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MIGUEL A. LOPES/LUSA

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Eucalipto que provocou incêndio de Monchique foi uma “aparição". Como um juiz ilibou a EDP e deixou o caso sem culpados

Decisão é definitiva: as dúvidas sobre a forma como foi investigado o incêndio de 2018, que a PJ dizia ter começado num eucalipto, ilibaram a EDP e um funcionário. Lesados querem processo cível.

Assim que as chamas deflagraram em Perna Seca, Taipas, em Monchique, uma equipa de militares da GNR deslocou-se ao local para perceber o que tinha causado o fogo que lavraria ao longo de oito dias naquele agosto de 2018. No auto que assinaram, já de regresso ao posto, os guardas da Equipa da Proteção da Natureza afirmavam não terem encontrado “qualquer meio de ignição” no terreno. Horas depois seria a PJ a deslocar-se à zona e a fazer constar mais ou menos o mesmo num relatório: “Não se vislumbra que qualquer causa natural ou local possa estar na origem da ignição, antevendo-se desta forma uma ignição por ação humana”, escreviam. Conclusões muito diferentes daquelas que uma nova equipa da PJ verteu num novo documento — que se referia a uma inspeção feita ao local do fogo seis dias depois do seu início — e onde revelava que, afinal, o fogo tinha começado na copa de um eucalipto que tocou num cabo de eletricidade da EDP.

Na acusação proferida pelo Ministério Público, seria este o único relatório policial valorizado para acusar a EDP e o seu responsável pela Unidade de Portimão de um crime de incêndio florestal, agravado na forma negligente, desvalorizando o que os primeiros polícias que foram ao local viram. Uma tese contestada pelo juiz de instrução, que acabou por arrasar toda a investigação, decidindo não levar os arguidos a julgamento. Mas à qual o advogado que representa mais de uma centena de lesados se vai agarrar para conseguir uma indemnização através de um processo cível.

“Causa-nos estranheza e perplexidade que as autoridades que primeiramente se deslocaram ao local no dia 3 de agosto de 2018, com o fito de descortinar as causas do malogrado incêndio (…), não tenham identificado qualquer proximidade de material vegetal ao cabo condutor de eletricidade no vão P5-P6 e , posteriormente, surja a “aparição” de um eucalipto com ramos a tocar numa secção do cabo condutor, o qual veio a ser eleito como causa do devastador incêndio que ali teve lugar no verão de 2018”, lê-se na decisão que agora transitou em julgado — ou seja, tornou-se definitiva — e a que o Observador teve acesso. O processo acabou encerrado sem culpas do ponto de vista penal, naquele que foi o maior incêndio de 2018.

O terceiro dia do incêndio em Arena, Silves

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O que o fogo levou

As chamas que deflagraram a 3 de agosto de 2018 e que lavraram ao longo de oito dias consumiram 27 mil hectares de floresta e terrenos agrícolas, deixaram marcas no corpo de 41 vítimas, que sofreram ferimentos, levaram a vida de 1.677 animais e deixaram cerca de mil lesados, muitos dos quais tentaram uma indemnização em tribunal.

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Tudo começou numa propriedade privada, num vale profundo entre o sítio das Taipas e o sítio da Portela, a norte da serra de Monchique, mas quatro anos depois fica por provar qual foi, exatamente, a origem das chamas. Segundo a acusação, já por volta do início de 2017, alguns ramos de eucalipto (situado no vão P5-P6, da linha FR 15-91-4-4-1-3 da linha principal FR 15-91 Perna Seca) estavam em contacto com uma secção do cabo de transporte de energia elétrica de média tensão. “Esse contacto, reiterado no tempo, provocou a desidratação e a consequente perda de propriedade do vegetal da copa dessa árvore”, diz o MP.

Assim, mais de um ano depois, pelas 13h32 de 3 de agosto de 2018, “na sequência de mais um contacto resultou a ignição de ramos, que inflamados ou incandescentes se precipitaram para o solo, propagando o fogo pelo material combustível existente ao nível do solo. A copa do eucalipto contactava com o cabo elétrico a uma altura de 7,60 metros”, descreve o Ministério Público.

