno” que deixa “a liberdade sindical em causa”.
Até porque, frisa, a influência nos locais de trabalho é mesmo a maior prioridade – a que permite depois à expressão de rua “dar-lhe visibilidade e aumentar a pressão sobre o Governo”, numa “sintonia de alertas e denúncias” com os problemas reais vividos pelos trabalhadores.
José Abrãao está no meio termo: a rua está lá para ser usada, caso o governo não dialogue. É ao mesmo tempo secretário secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública (SINTAP), da Federação dos Sindicatos da Administração Pública (FESAP) e dirigente nacional do PS e admite que pode estar “criado um ambiente de possível contestação”.
“Estamos na expectativa, depois das audições que tivemos com o Governo, de voltarmos à mesa de negociações depois do Orçamento de 2022 aprovado”. “Se não acontecer seremos nós que vamos para a luta com protesto e indignação”, promete.
A rua é uma arma de persuasão que o sindicalista e socialista pretende usar junto do Governo, ainda que, por agora, só nesta medida. Abrãao diz ao Observador que com “os níveis de inflação estão muito significativos, mas os resultados económicos muito bons… em relação ao trabalho e aos trabalhadores é que não se sente”.
“Os principais problemas dos trabalhadores não se resolveram“, afirma o socialista que aponta como exemplos o Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da Administração Pública, as carreiras da função pública, a perda salarial dos funcionários e ainda a questão dos vínculos nos hospitais.
“As pessoas não estão a olhar para as projeções”, garante o sindicalistas que avisa que se a inflação for a prevista para o final deste ano, espera que o Governo “aumente os salários na mesma grandeza ou as pessoas não se vão calar”. “É preciso que se cumpra o diálogo”, remata.
PS atento mas a confiar na “fragilidade” que PCP trouxe ao movimento sindical
A pressão do aumentos dos preços dos bens essenciais sobre os salários cresce e o PS também a sente. Foi, aliás, isso mesmo que alguns militantes partilharam com o ministro das Finanças na semana passada, numa das sessões de apresentação do Orçamento para 2022 ao PS.
Em Lisboa, Fernando Medina ouviu alguns militantes preocupados com a contestação social que possa advir desta pressão sobre quem trabalha e sobre os pensionistas. O ministro respondeu com a cautela necessária, de ” passos seguros na proteção do país para um tempo que pode vir a ser mais exigente do que o que hoje vivemos”.
Uma subida intercalar dos salários não está, por isso, nas contas do Governo para este Orçamento. Quanto ao próximo se verá, embora ecoem ainda fortes as palavras de António Costa sobre a recusa em ir por aí e promover uma espiral inflacionária.
Mas o primeiro-ministro também saberá que, com uma maioria absoluta, longe vai aquela sua frase de 2011, altura em que a troika entrava pelo país e o PS passava a oposição, em que colocava o seu partido como o único que “consegue, não só no terreno parlamentar mas no terreno social, abrir caminhos, por todos a trabalhar, com os sindicatos, com as associações patronais”.
O contexto social é distante do daqueles tempos e também não é o mesmo da era da “geringonça” em que a “CGTP esteve mais controlável e acabou por refrear o ímpeto de protesto”, comenta José Abrãao. Nem tanto à rua, nem tanto à paz social dos tempos a solução governativa de esquerda. E há um elemento em que os vários socialistas estão a apostar como travão a uma escalada da contestação nas ruas: a guerra na Ucrânia e os efeitos que ela trouxe para a imagem comunista.
“O PCP está numa situação muito frágil“, diz um socialista ao Observador. “A guerra também teve reflexo no movimento sindical”, acrescenta outro. “O PCP está condicionado“, diz, na mesma linha, um dirigente nacional. “Uma coisa é esta posição sobre a invasão da Ucrânia dita entre os convertidos [do partido], outra é dizer num plenário de uma empresa”, sintetiza um alto quadro do PS.
Os socialistas estão, assim, apostados nas dificuldades que a posição política isolada do PCP nesta fase possa trazer para a mobilização sindical — muitos apontam mesmo a fraca mobilização do último 1º de maio como exemplo. José Abrãao é o único socialista, dos ouvidos pelo Observador, que não alinha por este diapasão e acredita que “o movimento sindical sai fragilizado, não com essa situação mas antes com uma solução governativa que reduziu a negociação coletiva e o diálogo social a meras audições” nos últimos anos.
