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Casos como o da fuga de João Rendeiro têm trazido para as páginas dos jornais o tema das extradições (e da eficácia dos mecanismos de cooperação internacional), mas os arguidos procurados no âmbito de processos mediáticos são apenas uma parte muito pequena do trabalho de autoridades como a Polícia Judiciária, que desde que o ano começou ajudou a que fossem trazidas para território nacional 89 pessoas procuradas internacionalmente, tendo também extraditado para outros Estados um total de 66 fugitivos.
Os dados mais recentes, revelados ao Observador pelo diretor da Unidade de Cooperação Internacional da Polícia Judiciária, deixam claro que, a três meses do fim do ano, o número de extradições (155) — de Portugal para outros países e de outros países para Portugal — já atingiu o total de 2020, ano em que se assistiu a uma diminuição significativa devido às limitações que a pandemia veio impor. Ainda assim, este ano ainda não se chegou ao número de extradições ativas (pedidas por Portugal) do ano passado, havendo uma compensação com o acréscimo de pessoas entregues a outros países.
“É cada vez mais difícil fugir sem vir a ser apanhado”, sublinha em entrevista ao Observador Joaquim Pereira, diretor da Unidade de Cooperação Internacional da Polícia Judiciária: “Isto é como tudo, não há impossíveis, um indivíduo pode decidir deter-se a ele próprio e não interagir com ninguém, desaparecer do radar. Em tese é possível, mas diria que é cada vez mais difícil essa fuga à justiça e ao braço da lei. Porque os mecanismos à disposição das polícias, das magistraturas, dos Estados, são cada vez maiores”.
Desde 2018 que o número de extradições de e para Portugal começou a cair, tendo passado de 290 para 231 em 2019, mas a queda acentuou-se com o período da pandemia da Covid-19, muito devido às limitações do tráfego aéreo, que trouxeram grandes perturbações à cooperação internacional. No total do ano passado foram realizadas 155 extradições — 108 pessoas foram trazidas para território nacional e 47 extraditadas para outros países.
E as autoridades nacionais sentiram os problemas da pandemia: um fugitivo, por exemplo, recusou fazer um teste de Covid, o que impossibilitou a viagem de avião desde Paris, e em outros casos os inspetores tiveram de fazer escalas para ir buscar pessoas a países com os quais antes da pandemia havia ligações diretas. A burocracia foi maior, teve de se envolver mais Estados e foram feitos por Portugal vários pedidos de adiamento de prazos às justiças dos países requeridos. Por outro lado, houve Estados que acabaram por ter de vir buscar pessoas a Lisboa em aviões privados para conseguirem, com todas as limitações aéreas, cumprir prazos legais. Foi o caso de Angola, por exemplo.
As extradições de 2021 e os países envolvidos
As extradições podem ser requeridas por via de um mandado de detenção europeu (MDE, com regras mais simplificadas) ou internacional (MDI). E, segundo os dados a que o Observador teve acesso, este ano Portugal conseguiu extradições de países como o Brasil (3), Paraguai (1) e Suíça (3), no âmbito de MDI. Através deste mecanismo, foram removidas de Portugal pessoas para serem entregues à justiça de países como Nepal, Chile, Brasil (um dos casos por homicídio), Israel, Moldávia, Montenegro (tráfico de droga e branqueamento), Polónia, Angola (um caso de crime económico), EUA (uma pessoa por crimes de pedofilia e outra por crimes de branqueamento de capitais).
No que toca aos mandados europeus cumpridos, a Polícia Judiciária foi buscar durante os primeiros nove meses do ano fugitivos ao Luxemburgo, França, Países Baixos, Alemanha, Reino Unido e Espanha. E fez extradições para diversos países da UE, de entre os quais se destacam Itália (um caso relacionado com a máfia) e Espanha.