"Esse contacto, reiterado no tempo, provocou a desidratação e a consequente perda de propriedade do vegetal da copa dessa árvore"
Acusação do Ministério Público

Uma explicação que não convenceu o juiz de instrução Fábio Gulpilhares. Primeiro, porque o eucalipto que em janeiro de 2017 tocava no cabo de eletricidade teria uma dimensão diferente um ano e meio depois, uma informação que deveria teria que ser devidamente explicada pelo Ministério Público. Depois, porque os primeiros autos elaborados pelas autoridades que foram ao local não referem qualquer eucalipto nem sequer explicam que a falta de visibilidade poderia ser uma causa que os impedisse de determinar a origem do fogo.

Dois relatórios que nada apontam contra um que encontrou o local de ignição

Na ficha de determinação das causas de incêndio elaborada pela Equipa de Proteção da Natureza e Ambiente (EPNA) consta que às, 14h35 do dia 3 de agosto, “da inspeção ao local não foi encontrado/identificado qualquer meio de ignição”. O responsável pelo relatório disse mesmo, já em tribunal, que no local apenas viu madeireiros a retirarem as suas máquinas. Percebeu, porém, que o fogo tinha passado a forma ascendente, dado o lado para onde estavam derrubadas as árvores. Alertou depois o piquete na Judiciária que, horas mais tarde, também nada viu. Entre as 19h e as 22h30, “não existia qualquer proximidade dos materiais vegetativos à linha suscetível de provocar uma descarga elétrica que originasse esse ponto de ignição”, escreviam. “Não se vislumbra que qualquer causa natural ou local possa estar na origem da ignição, antevendo-se desta forma uma ignição por ação humana”, concluíam. Já em tribunal, um destes inspetores acabaria por dar ao juiz uma versão bem diferente do que escrevera, explicando que, na verdade, a visibilidade no local era deficiente e haveria, sim, uma árvore próxima do local, à qual não deu qualquer importância.

“Não se vislumbra que qualquer causa natural ou local possa estar na origem da ignição, antevendo-se desta forma uma ignição por ação humana”
Primeiro relatório da PJ

Um depoimento que, nas palavras do juiz Fábio Gulpilhares, foi feito de “de forma inusitada e e incompreensível” e que foi “nitidamente comprometido”. “Não é crível nem faz qualquer sentido”, escreve o juiz na decisão que tem 74 páginas, deixando duras críticas às contradições do inspetor. “Quer dizer que um inspetor da PJ há 36 anos, com larga experiência, vai efetuar uma inspeção ao local do (possível) inicio do incêndio e desconsidera, sem mais, aquela que podia ser a causa do mesmo?”

Um popular durante o incêndio na zona de Rasmalho, Monchique, a 7 de agosto de 2018

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Segundo relatório que não tem data, mas foi o que o MP valorizou

O que mudou então os argumentos da PJ que serviram para acusar a EDP e um seu funcionário responsável pela manutenção das linhas naquele local? Para o juiz, a origem deste “titubear” está num relatório da PJ elaborado mais tarde, que não está datado e se intitula de “auto de diligências”. Nesse relatório, lê-se que, a 9 de agosto (seis dias após o incêndio), foram ao local três inspetores que encontraram uma zona de melhor visibilidade e repararam na existência de um eucalipto cuja ramagem se encontrava “muito perto” dos três cabos condutores de eletricidade. Mais. Relata-se que, na zona mais próxima dos cabos, as folhas da copa da árvore apresentavam mesmo uma coloração diferente, “sendo mais escuro (negro de fumo) com um comprimento não determinado mas equivalente à secção do diâmetro da copa da árvore”.