Nos restantes, há quem admita que “o Governo está sem ação política” mas que “isso é tapado pela inação total pela parte dos sindicatos”. Ou seja, conclui, a situação nacional até pode provocar contestação social, mas isso só não acontece “por demérito dos sindicatos e incapacidade do PCP” e “não por mérito do Governo”, atira um dirigente socialista.
Exemplos nesta “inação”? “O 1º de maio sem discurso”, diz o mesmo socialista. “E sem liderança, nem capacidade de mobilização”, acrescenta, sobre a CGTP, outro alto dirigente que não estranha uma maior atividade sindical nesta altura.
“Estão metidos num buraco tão grande que têm de ter alguma atividade.” E aqui, outro dirigente nacional acrescenta que a situação do PCP justifica a situação mas também a “falta de hábito dos movimentos sindicais que têm maior dificuldade de mobilizar”, a “falta de oposição” ao Governo e ainda “o hiato eleitoral que se vai prolongar até ao final do ano”, diz apontando o tempo que este novo elenco governativo ainda precisa para assentar.
“Para já, é cedo” temer a contestação, acredita. Mas um deputado do PS admite já sentir, nas estruturas locais, “preocupação com a agitação social”. E avisa, na mesma linha de alguns militantes do PS na tal sessão em que participou Medina, que “se a esquerda e os sindicatos começarem a sentir pressão da rua para mostrar pulso, isso vai acontecer“.
Até porque a contestação, como mostraram alguns movimentos de protesto nascidos no tempo da troika (o “Que se lixe a troika”, por exemplo), não nasce apenas de sindicatos. Um alto dirigente diz mesmo ao Observador que “é mais provável a contestação por via de fenómenos de natureza inorgânica do que por capacidade de mobilização das tropas do PCP, que são as da CGTP”.
A situação do país determinará o que vier e, nesta fase, os socialistas confiam não só nesta imagem de um PCP ferido, como também noutros três factores: o entendimento geral de que a situação tem origem externa (um argumento que foi usado pelo PS na era troika para justificar a bancarrota) e que desculpa o Governo; o impacto suave da crise em Portugal; a confiança na retoma do Turismo, uma alavanca para a economia nacional.
“Portugal está a aguentar mais ou menos bem e com os níveis de emprego e de consumo como os que temos, é muito difícil fazer pegar o discurso catastrofista que é o que eles [sindicatos e esquerda] sabem fazer”, comenta um alto dirigente. Mas no PS nem tudo são rosas e também há quem comente que é preciso ter cautela com a aposta no turismo, já que a retoma da atividade pode não ter o mesmo retorno de outros tempos. Afinal a crise chega a todos (e aos países de origem também), o que pode mudar o perfil de quem chega.
“PS mais interessado na fragilização da esquerda do que da extrema-direita”
Confrontado com a influência que o momento difícil vivido pelo PCP pode ter na eficácia do movimento sindical, Arménio Carlos relativiza: “Não vamos para locais de trabalho falar em questões partidárias, só em questões concretas”, explica.
Ainda assim, sem conseguir entrar nas empresas e sem diálogo com o Governo, o que resta à esquerda e ao movimento sindical? É a pergunta que o PS faz, com ironia, e que PCP e sindicatos devolvem com irritação. O antigo líder sindical arrisca uma resposta, com a mira posta no PS e no Governo: “Pode haver um descontentamento e pode tornar-se anárquico. Temos de alertar os trabalhadores para não se deixarem cair em cantos de sereias”.
Ou seja, se a ideia é cavalgar o descontentamento de quem não vê o salário chegar até ao fim do mês e fazer desse o eixo principal do discurso à esquerda para combater a maioria absoluta, há outro risco que, sem acordos ou negociações com o Governo, é real.
“Se o Governo está preocupado com eventuais deslocações de trabalhadores para a extrema-direita, a melhor forma é responder já aos problemas para que não sejam aliciados e empurrados para ela. Mas o PS está mais interessado na fragilização da esquerda do que na resposta à extrema-direita…”. O aviso fica feito. E a luta continua – em condições melhores, esperam esquerda e sindicatos, do que PS e Governo estão a prever.