Joaquim Pereira explica que, ao longo dos anos, se tem assistido a um “aumento exponencial dos mandados de detenção”, justificando a evolução significativa com o papel cada vez mais forte da Interpol. “Hoje em dia nem todos os países aceitam, mas a maioria aceita, que a difusão de uma notícia vermelha [um alerta de pessoa procurada] funcione como válida para uma detenção provisória. Qualquer Estado europeu e da rede mundial que detete um indivíduo que seja objeto de uma notícia vermelha pode detê-lo só com isso, para efeitos de apresentação em tribunal. E aí inicia-se o procedimento formal. Portugal faz isso desde que não seja um cidadão nacional”.
Essa, justifica, é uma das explicações para a eficácia crescente do mecanismo de extradição. Mas há mais, como a celebração de convenções multilaterais: “Por exemplo, fazemos parte da convenção europeia de extradição, assinámos uma convenção no âmbito da CPLP — através desse mecanismo extraditámos há poucos dias para Angola um cidadão daquele país, por criminalidade económico-financeira”.
Sublinhando a ideia de que cada vez mais as organizações criminosas tiram proveito das “novas facilidades de deslocação e comunicação”, o diretor da Unidade de Cooperação Internacional da PJ afirma que “os Estados tiveram de ir um bocado atrás, havendo nos últimos anos subidas de patamar ao nível da cooperação policial e judiciária”.
Temos duas dimensões. E ninguém se ofende se disser que a policial tem uma velocidade um bocadinho mais rápida do que a das estruturas judiciárias — embora com a criação da rede judiciária europeia, com a criação de magistrados dedicados, e de redes de magistrados com a América Latina, tenha havido uma aproximação dos seus ritmos”.
Mas, afinal, como entra a polícia e as magistraturas em cada fase de uma extradição? A polícia tem sempre uma primeira intervenção na fase da investigação, sendo depois necessário um “input da autoridade judiciária, com a emissão de um mandado”. “Aí entra novamente a parte da cooperação policial, na fase da localização e detenção, porque será detido no país onde estiver por autoridades locais”, continua Joaquim Pereira, reforçando que tudo está encadeado: “Tem de haver uma nova fase judicial, da confirmação do pedido de extradição, do processo formal, em que o detido tem de ser presente a juiz”.
Em Portugal, depois de a extradição ser validada pelo Ministério da Justiça (fase administrativa), as pessoas procuradas por outros Estados são levadas a um “tribunal da Relação, que se certifica se a pessoa consente a extradição voluntária ou renuncia e pergunta-lhe ainda se é efetivamente a pessoa que se procura”. O juiz não se foca em saber se a pessoa é culpada ou não, mas sim “se o outro Estado dá garantias de um julgamento justo”: “Se o processo formal for concluído e a decisão passar pela extradição é emitido um mandado de desligamento à ordem do gabinete nacional da Interpol.”
Depois disso, existe um prazo de 20 de dias no caso do mandado internacional e de 10 dias no caso do mandado europeu para acordar a entrega com as autoridades policiais do outro Estado.
Mas nem sempre a decisão judicial é favorável à extradição, mesmo quando há acordos bilaterais. Nos últimos dias, por exemplo, foi negada uma extradição para a Índia, apesar de Portugal ter um acordo de extradição com aquele país e de na fase administrativa o processo ter sido validado. “No final, a Relação considerou que não havia garantias suficientes e a extradição não avançou”, lembra o diretor da Unidade de Cooperação Internacional da PJ, justificando a libertação da pessoa procurada.
“Há várias situações em que a nossa lei não permite a extradição por motivos políticos, ou porque as pessoas foram condenadas a prisão perpétua, é isso que o tribunal da Relação tem de aferir”, diz ainda.
O momento da remoção e as regras aeronáuticas
“Eu utilizo uma imagem para exemplificar como é que a cooperação judicial e policial tem de funcionar, que me foi transmitida por um juiz argentino: ‘Para se combater o crime organizado sem fronteiras e o terrorismo temos de trabalhar todos em conjunto como uma orquestra sinfónica’. Não importa ter bons juízes e polícias se não houver coordenação”, frisa o responsável da Judiciária.