Para o juiz que ilibou a EDP e o seu funcionário, fica o “enigma” que é descobrir “que melhores condições são essas”. “Causa-nos dúvidas que possam existir melhores condições de leitura seis dias após o início da deflagração”, afirmou. O tribunal acredita que, se num primeiro momento as condições de visibilidade dificultassem o relatório, tal teria sido referido no mesmo, pelo que a “versão mais plausível” é a de que “o signatário de facto não tenha vislumbrado qualquer material vegetativo próximo”. Exigência igual para o segundo relatório, que do ponto de vista do magistrado devia explicar porque havia, afinal, melhores condições de observação e porque só nesta data é pedido que seja preservado o local do incêndio para a investigação.

“Subsistem muitas dúvidas quanto à existência de um eucalipto muito próximo ou com os ramos a roçar nos fios condutores da linha”
Juiz de instrução

Na fase de instrução, em que se decide se o caso deve seguir para julgamento, foram ainda ouvidos cinco sapadores bombeiros e um empresário da área da madeira que corroboraram as segundas conclusões da PJ. Aliás, segundo o tribunal, foram eles que contribuíram mesmo para estas conclusões. Mas também estes depoimentos não convenceram o juiz e até causaram alguma “estranheza”. É que o magistrado que analisou o processo não percebe porque é que nenhum deles, se já tinha reparado antes no perigo do tamanho do eucalipto, nunca alertou as autoridades.  “Não conseguimos compreender a inércia destas testemunhas”, diz.

“Subsistem muitas dúvidas quanto à existência de um eucalipto muito próximo ou com os ramos a roçar nos fios condutores da linha”, insiste. Até porque, sustenta o juiz, as fotografias apresentadas em tribunal não mostram que as folhas da árvore tocassem efetivamente nos cabos.

O tribunal desvaloriza mesmo as perícias feitas pela PJ a um ramo da árvore onde tudo terá começado. “Se a causa do incêndio foi o contacto de um ramo (ou ramos) no cabo condutor de eletricidade que, inflamado ou incandescente, se precipitou para o solo e propagou o fogo pelo material combustível existente ao nível do chão, como se explica que no dia 13 de agosto de 2018 a PJ (alegadamente) tenha procedido ao corte de ramo e efetuado a respetiva perícia?”, questiona, tentando demonstrar que o ramo, ao cair no chão, seria destruído pelas chamas. E que a sua verdadeira origem é desconhecida.

Por outro lado, Fábio Gulpilhares lembra também que o eucalipto, ao tocar no cabo condutor de eletricidade que teria servido de ignição ao incêndio, provocaria um curto circuito. E não há na subestação qualquer registo desse dado. Também ao analisar as imagens da NASA, o testemunho de um piloto que combatia o fogo e as informações sobre a direção do vento, “o local apontado como o início do fogo torna-se ainda mais inverosímil”. Até porque uma hora depois o fogo continuava ativo naquele local.

O juiz de instrução criminal de Portimão decidiu não levar nenhum arguido a julgamento

Virgílio Rodrigues / Algarvephotopress / Global Imagens

“A narrativa defendida pelo Ministério Público, ancorada no relatório elaborado pela PJ depois do dia 9, padece de várias lacunas e incongruências e acaba por ser contraditório nas conclusões”, escreve o juiz, concluindo que ambos os arguidos acusados não são pronunciados por aplicação do princípio do in dubio pro reu  (em caso de dúvida, absolve-se).

MP diz que foram violadas leis da manutenção. Juiz não concordou

O Ministério Público também acusava a EDP e o seu funcionário de terem violado a lei nas inspeções periódicas a que são obrigados nas zonas de proteção e das faixas de gestão combustível. E aqui também o juiz aponta erros. A “acusação labora em vários erros/confusões a propósito daquilo que são zonas de proteção (e não faixas de proteção) – e respetivas distâncias dos condutores às árvores legalmente preconizadas – e faixas de combustível – e respetivas distancias consagradas no Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios (PMDFCI) do município de Monchique”, justifica. Não fazendo claramente esta distinção, fica na duvida para o juiz quais as inspeções periódicas que ficaram por fazer: à zona de proteção? À faixa de gestão de combustível? Ambas?