No dia em que é acordada a entrega de uma pessoa, a Polícia Judiciária faz o transporte desde o estabelecimento prisional até ao avião, sendo que o extraditando é entregue já dentro do avião às autoridades do Estado requerente — o avião é já considerado território do outro país.
“É lá que ocorre a transferência de custódia”, continua Joaquim Pereira, explicando que a polícia estrangeira assina nesse momento “o termo de recebimento, que depois a PJ tem de devolver ao tribunal da Relação”.
A escolta é por norma discutida e adaptada ao potencial de risco. E, dadas as normas de segurança aeronáutica, muitas vezes são precisos mais polícias para garantir que tudo acontece em segurança — é que, no procedimento de descolagem e aterragem, o extraditando não pode estar algemado, por ser considerada uma manobra de risco.
A extradição de carro entre Paris e Lisboa, com apoio de Madrid
No último ano, porém, tudo ficou mais difícil. Sem voos, menos ligações diretas e com regras apertadas devido à pandemia o trabalho das autoridades judiciárias foi ainda mais minucioso.
Numa extradição de França para Portugal acabou mesmo por acontecer algo inédito: o extraditando recusou fazer o teste e a companhia aérea não aceitou que viajasse sem cumprir as regras definidas no período da pandemia. “Tivemos de fazer toda a extradição por via terrestre, em automóvel”, revela Joaquim Pereira. “E aí entra a importância dos mecanismos de cooperação ágeis, bem oleados, porque isto depois não é tão simples como se possa pensar: não podemos simplesmente ir a França e trazer o indivíduo, é preciso formalizar um pedido de trânsito a Espanha”.
Neste caso, sobre o qual o responsável não deu mais detalhes processuais, as autoridades francesas tiveram de levar o detido de Paris até à fronteira com Espanha, tendo depois as autoridades espanholas assegurado o transporte, já na companhia da PJ, até à fronteira com Portugal. A partir daí e até Lisboa, o transporte foi feito com meios da polícia portuguesa.
A moda poderia ter pegado, mas este acabou por ser caso único: “A esmagadora maioria percebeu e fez o teste. Percebem que, mais cedo ou mais tarde, são apanhados. É uma luta perdida, é um cidadão a lutar contra o poder de um Estado”.
Nos casos em que a pandemia colocou outros entraves, como a falta de voos em tempo útil, conta Joaquim Pereira, foi preciso acordar alguns adiamentos — “Alguns países compreenderam e concederam-nos adiamentos, outros pediram-nos adiamentos de prazos a nós”. E, nos casos em que foi preciso fazer escalas, obteve-se do país em que aconteceram as conexões a autorização de trânsito.
Portugal não chegou sequer a ter de recorrer a aviões da Força Aérea, como acontecera no passado, para contornar as interdições existentes. Mas nem todos os países seguiram esta estratégia, o que pode estar também relacionado com fatores como o potencial de risco da pessoa a transportar.
Angola mandou avião estatal e Itália também (para levar membro da máfia)
No caso da extradição pedida por Itália estava em causa Francesco Pelle, dirigente da ‘Ndrangheta, máfia da região da Calábria. Era um dos homens mais procurados em Itália e acabou traído pela Covid-19, sendo detido no Hospital de São José, em Lisboa, onde esteve internado. O homem de 44 anos estava foragido desde 2017.
Como o Observador noticiou no início deste ano, a sua família, juntamente com os Vottari (uma outra família), terão levado a cabo um massacre contra a máfia Nirta-Strangio. Do ataque resultaram dezenas de mortes, incluindo Maria Strangio, mulher de Giovanni Luca Nirta. Tudo aconteceu no Natal de 2005 e esteve na origem de uma vingança por parte da Nirta-Strangio — apontada como responsável por um massacre em 2007 na Alemanha e do qual resultou a morte de sete pessoas.
O alegado líder da máfia calabresa detido em Lisboa também fora atingido numa das emboscadas, com um tiro na coluna, tendo ficado numa cadeira de rodas.
Dirigente da Máfia calabresa detido em Portugal após ter sido infetado com Covid-19
Segundo as autoridades italianas, a ‘Ndrangheta tem conseguido espalhar o seu poderio, sendo já a maior organização mafiosa do país, à frente da Cosa Nostra da Sicília. E é mesmo apontada como uma das organizações que domina uma parte significativa da cocaína que chega a território europeu.
Joaquim Pereira explica que, neste caso, “houve naturais preocupações de segurança na tramitação do processo”: “Mesmo da nossa parte. São diligências que acarretam muitos riscos, porque os funcionários encarregues têm basicamente três questões que têm de ter presentes: têm de zelar pela sua própria segurança, pela do detido e pela dos restantes. Principalmente em voos comerciais em que o banco da frente tem passageiros comuns”.
No caso angolano, não estava em causa a perigosidade do detido: era uma pessoa que havia ocupado em Angola um alto cargo na administração de uma empresa de transportes coletivos, e que é suspeito por branqueamento de capitais, corrupção, desvio de fundos do Estado e associação criminosa.
“Foi uma opção das autoridades angolanas, que muitas vezes tem a ver com prazos”, refere Joaquim Pereira, sublinhando que “foi difícil arranjar voo, estavam cheios e, quando se conseguia, às vezes era preciso arranjar trânsito por causa das escalas”.
Detido pela PJ para extradição ex-administrador de empresa de transportes de Angola
Belize e ilhas no Pacífico. Há mesmo paraísos para fugitivos?
“Nos últimos dias vi uma frase do Presidente angolano que diz o que lhe disse ainda há pouco: ‘Não é possível esconder-se de todos e durante todo o tempo, a menos que a pessoa acabe por se meter numa prisão também’.” Para o diretor da unidade da PJ responsável pela cooperação internacional, não há dúvidas quanto às dificuldades que alguém terá para encontrar um esconderijo para sempre. Ainda assim, admite que há países com que Portugal durante muitos anos não teve grande proximidade — o que só por si não quer dizer nada.
“Há Estados com que durante determinado período não houve uma aproximação e depois passa a haver, o que abre aqui uma janela de oportunidade para extradições, mesmo não havendo qualquer tratado. É tudo uma questão de negociação ao nível diplomático. Essa questão que às vezes se diz [nas notícias], que as pessoas fugindo para um país com o qual não há acordo de extradição não podem ser extraditadas não é totalmente verdade.” Sem se referir diretamente a casos concretos, como o de João Rendeiro, Joaquim Pereira lembra que muitas vezes na imprensa o “Belize e algumas ilhas no Pacífico são apontados como paraísos” para criminosos, e tenta desfazer aquilo que considera serem ideias feitas.
Não escondendo que “há um conjunto significativo de países, que são conhecidos, como algumas ilhas no Pacífico, no Caribe, que tradicionalmente têm dificuldade de relacionamento, também por razões económicas (têm as chamadas offshores)”, o responsável deixa claro que “muitas vezes em circunstâncias específicas é possível acordos”.
“Sempre que se fala de offshores ou de qualquer coisa que tem a ver com esconder bens, o Belize vem quase sempre à conversa. Não tenho registo de extradições do Belize, mas já concretizámos extradições com o Nepal, o Chile, Israel, Moldávia, Montenegro, Paraguai, Polónia, Angola”.
Apesar de o Belize fazer parte de uma lista de países que são mais apetecíveis para quem quer desaparecer, Joaquim Pereira reforça o aviso de que tudo se pode resolver com diplomacia: “Portugal pode estar durante 50 anos sem ter uma relação muito próxima a este nível, por exemplo, com o Belize, mas de repente ter essa necessidade e tentar uma aproximação. E pode, havendo depois uma equiparação mínima de legislação e de princípios, como o princípio da reciprocidade e a prestação de certo tipo de garantias, ser perfeitamente possível concretizar-se.”
E mesmo quando a extradição não é possível, há sempre mecanismos supletivos, como a transferência do processo ou da condenação para cumprimento no país onde está o condenado. Estas transferências, diz, também dependem do nível de relações diplomáticas que os Estados têm. “Das que têm nesse momento ou das que seja suscetível de virem a ter”, remata.