Ora, segundo a lei, a EDP estava obrigada a intervir nas zonas de proteção de dez em dez anos, mas esse período foi reduzido por existirem árvores de crescimento rápido, como eucaliptos. Mas a lei não diz em quanto tempo deve ser essa redução, “logo, a acusação não pode falar em cinco anos”.

“Não se vislumbra, por aqui, a violação de um dever de cuidado”, escreve o juiz, que conclui por isso que “nenhum comportamento típico, ilícito e culposo poderá ser assacado aos arguidos, precisamente por falta desse elemento objetivo”.

Também a imputação dos crimes ao funcionário da EDP mereceram uma chamada de atenção por parte do juiz. Isto porque, entendeu, Carlos Gomes não exerce quaisquer funções de administração ou gestão da estrutura organizacional que integra, logo, não pode ser acusado de ter violado um dever funcional. O juiz lembra que o funcionário foi nomeado em inicio de 2017 como Gestor Operacional da Unidade de Portimão, assumindo a responsabilidade pela execução das faixas de gestão de combustível e das zonas de proteção, com o dever de supervisionar os recursos humanos afetos à sua área de responsabilidade. E, apesar de não ter violado qualquer dever de cuidado, não tinha qualquer posição de liderança dentro da EDP — e esse é um requisito para que lhe pudesse ser imputada a responsabilidade, a par da pessoa coletiva que é a EDP.

Antes, o próprio Ministério Público acabou por pedir a não pronúncia dos arguidos.

"As pessoas que conhecem a zona, muitas estavam presentes e dizem que quem andava lá a trabalhar [eram] os senhores da EDP, [que estavam] a fazer manutenção da gestão das faixas de combustível"
Advogado Paulo Martins

Advogado de uma centena de lesados não recorreu e aposta tudo no processo cível

Esta decisão foi tomada em fevereiro e tornou-se agora definitiva, depois de nenhum dos lesados ou mesmo o Ministério Público terem recorrido para a reverter junto de um tribunal superior. Para o advogado que representou os arguidos, João Lima Cluny, esta decisão foi ao encontro das conclusões do primeiro relatório que consta do processo. “Nada teve que ver com a linha elétrica, com a E-Redes e, muito menos, com o seu funcionário. O Tribunal concluiu, ainda, e a nossa ver corretamente, que a E-Redes  [EDP] e o seu funcionário fizeram tudo o que lhes competia fazer, pelo que, mesmo que o incêndio tivesse tido origem na proximidade da linha elétrica, ainda assim, nada lhes podia ser imputado”, diz ao Observador.

Bombeiros combatem o incêndio na zona de Pocilgais nas Caldas de Monchique

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Para o advogado, “ficou claro que os indícios recolhidos apontavam, de forma manifestamente mais evidente, para um local a sul daquele indicado pelo MP, e mais perto da ribeira que por ali passa”.

Uma posição completamente diferente daquela que defende o advogado Paulo Martins. Assim que foi conhecida a decisão, o advogado — que representa uma associação que, por seu turno, representa centena e meia de lesados dos incêndios de Monchique — declarou aos jornalistas que a investigação tinha sido uma “vergonha”. Agora, ao Observador, explica que não recorreu da decisão porque prefere empenhar-se no processo cível onde vai precisamente defender o segundo relatório da PJ, que aponta culpas à EDP.

“As pessoas que conhecem a zona, muitas estavam presentes e dizem que quem andava lá a trabalhar [eram] os senhores da EDP, [que estavam] a fazer manutenção da gestão das faixas de combustível”, acusa, dando como “boas provas” aquelas analisadas pelo Laboratório de Polícia Científica da PJ. “Vou acreditar nos professores e engenheiros arrolados pela E-Redes?”, interrogou, lembrando que o princípio do in dubio pro reu não se aplica no processo civil.

“Aquele primeiro relatório da PJ foi uma vergonha, sim, pese embora o senhor inspetor da PJ ter justificado em tribunal que o fez já às 2h no dia em que o incêndio estava ainda ativo naquela zona”, justificou. O advogado diz que, no total, há cerca de mil lesados no incêndio, entre os quais várias pessoas coletivas, como câmaras municipais.

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